sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2019: Dia II

Dia 2, 6 de outubro, domingo 


"Fausto" (1926), de Murnau, desde o piano de Donald Sosin
Foto de Valerio Greco

Abre-se o dia com o programa “Films on film”, interessantíssimo porque ilumina outro meandro fundamental do cinema silencioso, a metalinguagem. Ao longo da semana, assistimos a diversas récitas desses filmes a respeito de filmes que se esforçaram para construir a mítica da sétima arte. No primeiro deles, o público foi convidado a tour pelos estúdios de Thomas H. Ince (“A tour of the Thomas H. Ince (Ex Triangle)”, 1920); a conhecer os meandros de Hollywood, de seu status de província abandonada no Meio Oeste à sua condição de Meca do cinema (“The Hollywood dream factory and how it grew”, 1927); a descobrir detalhes sobre a materialidade fílmica, que reduzem o cinema à sua imanência – à sua condição de fotografia (“Sprockets and splices. A little journey to the source of film damage and poor presentation”, 1923). 
Essa apresentação pedagógica dos bastidores da indústria do cinema, que realiza no plano fílmico aquilo que os seus primeiros cronistas realizaram à tinta (penso no Jack da revista Careta, fonte de pesquisa de meu doutorado), ofereciam-se ao público como material neutro de estudo, escamoteando o seu papel na construção da mítica do cinema. A “objetividade” que buscam promover é questionável – sua orientação depende do lugar de onde saíram (David Robinson salientou-me, divertido, numa conversa, a francofilia desses filmes metalinguísticos oriundos da França, que apagavam toda a contribuição não-francesa à arte). 
Uma bela sessão uniu os interessantes “Advertising” com um clássico incontornável: o curta-metragem norueguês “Our celebrated swedish guest Gösta Ekman” (1932) antecede a apresentação do “Fausto” (1926) de Murnau, no qual Ekman representa o ancião Doutor antes de ele ser tocado pelo demônio. Estamos aqui no domínio da lenda, tanto a literária quanto a cinematográfica. Murnau alinha-se muito mais a Goethe que aos libretistas e compositores operísticos, que reduziram a obra do escritor quase que exclusivamente à dimensão do drama de amor entre Fausto e Margarida. Os grandes quadros que ele cria abandonam o realismo em que estão calcadas as óperas para ganharem dimensão onírica: a cena de Mefistófeles (magistral Emil Jannings) abarcando a cidade, ou do Anjo estendendo as suas asas protetoras sobre ela, dão de ombros à realidade para remeterem à dimensão do mito. Seriam admiráveis ilustrações ao livro de Goethe, à bíblia ou aos dramas barrocos, em que a metafísica é materializada e colocada em cena. Que honra ver uma obra como essa em seus gloriosos banhos de cores e acompanhamento musical ao vivo (Donald Sosin foi o responsável pela música em Pordenone), apresentação tão próxima àquela das plateias primordiais. 
À tarde, um evento de uma graciosidade que me faz constantemente perguntar por que eu não tenho filhos (pergunta que, valha a verdade, dura apenas pelo espaço da sessão...): as crianças do ensino básico da cidade, estudantes de música, fazem o acompanhamento musical de duas fitas. Ambas trazem à cena crianças, e têm temáticas tão enviesadas que precisamos fazer um esforço para olhá-las considerando a sua dimensão histórica: 
“Dogs of war” (1923) seria um filme de guerra clássico, não fosse protagonizado pelos pequenos (e por um rol de armas inofensivas, embora mimetizem demais os armamentos de guerra); “Carmen, Jr.” traz uma versão mirim da famigerada gitana cuja sede de liberdade foi tão incompreendida por escritores/compositores ao longo do último século e meio. 
Baby Peggy Montgomery interpreta-a, vampirizando os homenzinhos em miniatura com os quais ela cruza. Mesmo que o faça de modo risonho, no tom de brincadeira infantil, deixa-nos na boca o gosto rançoso da histórica hiper-sexualização da infância. No entanto, que gosto é ver a fileira de crianças espantosamente talentosas subir ao palco no final da récita, com as suas traquitanas musicais, para receber os aplausos do público! 
A seguir, um conjunto de vedettes sobe à cena. Primeiro, um conjunto de flipbooks (uma série de fotografias dispostas uma em cima da outra, as quais, acionadas por meio do gesto de folhear com o dedo, adquirem movimento) recupera vistas clássicas do cinema de atrações, a exemplo da dança serpentina (“Loie Fuller”, 1896). São um achado esses filminhos de bolso comercializados ainda no século XIX, agora escaneados e movimentados digitalmente. 
Mas o programa centra-se numa das principais vedetes francesas da época, Mistinguett. O filme é o longa-metragem “La Glu” (1913), roteirizado e dirigido por Albert Capellani a partir do romance folhetinesco e da peça teatral de Jean Richepin. Produzida pela Societé Cinematographique des Auteurs e Gens de Lettres (SCAGL), que à época concorria com os Films d’Art, procura carregar todo o caráter artístico/denso que essas empresas procuravam imprimir aos seus objetos. Há, ademais, um tom moralista claro (corroborado, hélas, pela plateia que o viu em Pordenone e aplaudiu o assassínio de Fernande, “La Glu” do título, pela mãe protetora de um dos namorados da moça). 
Apesar do reforçado viés “artístico”, a obra se trata daquilo que Arthur Azevedo risonhamente apelidava, no fim do século XIX, de “dramalhão delinquescente”. Fernande/La Glu (Mistinguett) é a femme fatale que se faz de mocinha enquanto vive sob o teto do pai, um vetusto professor. Uma vez casada com o médico que ministra ao velho os últimos cuidados, a jovem principia a vampirizar os mais diversos tipos, para desespero das suas sofredoras mães. Georges Duby tem um deslumbrante livro sobre as representações femininas na Idade Média, segundo o qual essa leitura enviesada do gênero feminino se deve ao terror que mulheres libertas como Fernande historicamente motivavam na sociedade convencional: “Eva e os padres, Damas do século XII” (Companhia das Letras, 2001). O fim da jovem eu já anunciei: ela é morta pelas mãos da mãe de um de seus namorados, para o lamentável alívio catártico das plateias pregressas e modernas... 

É noite, e temos um encontro com uma de minhas descobertas do ano: William S. Hart. Eu o conhecia de nome – em 1920, certa interlocutora do mencionado Jack, da carioca revista Careta, refere-se ironicamente a atores como ele, que “Pulam, em malabarismos e exercícios quase incríveis de equitação, eletrizando os espectadores nervosos...”. Confesso que tenho uma inclinação pelos galãs saltitantes (encantei-me irremediavelmente por Douglas Fairbanks algumas Giornates atrás). De todo modo, Hart supera os malabarismos, atingindo por vezes interpretações dotadas de densidade psicológica. 
As suas tramas giram em torno de questões semelhantes: tendo sempre como pano de fundo a marcha para o oeste. Uma dessas obras modelares é “O Rei do Deserto” ("Tumbleweeds", 1925), que toma como tema a colonização (leia-se invasão) branca na zona Cherokee. Dela, a Giornate exibiu a introdução, rodada quinze anos mais tarde, protagonizada por um Hart já na avançada meia-idade, vestido de cowboy, que, de voz embargada, alude aos seus conterrâneos – porque ele envergava bastante bem o éthos de herói que lhe imprimia o star system, o qual associava o artista à persona que ele representava em cena. O tom patriótico desses filmes traz-nos à boca um travo amargo. Mas é impossível superar Hart, cujo rosto resiste tão admiravelmente ao primeiro plano. 
Em “The Narrow Trail” (1917), longa-metragem que vimos a seguir, ele enverga com maestria o hábito do homem forte, rude e corajoso* que, segundo a mítica criada pelo western norte-americano, teria condições de enveredar pelo inóspito Oeste. Aqui, ele - Ice Harding - caminha oscilante a linha tênue que separa a moralidade do crime. É um outlaw cuja gangue intercepta a caravana onde viajava Betty. 
As circunstâncias fazem dela e dele atores. Ele é o criminoso que, na cidade, posa de cidadão de bem. Ela é a “Rainha da Costa Bárbara”, vamp obrigada a posar de mocinha para seduzi-lo. Ambos se apaixonam, ele a recrimina tão logo descobre o seu passado, mas, como um e outro já viviam nas franjas da moralidade, acabam unidos no final, numa vida às margens daquela sociedade. O cinema padrão da segunda década do século XIX ainda ocasionalmente conseguia escapar ao moralismo barato. No entanto, Betty e Ice (gelo agora quebrado) sabem que apenas poderão derrubar as máscaras e viver juntos longe das vistas do público e daquela sociedade que os originou. 

* Conferir o artigo de Bazin “O western, ou o cinema americano por excelência”, inserido no livro O que é o cinema.

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