“La Bohème” (1926) |
Por fim, o programa Il canone rivisitato/The canon revisited [O cânone revisitado] abordou obras no geral já conhecidas do público amante do cinema silencioso. De novo, destaques são a qualidade da cópia disponível, a possibilidade de vê-la na tela grande, ou ainda a inventividade do acompanhamento musical. ´
Este último caso aplica-se à deliciosa obra alemã “Saxophon-Susi” (1928), de Carl/Karel Lamač, que respinga, em sua temática e em sua montagem, a sinuosidade do jazz, mimetizada maravilhosamente pelo trio Neil Brand, no piano, Frank Bockius, na bateria, e Francesco Bearzatti tecendo o leitmotif de Susi no saxofone.
Desempenhada por Anny Ondra, a protagonista é uma jovenzinha da elite econômica que, por muito amar o jazz e o teatro ligeiro, seu palco principal de expressão, acaba trocando de lugar com a amiga pobre, juntando-se a uma companhia teatral mambembe, enquanto a amiga é internada numa escola de boas-maneiras – local contrapontístico à vivacidade que poreja da trupe alimentada por este gênero musical que então era considerado o epítome da modernidade. Susi torna-se, às barbas da família, dançarina e saxofonista da moda.
Uma cena impagável é quando a jovem, retornando à sisuda casa onde crescera, é convencida pelos pais a convidar as amigas da suposta escola de boas-maneiras para um chá, e alguns acordes da música da moda – não por acaso, tocada por Susi – soa no gramofone da família, levando todo o grupo a abandonar-se aos irresistíveis requebros do jazz, sob os olhares perplexos dos pais da jovem e de toda a ancestralidade que preenche as paredes do local.
Mas o “cânone revisitado” em Pordenone este ano foi sobretudo o dramático. A começar pelo dinamarquês “Blade af Satans Bog” (Leaves from Satan’s Book, 1920), de Carl Th. Dreyer, rodado pela afamada Nordisk – longo, porém, também belo, no esforço enciclopédico comum àqueles tempos de englobar toda a história do mundo no espaço de uma película.
Nele, quatro episódios separados são atravessados pela personagem de Satanás, anjo caído que recebe de Deus a condenação de tentar os humanos. O filme cobre os últimos momentos de Jesus, depois da traição de Judas, a inquisição espanhola, a Revolução francesa e, finalmente, a guerra civil finlandesa, no ano de 1918. Neste último episódio, uma jovem funcionária do telégrafo é tentada a cometer um ato de traição. A resistência da moça faz com que o ciclo fatal se quebre.
Da Dinamarca de 1921 para a Itália de 1917. A obra em questão é “Rapsodia Satanica”, de Nino Oxilia, rodado pela Cines e protagonizado por esse epítome de diva que foi Lyda Borelli; filme sobre o qual já tive a oportunidade de escrever no início de 2021. Naquele momento eu o havia visto num canal num link do Youtube, numa versão que passou pelo crivo do laboratório bolonhês L’Immagine Ritrovata – o qual devolveu toda a pujança original deste filme feito com as mais diversas técnicas de coloração da imagem. Vê-lo na tela grande, numa experiência tão próxima àquela vivenciada pelo público de cem anos atrás, foi uma experiência inesquecível. Borelli, Oxilia e a Cines concorrem para criar, de forma absolutamente sedutora, um veículo para a exacerbação dos dotes físicos (e metafísicos) de sua estrela, mulher feita de luz.
“Rapsodia Satanica” coloca exemplarmente à baila o funcionamento do star system. O fio de enredo que o sustenta é mera desculpa para o desfile da diva em cena, tingida pelas cores as mais estupefacientes.
E, enfim, esta revisita do cânone brindou-nos com uma obra maior da maior de todas as atrizes do cinema silencioso: a película norte-americana “La Bohème” (1926), protagonizada por uma Lillian Gish em estado de graça, e pelo sempre satisfatório galã John Gilbert.
Dirigida pelo grande King Vidor, a obra é menos baseada na ópera de Puccini que no romance “La Bohème: scenes de la vie de Bohème”, de Henri Murger.
Enquanto a obra operística apressa o idílio amoroso e o interrompe bruscamente, no filme a história caminha mais a passo, e tecem-se de forma detalhada não apenas a boemia dos rapazes de vida airada do Quartier Latin, mas a vida de labor da bordadeira Mimi – leitura, aliás, que desce às raias do realismo neste último caso, pela interpretação cuidadosa, pormenorizada, realmente inacreditável de Lillian Gish.
Atriz inteligente, Gish constrói a sua personagem como um ser etéreo, quase que descolado deste mundo, mesmo quando ela, vestindo seu vestido de gaze primaveril, corre feliz pelos campos, ao lado do amado Rodolphe, ou narra com vivacidade, a um possível investidor do namorado, os episódios da peça de teatro que ele estava escrevendo.
Marcada pelo signo da abnegação, como tantas mulheres, caberá a Mimi o paulatino esvaecimento, até que uma carruagem a arrasta como trapo ao reduto dos boêmios, onde ela morrerá nos braços dos seus. Que honra vê-la na tela grande, com os acordes da amada “Bohème” pucciniana vez por outra atravessando o acompanhamento que Donald Sosin realizou para a obra!
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