Tenho nas mãos as duas mais deliciosas descobertas que fiz nesses últimos tempos: um livro de António Ferro, um filme de Ernst Lubitsch. Os dois me permitiram casar deleite e vida profissional - melhor que isso, impossível. O livro, na verdade, são dois. Hollywood, capital das imagens e Novo mundo, mundo novo, compilação das crônicas sobre os Estados Unidos que o escritor português publicou numa das folhas de seu país. No título, referi-me ao segundo, que me proporcionou o prazer de recortar suas folhas antes de iniciar a leitura - prazer do qual só podemos usufruir, hoje, ao termos a sorte de comprar um livro antigo cuja cópia nunca tenha sido lida.
Minha viagem pelo Mundo Novo desfraldado por António Ferro já começou empolgante, empolgação que só fez crescer à medida em o escritor, jornalista do Diário de Notícias, se aproximava de seu destino principal: a Hollywood dos anos 20... Difícil um cinéfilo não invejar a aventura do intelectual, que, além de publicar seu encontro com Mary Pickford e outras "estrelas" e "astros" do "écran" (como essa palavra é repetida por ele...), ainda estampa, no primeiro livro, sua fotografia com Douglas Fairbanks. Difícil um analista crítico da Hollywood dos anos dourados não se surpreender com a empolgação, a paixão, o abandono com que o escritor olhava as ruas, hotéis, cenários e artistas que povoavam aquela terra de sonhos.
Olhava para deslindar aos seus patrícios a verdadeira capital do cinema, aquela em que uma rua deserta do far-west dava numa rua gelada de Nova Iorque, em que as cabines de passageiros de um navio ficavam a quilômetros de distância de sua proa. Mas, mesmo depois de conhecer a realidade, e de insistir para que a "pequenina luz que sonha com as estrelas" não deixasse Portugal imaginando uma vida de celebridade em Hollywood, mesmo assim o cronista não deixava de olhar com fascínio para a ficção que surgia dessa realidade tão disparatada. Seu enamoramento por Mary Pickford é prova disso: "Basta dizer Mary... Mary Pickford, casada com Douglas, está casadinha, também, com os olhos de todos, olhos amorosos, olhos que a beijam... Amor respeitoso, amor cristão... Mary Pickford é a Nossa Senhora da Luz Branca!...".
Que bonitinho!... Fascinante conhecer uma opinião tão apaixonada vinda do tão ajuizado escritor modernista. Porque, afinal de contas, quem não se sente mais ou menos assim ao assistir a um filme favorito? Mesmo que os extras do DVD divulguem os detalhes que se escondem por detrás das lentes da câmera, continuamos rindo e nos emocionando com as histórias por ela contadas.
Por exemplo, com "Alvorada do amor" (The love parade), o primeiro filme sonoro dirigido por Ernst Lubitsch, ainda em 1929 (na alvorada do som) dois anos depois da visita de Ferro a Hollywood. Embora Ferro tenha dito não gostar "de fitas faladas", é bem provável que tenha visto esta, pois deixa claro a admiração que sentia por Maurice Chevalier - na película, o namorador de Silvânia que é convocado de volta a seu país depois de escandalizar a já escandalosa Paris. Sobre ele, Antonio Ferro diz: "O êxito de Maurice Chevalier é a sua completa adaptação ao espírito da época. Maurice é o tipo-símbolo, a soma de muitas parcelas: dandismo do faubourg, perfume de boîte-à-chansons, sabor de garçonnière, passos da Broadway, sugestão cinegráfica no claro-escuro do chapéu de palha e do negro do smoking, graça enfant terrible e máscara de Bébé Cadum, Place Pigalle e Times Square, ginástica das oito às nove e amor das cinco às sete, cartazes nos tapumes avec le sourire e bilhetes postais emoldurados nas tapeiras, Sour les toits de Paris uma elegância de apache disfarçado (...)".
Depois de ver Maurice em um de seus filmes, é impossível discordar do escritor. Que dirá, então, depois de vê-lo nesse filme, anterior à censura que os estúdios cinematográficos se impuseram, filme que dosa tão bem o romance, o sexo, a ironia e a comédia, amarrando-os tão bem - porque, na verdade, o mundo não passa de uma longuíssima comédia dos sexos... Exemplo cabal da aptidão do conde Alfred Renard pelas mulheres é aquela cena inicial, em que ele tenta administrar duas amantes, enfrenta o marido de uma delas e, imperdíveis reviravoltas depois, abotoa o vestido da moça sob os olhos do agradecido e apaixonado marido dela. E, então, a cena em que o conde, já convocado de volta à Silvânia, canta a rainha (e para a rainha): "Loves I've known are buried in the past/ They could last with you/ None of them could ever hold me fast/ In the way you do. (...)/ Eyes of Lisette, smile of Mignonette/ The sweetness of Suzette/ In you displayed/ Grace of Delphine, charm of Joséphine/ The cuteness of Pauline/ In you, arrayed.". Essa cantada debochada, bem ao estilo de Chevalier, é uma delícia e merece ser vista:
Olhava para deslindar aos seus patrícios a verdadeira capital do cinema, aquela em que uma rua deserta do far-west dava numa rua gelada de Nova Iorque, em que as cabines de passageiros de um navio ficavam a quilômetros de distância de sua proa. Mas, mesmo depois de conhecer a realidade, e de insistir para que a "pequenina luz que sonha com as estrelas" não deixasse Portugal imaginando uma vida de celebridade em Hollywood, mesmo assim o cronista não deixava de olhar com fascínio para a ficção que surgia dessa realidade tão disparatada. Seu enamoramento por Mary Pickford é prova disso: "Basta dizer Mary... Mary Pickford, casada com Douglas, está casadinha, também, com os olhos de todos, olhos amorosos, olhos que a beijam... Amor respeitoso, amor cristão... Mary Pickford é a Nossa Senhora da Luz Branca!...".
Que bonitinho!... Fascinante conhecer uma opinião tão apaixonada vinda do tão ajuizado escritor modernista. Porque, afinal de contas, quem não se sente mais ou menos assim ao assistir a um filme favorito? Mesmo que os extras do DVD divulguem os detalhes que se escondem por detrás das lentes da câmera, continuamos rindo e nos emocionando com as histórias por ela contadas.
Por exemplo, com "Alvorada do amor" (The love parade), o primeiro filme sonoro dirigido por Ernst Lubitsch, ainda em 1929 (na alvorada do som) dois anos depois da visita de Ferro a Hollywood. Embora Ferro tenha dito não gostar "de fitas faladas", é bem provável que tenha visto esta, pois deixa claro a admiração que sentia por Maurice Chevalier - na película, o namorador de Silvânia que é convocado de volta a seu país depois de escandalizar a já escandalosa Paris. Sobre ele, Antonio Ferro diz: "O êxito de Maurice Chevalier é a sua completa adaptação ao espírito da época. Maurice é o tipo-símbolo, a soma de muitas parcelas: dandismo do faubourg, perfume de boîte-à-chansons, sabor de garçonnière, passos da Broadway, sugestão cinegráfica no claro-escuro do chapéu de palha e do negro do smoking, graça enfant terrible e máscara de Bébé Cadum, Place Pigalle e Times Square, ginástica das oito às nove e amor das cinco às sete, cartazes nos tapumes avec le sourire e bilhetes postais emoldurados nas tapeiras, Sour les toits de Paris uma elegância de apache disfarçado (...)".
Depois de ver Maurice em um de seus filmes, é impossível discordar do escritor. Que dirá, então, depois de vê-lo nesse filme, anterior à censura que os estúdios cinematográficos se impuseram, filme que dosa tão bem o romance, o sexo, a ironia e a comédia, amarrando-os tão bem - porque, na verdade, o mundo não passa de uma longuíssima comédia dos sexos... Exemplo cabal da aptidão do conde Alfred Renard pelas mulheres é aquela cena inicial, em que ele tenta administrar duas amantes, enfrenta o marido de uma delas e, imperdíveis reviravoltas depois, abotoa o vestido da moça sob os olhos do agradecido e apaixonado marido dela. E, então, a cena em que o conde, já convocado de volta à Silvânia, canta a rainha (e para a rainha): "Loves I've known are buried in the past/ They could last with you/ None of them could ever hold me fast/ In the way you do. (...)/ Eyes of Lisette, smile of Mignonette/ The sweetness of Suzette/ In you displayed/ Grace of Delphine, charm of Joséphine/ The cuteness of Pauline/ In you, arrayed.". Essa cantada debochada, bem ao estilo de Chevalier, é uma delícia e merece ser vista:
Esta estudante de literatura e teatro teve, ainda, uma grata surpresa ao encontrar neste filme tantos elementos do teatro cômico-musicado: o par romântico, a comédia física, os trocadilhos sexuais, números musicais atados mais ou menos frouxamente à ação - e neles, os duetos românticos. Estrutura usada nos palcos da França, de Portugal, do Brasil, e depois tão bem aproveitados por esse mestre da comédia ligeira que é Lubitsch. Infelizmente, Hollywood não o deixou ser tão alegre e saltitante por tanto tempo... Então, vale a pena aproveitar esse filme, imperdível para quem quer conhecer uma das mais bem acabadas matrizes dos musicais da capital do cinema. E também para quem quer ver a bela Jeanette MacDonald no primeiro e mais livre papel de sua carreira.
Um comentário:
Linda postagem, as fotos são especiais. Vi Maurice uma vez na TV (acho) minha mãe o admirava e falou da elegancia dele.
As emoções não envelhecem.
beijos
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