domingo, 1 de março de 2009

Um filme muito especial de Hitchcock: “Quando fala o coração” (Spellbound, 1945)

Se me perguntassem por que admiro tanto o trabalho de Hitchcock, eu diria que é porque ele consegue ser muito popular sem, no entanto, perder a compostura. Não é a toa que, como ele próprio explicita naquela longa entrevista que deu a Truffaut, o grau de interesse que nutria pelos filmes os quais dirigia estava diretamente relacionado à admiração que o público lhes votava. 
A famosa sequência do sonho de Spellbound,
desenhada  por Salvador Dalí
Psicose, que levou multidões aos cinemas e rendeu milhões aos cofres da Paramont, parece ter sido um de seus preferidos. 
Sob o signo de capricórnio (Under Capricorn, 1949), em contrapartida, que recebeu uma acanhada recepção do público, mereceu diatribes do diretor: ele queria Ingrid Bergman como protagonista para satisfazer uma veleidade infantil sua (é o que ele diz ele nesse texto bastante revelador), pois ela era a maior atriz atuante na América à época e, supunha ele, o papel da inglesa que se destruía por amor lhe cairia como uma luva (mal sabia ele quão enfaticamente a vida não acabaria, neste caso, imitando a arte, anos mais tarde...). Mais: Hitchcock diz ter optado pelos plano-sequência (segmentos de aproximadamente 10 minutos de duração, sem cortes), mesmo sabendo que a fluidez da câmera não permitiria a construção de qualquer atmosfera de tensão, deixando o filme muito pouco parecido com um “Hitchcock movie”; e apenas ter se recusado a rejeitar o pagamento porque sua estrela recebeu rios de dinheiro e ele achava injusto deixar a empreitada com os bolsos vazios... 
Enfim, Hitch apresenta uma porção de argumentos para explicar o porquê de o público não ter ido ao cinema e o filme não ter sequer sido pago – exemplo claro de alguém que tinha um grande respeito pelos espectadores, ao ponto de ser, às vezes, injusto com sua própria produção, como acontece no caso de Sob o sigo de Capricórnio, um filme belíssimo. 
Trecho deletado da sequência
Essa preocupação - mais que cabível, aliás (graças às plateias o diretor tinha emprego) -, somada ao seu cuidado com as minúcias, conhecimento técnico e possibilidade de gastar largas quantias de dinheiro para transformar suas ideias em realidade, fizeram com que Hitchcock produzisse filmes, ao mesmo tempo, bem acabados e acessíveis ao público.
Isso, quando somado à sua ânsia por cutucar algumas feridas mais ou menos aparentes da sociedade, fazem com que sua obra ainda seja atual e consiga agradar não apenas meia dúzia de intelectuais – como usualmente acontece com as obras dos mestres – mas o público comum, que vai ao cinema para se divertir, se empolgar com as cenas de perseguição ou se emocionar com uma história de amor. 
Michael Chekhov, filho do célebre dramaturgo homônimo, 
foi indicado ao Oscar por sua atuação como o psiquiatra Alexander Brulov 
Há um pouco de tudo isso em Quando fala o coração, um dos meus Hitchs preferidos, tão especial para mim, já que me abriu as portas ao mundo do diretor e de sua estrela (uma das atrizes preferidas, dele e minha).
O plot paga inegável tributo ao melodrama. A personagem de Ingrid, séria e profissional psiquiatra de um asilo de lunáticos, apaixona-se à primeira vista por um colega de trabalho que ela, não muito mais tarde, descobrirá ser o principal suspeito do assassinato de um psiquiatra da casa - psiquiatra do qual ele, que sofre de amnésia, resolve tomar o lugar... A descoberta fará com que ela empreenda, com o rapaz, uma viagem física e psíquica, no intuito de sanar a patologia que o acomete e, enfim, livrá-lo da cadeia. 
Will he kiss me or kill me?
No entanto, a despeito da história de amor batida e do pseudo-freudianismo em volta do qual gira a trama, o filme é fascinante, e isso se deve ao modo como isso tudo é contado.
A simbologia dos óculos da personagem da médica, os quais, na medida em que ela os usa ou deixa de usá-los, mimetizam a sua aproximação e distanciamento do espaço exato da Ciência; as sete portas que se abrem quando ela percebe-se enamorada do médico; a inversão dos costumes vigentes – a força da mulher, que não raro veste pijamas masculinos e gravata – e a fragilidade do homem. Há também uma acertada escolha do preto-e-branco, num momento em que importantes filmes haviam sido rodados em cores, o que aumenta o clima de tensão da trama: enfatiza as linhas pretas na superfície branca, as quais tão funda impressão deixam no rapaz (são marcas de esquis sobre a neve que estão no subconsciente da personagem, resquícios do crime por ele testemunhado e esquecido). 
E há, acima de tudo, a Ingrid Bergman. Grande e inimitável Ingrid Bergman, que, ao contrário de algumas divas da Era de Ouro do cinema, não temia se enfear quando isso era pedido pelo papel: o modo como ela se transforma da fria e masculinizada médica – “é surpreendente quando a gente descobre que não era o que supunha” – numa bela mulher, iluminada de dentro para fora, é exemplo claro, num só tempo, de seu desapego e competência. 
Quando fala o coração é uma das produções de Hitchcock em que ele realizou cabalmente o intuito de saciar o gosto do público – tanto que é bem possível assistir ao filme comendo pipoca sem se engasgar com ela – sem que, com isso, abdicasse de seus ideais estéticos. Como eu estou feliz por ele ter sido bem sucedido nesta empreitada!...

Um comentário:

As Tertulías disse...

Tenho que rever este flme... nao o assisto há muitos anos...