Sala São Paulo em polvorosa no sábado e na segunda passados, devido à aparição brasileira, por obra do Mozarteum, sob a regência do maestro Constantine Orbelian e com o acompanhamento da Orquestra Acadêmica do Mozarteum, de Elīna Garanča, excepcional mezzo soprano letã que vem arrebatando os amantes de ópera por suas abordagens primorosas de personagens como o Octavian, do “Cavaleiro da Rosa”, de Strauss; a princesa Eboli, de “Don Carlos”, de Verdi, e Dalila, de “Samson et Dalila”, de Saint-Saëns – fruídos tanto nas salas de concerto quanto por meio das plataformas digitais (graças às variadas modalidades de divulgação, do live-streaming aos canais virtuais das grandes casas de ópera) e do cinema (a exemplo do Festival "Ópera na Tela" – sobre o qual já falei aqui, comentando, aliás, a montagem de “La Favorite” da Ópera da Baviera, na qual Garanča desempenhou a personagem-título).
O público brasileiro (adictos de diversos Estados excursionaram para verem-na) realizou-se frente à mistura de profissionalismo, maestria vocal, graça e beleza (permeados por lampejos de ironia) que porejaram da artista, nessas duas históricas performances – no sábado houve mesmo uma sessão de autógrafos, tendo a artista simpaticamente atendido toda a serpenteante cauda que se formou no hall dos Arcos da Sala, para aferir se aquela aparição tinha mesmo figura humana ou se era um anjo caído do céu.
Se era anjo, era um estranho anjo de rosto anguloso e olhos inquietos, muito pouco celestial malgrado a sua alvura barroca, que se latinizara por obra de uma porção de músicos europeus que cantaram em versos os abrasadores sóis dos países latinos do sul – quer por viverem-nos na pele, quer por sonharem-nos: os franceses Offenbach, Bizet e Saint-Saëns, os italianos Mascagni e Cilea, e os espanhóis Falla, Barbieri e Carné. Dentre os bis, surgiu transmutado o francês (pasmem) tão latino-americano Carlos Gardel, e seu cavalo de batalha “El Día que me Quieras”, permeado pela mistura de segura gravidade e doçura da voz de Garanča – o conhecido tango elevado a uma insuspeitada altura.
O programa do concerto trazido a três países da América Latina – Argentina, Brasil e Peru – encampou as ficções de latinidade criadas pela arte entre fins do século XIX e princípios do XX (confesso que já fui mais crítica dos estereótipos do que sou agora que nós, os supostamente afáveis brasileiros, nos vemos imersos em disputas intestinas; vendo emergir ódios mortais dos lugares menos prováveis...). Já que a realidade é sombria e amarga, fiquemos, pois, com essa ficção de terra luminosa e alegre com que nos brindou a soberba Elīna nesses dois milagrosos dias, no palco da Sala São Paulo.
Estruturalmente, o concerto dividiu-se, grosso modo, entre o erudito e o popular: a ópera séria e os chistosos gêneros musicais de palco, e, por fim, à canção eminentemente popular de cafés-concertos às telas do cinemão.
A sua primeira parte voltou-se às árias de óperas italianas e francesas, a flertarem ora com o verismo, ora com o romantismo, ora com o exotismo: da ária com que Santuzza chora a perda do homem que ama, desencaminhado pela ex-amante (Voi lo sapete, o mamma, da “Cavalleria Rusticanna”, de Mascagni), à profissão de fé da modesta primadona Adriana Lecouvreur (Io son l’umile ancella), ao diametralmente oposto desejo incontrolável de sua rival, a Princesa de Bouillon, pelo homem que ambas amam (Acerba voluttá), à simulada declaração de amor de Dalila por Sansão, imediatamente anterior à destruição do pobre e devoto homem, pelas mãos da própria moça (Mon coeur s’ouvre à ta voix).
Convergiram na primeira parte variadas personagens de um conjunto de óperas sérias, as quais sucederam a "Ouverture" da opereta de Offenbach “Orfée aux Enfers”, que abriu o concerto – abertura insólita, que não estabelece diálogo com as obras apresentadas, servindo para introduzir o público num estado de espírito efusivo desnecessário (a presença de uma cantora do naipe de Garanča no palco da Sala já sobe a temperatura do local, não sendo necessário um apoio popularesco para tanto).
A segunda parte do concerto consolidou o antevisto pela Abertura da opereta de Offenbach. Como o programa prenunciava, tal parte foi dedicada a “canções e óperas de inspiração espanhola”, melhor dizendo, a uma seleção de coplas de zarzuelas de relevância mais histórica que estética, como “El Barberillo de Lavapiés” e “El Niño Judío”, circundadas pelo par de árias inolvidáveis “Habanera” e “Chanson Bonhéme”, da maravilhosa opéra-comique “Carmen”, de Bizet.
Historicamente, a ópera séria, fruída nos Teatros de Ópera (aí se encaixa também a “Carmen”, embora se denomine comique), conviveu com uma variedade dos denominados gêneros “cômico-musicados”, de faceta eminentemente popular, exibidos majoritariamente em salas de espetáculos de menor relevância, os quais se caracterizavam pelo riso fácil, pela pulsão paródica, pelo comentário aos fatos políticos e temas cotidianos contemporâneos à escrita do texto, pela ambiguidade vocabular: melodias para serem assoviadas por todas as classes sociais, do povaréu à burguesia, pelos quatro cantos da cidade. Música risonha – minha mãe comparou-a ao repertório das bandas marciais, ao assistirmos à paradigmática zarzuela "La Gran Vía", de Chuenca e Duran, enquanto eu me preparava para escrever este artigo.
Efetivamente, a zarzuela trata-se de uma música urbana, nascida com a remodelação das grandes cidades segundo moldes franceses, comparada com a nossa popularíssima “revista de ano”, já que colocavam no palco a cidade em mutação, alegorizando os fatos do ano (em "La Gran Vía", como em “O Bilontra”, do nosso Arthur Azevedo, as ruas e as moléstias sociais são personificadas) e abrindo-os, como uma revista em papel, aos olhos do público. O tempo de marcha, tão presente nessas obras, repõe-nas na cidade em movimento desta virada de século, num só tempo sequiosa e temerosa do progresso urbano que tudo acelerava. Suas personagens tipificadas e episódicas, caricaturas sociais, têm em comum com a densa “Carmen” apenas a sua nacionalidade: se sobra graça à pomba-rola Paloma, que se apresenta tanto ao público quanto ao enamorado Lamparilla (paródia do Fígaro da ópera-bufa “O Barbeiro de Sevilha”, de Rossini) na "Canción de Paloma", entoada por Elīna, falta-lhe transcendência.
Sobra, no entanto, transcendência à Elīna Garanča, deslumbrante em meio a um repertório de qualidade estética tão variada. O repertório oriundo do cancioneiro popular e da comédia-musicada impregnou o seu timbre de mezzo de um frescor inesperado, ao mesmo tempo em que a sua densidade dramática esteve toda presente na primeira parte do programa (com destaque absoluto para a sua interpretação da ária para soprano Io son l’umile ancella, entrega arrebatada, num só tempo potente e dócil, ao gênio criador).
Ao atravessar um largo escopo, do baixo-cômico ao dramático, Elīna Garanča propiciou-nos um festim para os ouvidos, demonstrando-nos que nós, os educados espectadores do século XXI, temos muito mais em comum do que desejaríamos acreditar com os públicos dos circos e demais palcos populares do século XIX, aos quais o éthos exibicionista dos artistas líricos tanto encantavam.
Malgrado a ausência de organicidade da maioria desses programas cantados por estrelas eminentes dos palcos estrangeiros que se apresentam entre nós – as quais se realizam mais plenamente no interior de espetáculos operísticos –, temos de comemorar muito a possibilidade de nos encontrarmos empiricamente com vozes que, não fossem iniciativas como a do Mozarteum Brasileiro, apenas nos chegariam por via digital.
Chanson Bohème, "Carmen"
Um comentário:
Daniele, excelente artigo, muito bem escrito, um português com belas palavras. Infelizmente por mais bem escrita que tenha sido seu artigo apenas quem foi lá é quem pode sentir as emoções e sensações deste concerto histórico. Sem dúvida nenhuma foram duas noites encantadoras e inesquecíveis, mais uma vez parabéns por estas belas palavras.
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