terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2019: Dia I


No primeiro dos artigos que escrevi a respeito da Giornate de 2017 (interessados, acessem-no aqui), sublinhei o quanto era importante organizarmos as impressões sobre eventos absorventes (falamos aqui de 150 horas de filmes) no decurso dos mesmos, nem que seja na forma mista relato/resenha, sob o risco de perdermos os fios de enredos, filmes e programas numa barafunda geral. 
Começo este quase ao término da mostra, com cinco dias de atraso (na certeza de que este texto surgirá com semanas de atraso), já irremediavelmente emaranhada... Vamos então à intensa Giornate.
Foto de Valerio Greco

Dia 1, 5 de outubro, sábado 
Nova descrição da adorável cidadezinha medieval é desnecessária – encaminhem-se os leitores à resenha da 36ª Giornate para terem-na. Imaginem agora a cidade envolvida constantemente pelo tempo ensolarado e ameno – raro, já, neste período do ano. Diríamos que os deuses do cinema mudo estão a iluminar este burgo perdido no meio do caminho entre Veneza e Trieste, felizes de se verem tão condignamente representados. 
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Suzanne Grandais e Léonce Perret em "Le chrysanthème Rouge" (1913)
Foto de Valerio Greco

Mas, estou aqui fazendo literatura, e de espécie duvidosa. Esforço-me, adiante, para dividir a resenha da programação da Giornate e de minha ligação afetiva com a cidade, já a esta altura ligadas inextricavelmente ligadas. 
A Giornate abriu-se com uma visada quase que cronológica à estética da montagem, da francesa à norte-americana. O programa “French Stars” apresentou uma vedette francesa que eu conhecia de reputação, já que seu rosto circulava na imprensa cinematográfica carioca nos primórdios do star system, nos anos de 1912-1913: Suzanne Grandais. O decurso da semana nos faria passear por performances suas das comédias aos dramas, mas, não nos antecipemos... 
Obras como "Le chrysanthème Rouge" (1913), "Le Homard" (1913), "Les Épingles" (1913) dão margens para que compreendamos o que interessava o público nos princípios do star system – ou, ao menos, o que interessava às primeiras revistas de cinema propagandear (refiro ao menos a Cinema, atrelava à Companhia Cinematográfica Brasileira, impressa no Rio de Janeiro): câmera prostrada quase que invariavelmente em posição frontal, a captar cada cena em poucos takes (ou num só take). Poucos cortes; a movimentação e a fluência do enredo totalmente dependentes da figura encantadora de Grandais, a meio caminho entre o coquetismo e a ironia. 
Em "Le Homard" ela é a esposa engambelada pelo marido (Léonce Perret, também diretor da obra), urso de meia idade que, para provar-se heroico, inventa à esposa que pescará por conta própria a lagosta que se recusou a lhe comprar, por ser muito cara. Como se imagina, a jovem se dará conta do estratagema e lhe pregará a coça clássica, que toda a plateia quer lhe dar. 
Esses filmes protagonizados por Grandais são exemplos modelares do primeiro cinema, no diálogo estabelecido entre o artista e o público – os apartes tributários do teatro, nos quais o ator cobra conivência da plateia – e o valor do cinema enquanto atração. Inúmeras cenas, embora contribuam no fio do enredo, pedem-lhe licença para deliciarem o público como atrações à parte: a clássica cena de pancadaria (slapstick), em que o marido ladino é punido, em Le Homard; ou a belíssima cena em que, por obra da colorização manual, o crisântemo branco tinge-se de vermelho com o sangue do pretendente apaixonado, em "Le chrysanthème Rouge" (1913). 

Mesmo que os enredos levados à cena sejam realistas, é a poesia, mais que a prosa comezinha, que enforma este cinema feito de ênfase e de monocromia (o vermelho alusivo ao sangue e ao amor; o azul, à noite e à melancolia) – como já nos provou Peter Delpeut em seu deslumbrante “Nitrato Lírico” (1990). 
A sessão seguinte trouxe como cerne John M. Stahl, artífice de pulso do gênero melodramático (é mais conhecido por “Amar foi minha ruína”, de 1945) cuja obra a Giornate segue apresentando em retrospectiva. O primeiro filme, “The Wanters” (1923), serve como breve mostra da estreia cinematográfica de Norma Shearer. O rolo que restou da película quase toda perdida flagra alguns dos desdobramentos derradeiros do drama de Myra Hastings – empregada que ascende ao posto de senhora por meio do casamento, porém, é rejeitada pelas parentas do marido. 
Tivemos menos que um tira-gosto – ocasiões como essas, de visionamento de trechos sobreviventes de filmes perdidos, sublinham como a história do cinema é feita de incompletude. Uma pena, pois “The Wanters” aparenta ser obra de fôlego, que coloca em cena, embora enformado nos limites convencionais do melodrama, a profundidade do abismo social. Mesmo o marido recusa a classe de onde saiu a esposa. A humanidade que ela encontrara entre os serviçais não existia entre os ricos – a esposa lhe sublinha antes de partir (e de o rolo terminar). 
“The Woman under Oath” (1919) resistiu em sua completude. É filme de tribunal, a misturar suspense e melodrama, como depois o faria com maestria um diretor como Hitchcock (cuja obra fecha a Giornate, como veremos adiante). Aqui quem encabeça o elenco é Grace Norton, na pele da romancista Florence Reed: primeira mulher da história a compor um júri – o intertítulo sublinha. A trama equilibra-se entre o tom documental e o fictício. Os intertítulos têm claro intuito de dialogar com movimentos feministas. Uma mulher estaria intelectual/psicologicamente preparada para ser júri num caso de assassinato? Certamente que sim, descobriremos entre os intertítulos e a ação. 
A câmera adota o ponto de vista de Florence, da descoberta do crime à convocação para tomar parte do júri – dada à evasão dos homens. No tribunal, uma súmula das juradas em potencial entre o público feminino faz-nos vislumbrar o machismo que historicamente acompanhou a sociedade – mesmo em seus rompantes considerados mais “feministas”: mulheres ou com medo de sangue ou que não diferenciam lé com crê patenteiam porque o sexo feminino é considerado fraco. Mas, eis Florence em meio a onze típicos machos-alfas, e a câmera a abrir mão dos laivos machistas em prol de uma postura surpreendentemente simpática, a sublinhar os disparates do gênero masculino – oscilamos nessa gangorra mesmo hoje, passados cem anos da rodagem da obra... 
O melodrama assume com força as rédeas da história. O réu é um mocinho imberbe acusado de assassinar um figurão. Ele jura inocência; Florence acredita e procura comprovar seu ponto de vista junto ao público e aos demais membros do júri. A trama antecede as reflexões do brilhante “Doze homens e uma sentença” (1957), antecedendo-o em mais de trinta anos, até que um golpe de teatro abre caminho para a virada melodramática: 
Uma carta vinda de casa faz com que a mulher finalmente se abra aos homens que buscava convencer – até então, em vão: na verdade, quem matara o figurão não fora o mocinho imberbe mas, sim, ela (!), pois ele enredara e desencaminhara a sua irmã, a qual, por meio da tal carta, ela descobrira que estava morta. Uma lacrimosa narrativa e laudos flashbacks desenrolam, diante do público, como o crime se deu. O jovem termina inocentado por este júri pseudo-misto, mas é um júri completamente masculino que acaba inocentando tacitamente a mulher – e assim, a gangorra novamente pende para o lado costumeiro. 
Felizmente, ao drama se sucede a comédia – vemos mimetizada, na Giornate, um daqueles programas primordiais do cinema silencioso, a misturarem risos e lágrimas. Em cena, o extenso programa “European Slapstick” apresenta um de seus mais charmosos artífices – e primeira deidade do star system: Max Linder. Mas, a surpresa! Um Linder de agilidade deslumbrante, feito de godardianos jump-cuts, tão modernos – obra, quem sabe, do acaso, já que os cortes surpreendentes dos takes provavelmente podem se dever à perda de material fílmico... 
Flagram-se, nesses filmes de fins dos anos de 1910, a aderência do cinema comercial europeu à montagem norte-americana. “Le petit café” (Omnia Pathé, 1919) é um bom exemplo. Ali, um Linder completamente tributário de Chaplin (que, por sua vez, fora tributário de Linder...) é o garçom explorado que se descobrirá herdeiro de uma fortuna. O charme bon vivant do Max de fins de 1900-princípios de 1910 une-se à transcendência chapliniana para dar vida ao jovem deixado, pelo pai adotivo – célebre explorador –, sob os cuidados de um tutor abusivo. Morto o pai, ele apenas terá acesso à fortuna que lhe cabe depois de travar um conhecimento profundo com os colegas do café onde trabalha, e de descobrir a extensão do preconceito que os separa dos grã-finos a cujo grupo ele, por obra da herança, passaria a pertencer. 
A sessão das 20h30, abertura oficial da mostra, trouxe, além desse Linder tingido pelas tintas norte-americanas (o filme em questão é o curta-metragem “Max entre deux feux”, de 1917), o maravilhoso “O Garoto” (1921), de Charles Chaplin. 
Quem não conhece a história do menino abandonado pela mãe-solteira – reduzida, por sua vez, aos ditames da sociedade machista –; transformado no filho inopinado de um biscateiro amoral? Quem não conhece o mítico “O Garoto”, propalado na imprensa muito antes de ser lançado (já então, o studio system estava plenamente consolidado e vertia aos espectadores rios de tinta sobre as fitas e os bastidores das obras rodadas), analisado de forma apaixonada por intelectuais da envergadura de Mário de Andrade? Mas páginas da paulistana revista “Klaxon”, Mário defende o filme das críticas dos vanguardistas europeus que procuravam encontrar na obra os signos da modernidade que propalavam, e louva a organicidade da personagem do vagabundo, cuja vida de penúria veste mesmo o seu sonho – já que ele se torna um anjo semi-andrajoso, de asas emprestadas. 

Foto de Valerio Greco

Mário de Andrade desculpa o cunho melodramático – e, portanto, aderente ao status quo – da obra. Mas nós, distantes, hoje, quase um século do escritor, já temos instrumental para compreender a importância histórica e a penetração social do gênero melodramático e para, enfim, nos deleitarmos com a maestria com que o cineasta tece a trama, tanto no âmbito fílmico quanto no sonoro – já que é de autoria dele, também, o acompanhamento musical. 
Já vi “O Garoto” muitas vezes, mas nunca ele pareceu-me tão pungente; tão fundamental em sua humanidade. A Orquestra San Marco, responsável por seu acompanhamento (a restauração, adaptação e condução da partitura são de autoria de Timothy Brock), repôs a histórica contundência desse drama feito de risos e lágrimas – demasiado semelhante à vida, ainda que tecido dentro dos limites rígidos do melodrama. Prestes a completar 100 anos, “O Garoto” ratifica a eternidade do cinema. 
Foto de Valerio Greco
Findo o filme, abre-se a última sessão da noite com o programa “Advertising”, que teve início no ano passado, o qual joga luzes sobre uma prática cotidiana no cinema silencioso, hoje praticamente desconhecida: a produção de filmes ficcionais voltados à publicidade. O norueguês “Rex, what Diogenes sought and found” (1923) – algo como “Rex, aquilo que Diogenes buscou e encontrou” –, narra o périplo infinito do homem milenar fadado a percorrer as Eras de lampião em punho, em busca do tal “Rex”, ou “Rei”: cruza com Alexandre, o grande, com Napoleão, mas só sossega ao encontrar, em plena era moderna (pasmem!), a manteiga Rex – a maravilha que buscara por tanto tempo... 
As breves inserções publicitárias contemporâneas gostariam de encontrar as suas longas avós silenciosas (esse filme tem 25 minutos), frutos de uma época que se deleitava paulatinamente com elas. Outro exemplo é o sueco “Kal Napoleon Kalsson’s struck of luck”, ou seja, “O golpe de sorte de...”, que ao longo de 35 minutos narra a forma como um apostador bem-sucedido resolveu dispor do montante arrecadado. Os estabelecimentos comerciais provavelmente se cotizaram, dada a extensiva presença deles na obra – à qual as nossas telenovelas contemporâneas nada devem...

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