segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Rusalka no Rio de Janeiro: suavidade e sanha num espetáculo excepcional


Em 1901, Antonín Dvořák dá à luz um lúgubre conto de fadas, Rusalka. O libreto, de autoria de Jaroslav Kvapil, dialoga sobretudo com The Little Mermaid, de Hans Christian Andersen, e Undine, de Friedrich de la Motte Fouqué, escritos nas primeiras décadas de 1800. A história do enlace impossível entre uma criatura aquática e um homem poreja um ceticismo tributário desse início do século XIX. Se tais entes, oriundos das mitologias germânica e escandinava, seguiram vívidos na cultura ocidental (aproveitados por homens como, por exemplo, Richard Wagner e Maurice Maeterlinck), o desenvolvimento técnico galopante que ocorreria até fins do século XIX desmantelaria qualquer idealismo; o desejo de união dos opostos permaneceria irrealizável. 
Antes de Rusalka, mesmo uma dupla de artistas brasileiros tomaria o arquétipo em suas mãos. Coelho Netto (libretista) e Delgado de Carvalho (compositor) criam, em 1898, a “balada em 1 ato em prosa rítmica” Hóstia, na qual é um ondino que se apaixona por uma mortal, ameaçando destruir o vilarejo onde ela mora caso não seja correspondido. Da mitologia nórdica, Coelho Netto depreende a figura fluida da ondina/ninfa, entidade aquática que atrai os viajantes e os faz morrer afogados. Imagina uma cerimônia propiciatória na qual Selma, pastora loura de olhos claros, é conduzida por sacerdotisas de seu povoado até o ondino que deseja desposá-la. Embora ela seja salva pelo namorado logo após submergir, a criatura cumpre o prometido e destrói o povoado onde o casal vivia. 
Rusalka é antes apaixonada que cruel, embora os seus desejos também se revelem mortíferos. Encantada por um príncipe que sempre se banha no lago onde ela habita, a ninfa pede à bruxa Jezibaba que a transforme em mulher para gozar das carícias dele. Jezibaba atende o seu desejo, porém, o fascínio que marca o encontro do casal dura pouco – o príncipe desencanta-se de Rusalka tão logo ela chega em seu reinado tão terreno, tão pragmático. 
Ele precisa de uma princesa que seja também uma mulher do mundo, para entreter os seus convidados em seus domínios que nada devem a um Estado moderno – porém, ela, embora seja linda, é demasiado etérea e, além de tudo, muda, pois a bruxa, como contrapartida para a realização do feitiço, retira-lhe a voz. Trocada por outra, Rusalka volta ao encontro dos seus. No entanto, este retorno é a perdição dela e do seu amado. Embora ele a siga arrependido, acabará por perecer nos braços dela, prova de que qualquer felicidade eterna inexiste. 
Influenciados por arquétipos imemoriais já ressignificados ao longo do século XIX, Dvořák e Kvapil inventam um mundo mágico atravessado por questões concernentes à aurora do século XX, às quais o diretor cênico André Heller-Lopes adiciona questões próprias do nosso tempo. Com a colaboração do cenógrafo Renato Theobaldo, do iluminador Gonzalo Córdoba e do figurinista Marcelo Marques, cria uma dicotomia entre o reino da fantasia e a realidade crua. 
No primeiro e no terceiro atos da obra, o palco repercute a sua função empírica de palco, o que dá ao espetáculo um potente teor metalinguístico. Ao fundo dele instalou-se um telão em formato de “V”. Um conjunto de cadeiras e estantes de partituras, ao centro e ao fundo, e um pódio, diante deles, denotam que naquele espaço se apresentará uma orquestra. Em toda a extensão do fundo há um tablado para o desfile das personagens. No proscênio à esquerda há um piano. Enquanto Rusalka (Ludmilla Bauerfeldt) desliza suave entre o tablado e as cadeiras, Jezibaba (Denise de Freitas) entra severa em cena, com a batuta nas mãos e a partitura debaixo do braço. Ao longo desta leitura de Rusalka, veremos que ela é a regente da vida da protagonista, autora do seu principal desejo, o de ser humana, e também de sua queda - tanto que, nos estertores do terceiro ato, é ela que regerá, irônica, os acordes finais da ópera e da vida da ninfa, que perece junto daquele que ama. 
A Rusalka carioca foi um espetáculo de altíssimo nível, que demonstra a qualidade tanto das equipes artísticas quanto dos cantores líricos nacionais. O coro e a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro estiveram sob a ótima batuta de Luiz Fernando Malheiro. Encenação, iluminação e figurinos operaram em simbiose. O trabalho de Theobaldo somou imagens veristas de ambientes externos, como o fundo do mar, paisagens marítimas e picos rochosos, e itens cênicos próprios de espaços fechados, como teatro ou nightclubs, fazendo conviver a natureza e o artifício; o espaço da imaginação e o da realidade. A iluminação de Gonzalo Córdoba, eivada de brancos, vermelhos e roxos, transforma esse espaço dicotômico num espaço onírico, que a realidade insiste em atravessar e macular. 
O figurino de Marcelo Marques cria uma Rusalka entre humana e sobre-humana – metáfora que tão bem define a artista que a representou. O vestido azul do primeiro ato – fluido, porém comezinho, recuperando a dimensão cotidiana da cantora que ensaia o espetáculo que vai apresentar, é substituído, no segundo ato, por um vestido branco de princesa da Disney, quando ela imagina que realizará o seu sonho dourado ao lado do príncipe encantado; e, enfim, por um vestido acinzentado feito de retalhos, fechado, na parte traseira, por uma espinha de peixe que se sobrepõe à coluna vertebral da artista, recuperando o lugar de criatura metamórfica da personagem, num só tempo terrena e divina. 
A qualidade do trabalho de Marques se estende a outras personagens do espetáculo, como o príncipe – entre a armadura medieval que recupera o seu lugar de personagem de fábula e o terno que lhe dá uma dimensão de político moderno. E também de Jezibaba, que, se no primeiro ato, surge envergando um fraque de maestra – sublinhando a dimensão de orquestradora da vida da ninfa –, no terceiro usa um exuberante vestido negro cujos braços são cobertos por andrajos, e, na cabeça, cabelos de Medusa e uma coroa de pedras; figurino que lhe dá um éthos, num só tempo, de criatura das trevas e de rainha. 
Ótimo encenador, Heller Lopes dirige à excelência o seu elenco de ótimos cantores. Sua tríade de ninfas, composta por Carolina Morel, Mariana Gomes e Lara Cavalcanti, timbrou bastante bem e exacerbou, em cena, a fluidez das personagens. Geilson Santos e Hebert Campos realizaram bem-sucedidas (e humoradas) intervenções como Vaňku e Jářku.
O barítono Licio Bruno, num grande momento de sua carreira, foi um Vodnik – o senhor das águas e pai/protetor de Rusalka – ao mesmo tempo temerário e terno, em seu esforço de dissuadir a ninfa de seu sonho de se tornar humana e de protegê-la quando ela retorna ao lago e vê-se diante do castigo de Jezibaba. 
O tenor Giovanni Tristacci deu corpo a um príncipe cuja assertividade foi permeada pela timidez, algo esperado, não apenas do ponto de vista cênico, já que era um humano apaixonado por uma deidade, mas também porque contracenou com a soprano Eliane Coelho (deliciosa em cena), no papel da Princesa Estrangeira, artista que é uma entidade dos palcos mundiais há cinco décadas. 
A mezzo-soprano Denise de Freitas exacerbou o sadismo da personagem de Jezibaba – que, nas mãos de artista menos experimentada, poderia se transformar numa bruxa caricata. A personagem é nada menos que a artífice da queda de Rusalka - mesmo depois de espoliá-la de todos os seus bens materiais, rouba-lhe a voz, algo ainda mais cruel se entendermos que, sob a ótica da encenação, Rusalka não é apenas uma ninfa, mas literalmente uma cantora de ópera. O sadismo de Jezibaba é atravessado por um bem-vindo deboche, quando ela prepara a poção que engendrará o infortúnio da pobre ninfa, o que lhe tira do lugar de personagem plana. Além de impregnar dramaticamente a sua personagem de psicologismo, a artista é uma cantora de tirar o fôlego, dominando com maestria os trânsitos loucos da partitura entre os graves e os agudos. 
Uma contraparte à sua altura foi Ludmilla Bauerfeldt - que apenas ao caminhar pela cena já me tira lágrimas dos olhos. Ludmilla realizou um trabalho cênico de qualidade superlativa. Seja o seu longo e dificultoso contorcimento enquanto, no terceiro ato do espetáculo, cantava o seu infortúnio, observada por Jezibaba, seja o seu empalidecer – sim, porque ela literalmente empalideceu – ao tentar separar o amado príncipe de sua rival, no segundo ato. E vocalmente, Ludmilla construiu uma Russalka brilhante, repleta de agudos cristalinos. 
Ludmilla e Denise, ademais, realizaram trocas cênicas excelentes. O gênero operístico requer tanto domínio técnico do canto quanto conhecimento de teatro, como bem sabemos. Nessa Rusalka, as duas artistas estiveram todo o tempo “em situação”, como se diz no jargão teatral, brindando-nos com teatro de grande qualidade – destaque-se o momento em que Jezibaba pede à ninfa a morte do príncipe, e ambas encetam uma luta física e vocal em que alternam o protagonismo. Que prazer vê-las contracenando. Quiçá isso possa acontecer outras vezes!

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Um hino à liberdade: "Nabucco" (Giuseppe Verdi) em BH


Entre os dias 17 e 23 de outubro, o Palácio das Artes de Belo Horizonte reencenou, depois de 13 anos, a montagem de Nabucco (1842) idealizada por André Heller-Lopes, com cenografia de Renato Theobaldo. A obra de Giuseppe Verdi, com libreto de Temistocle Solera, é conhecida sobretudo por “Va, pensiero, sull’ali dorate”, quiçá o número coralista mais afamado de todos os tempos, repetido em todas as galas do gênero. 
Baseada no (melo)drama em quatro atos Nebuchodonoser (1836), de Auguste Anicet-Bourgeois e Francis Cornu, a obra operística faz emergir as características mais indeléveis deste gênero teatral: o traçado plano das personagens, que exibem à flor da pele as suas qualidades e os seus defeitos, e a dicotomização da trama, que se transforma numa luta do bem contra o mal, dos judeus contra os assírios –, mais especificamente, dos cristãos contra os não-cristãos. 
O gênero melodramático restitui à população francesa, no interior da cena teatral, o âmbito da religião, contestada durante a Revolução (quando muitos templos foram postos abaixo). A visada é conservadora, aproximando-se as personagens boas do ideário do cristianismo e vice-versa. Vertida para o gênero operístico, Nabucco, além de servir a já religiosa sociedade italiana, ganha um aspecto simbólico: 
Produzida durante o processo de unificação italiana, quando ainda inexistia o país que conhecemos hoje, e a Itália, em sentido lato, enfrentava o domínio austríaco, a obra torna-se um libelo à liberdade, entoado de forma contumaz no referido coro, no qual os hebreus escravizados dão asas aos pensamentos, já que seus corpos jazem submetidos ao jugo assírio: “Vá, pensamento, sobre as asas douradas/Vá, e pousa sobre as encostas e as colinas/Onde os ares são tépidos e macios/Com a doce fragrância do solo Natal!”. 
Embora construídas em contextos históricos específicos, as obras de arte se abrem a leituras múltiplas à medida que atravessam tempos e espaços. O gênero teatral, afetado pelas reflexões do pós-moderno e do pós-dramático, e o operístico, pelo Regietheater, quando tomam a peito a encenação de uma obra clássica, não raro intervêm nela até tornarem-na irreconhecível; pretendendo, assim, eliminar a carga de preconceito que nela veem – leitura anacrônica, que rejeita o fato de essas obras terem sido produzidas num tempo específico, e, portanto, trazerem impregnadas marcas desse tempo. A montagem de Nabucco capitaneada por André Heller-Lopes caminha a contrapelo disso, e é isso, suponho, que a torna tão bem-sucedida. 
Ao invés de bater de frente com a dicotomia colocada pelo libreto, desconstruindo-a e, portanto, desmontando a estrutura que põe a ópera em pé, o sempre competente Heller-Lopes, em consonância com o magistral Theobaldo, os belos figurinos de Marcelo Marques e a eficiente luz de Fábio Retti, resolve situá-la historicamente. Além de dar fluência ao âmbito musical, isso favorece a legibilidade do enredo intrincado por parte do público. 
Jerusalém, e depois a Assíria, são construídos por grandes e maleáveis molduras verticais revestidas por canudos de papelão que, amoldados, dão a ver, à medida que são manipulados, as silhuetas das divindades. Os fiéis cristãos e o exército de Nabuco, que em breve invadirá o templo, são claramente discerníveis. Os primeiros trazem kipás à cabeça e talits nos ombros – ambos os acessórios representam o respeito a Deus, e o segundo é usado como cobertura durante as preces. 
A representação da fé exacerba o desrespeito de Nabuco, que invade o templo montado num cavalo dourado – signo, de resto, da sua megalomania, como o bezerro dourado que será destruído quando o rei da Assíria põe fim à sua sanha, no desfecho da história. Temos aqui um manejo inteligente dos signos, que além de conseguirem avançar a história, dialogando com o repertório cultural, ainda chancelam a inteligência do público, permitindo que ele construa a sua interpretação sobre o que vê. 
Isso não significa ausência de liberdade interpretativa. A encenação impregna as personagens – sobretudo as femininas – de densidade psicológica. Por exemplo, no momento em que Nabuco é tocado pela loucura, punição divina pela sua arrogância, atravessam os olhos de Fenena (Denise de Freitas), a sua filha legítima e a “mocinha” da história, um brilho ganancioso semelhante àquele que tem a sua irmã ilegítima Abigaille (Eiko Senda), a “vilã”. A sede de poder toca a todos. Também Abigaille ganha curva dramática, da ira, quando descobre que seu amado Ismaele ama a sua irmã, à tristeza, quando narra seus sonhos de felicidade ao lado dele, ao seu aparecimento derradeiro, moribunda diante do bezerro de ouro destruído. 
E mesmo Nabuco (Rodrigo Esteves), que migra do desejo cego de conquista – o tronco ereto com que invade o templo judaico – até o total despojamento de si, e, enfim, à tomada de consciência de sua sanha. Esse jogo de cena resulta de um trabalho de excelência do diretor cênico e da inteligência do elenco. Heller-Lopes conseguiu rendimento dramático também do Coral Lírico de Minas Gerais, que se mostrou circunspecto, belicoso e melancólico nos momentos certos. Enfim, estivemos, em BH, diante de teatro de verdade, que abordou com profundidade as relações humanas. 
Dirigido por Hernán Sánchez Arteaga, o coro realizou um belo trabalho. Timbrou admiravelmente no famigerado “Va, pensiero, sull’ali dorate”, cena, ademais, inesquecível, em que o grupo, sob o cárcere assírio, mimetizou fisicamente o movimento de seu pensamento, escalando as grades que o prendiam em terreno inimigo. Porém, igualmente amalgamou-se bem aos solistas, num número como o “Viva Nabucco!”, no final do primeiro ato, extremamente bem realizado também devido à regência segura de Ligia Amadio, a quem coube a direção musical da produção. 
Os papéis protagonistas couberam a alguns dos mais respeitados artistas do cenário lírico brasileiro. 
A soprano Fabíola Protzer, no pequeno papel de Anna, irmã do sumo sacerdote judaico Zaccaria, exibiu um belo timbre e também correspondeu, no aspecto cênico, às exigências do diretor. O papel do sacerdote coube a Sávio Sperandio, que já havia realizado, no mês anterior, um ótimo trabalho na produção paulistana da obra. Com seu timbre potente e sua dramaticidade sempre colocada a serviço da cena, Sávio passou com agudeza pelo seu número de entrada, em que ele apresenta Fenena como escrava aos seus asseclas, e tinge de ira a oração “Tu sul labbro”, quando, no 2. ato da ópera, já se encontra sob domínio de Nabuco. 
O tenor Giovanni Tristacci criou um Ismaele suave e passional. Seu timbre brilhante fez-se ouvir no trio “Fenena! O mia diletta!”, no qual ele, ademais, se mostrou um responsivo parceiro cênico para sobretudo Denise de Freitas, de quem foi o par romântico, mas também para Eiko Senda, cuja personagem nutria por ele um amor pouco abnegado. 
Na parte de Fenena, a mezzosoprano Denise de Freitas fez emergir as superlativas qualidades de atriz e de cantora que são uma constante em seus trabalhos. Do ponto de vista teatral, foi uma Fenena extremamente convincente e humana, somando entrega abnegada (ao amor, aos seus oponentes) e assertividade. Com sua conhecida potência vocal, destacou-se nos ensembles – a exemplo do Finale do 2. ato, e demonstrou domínio vocal e profundidade dramática ao entoar, num misto de tristeza e esvaecimento, a ária “Oh, dischiuso è il firmamento”. 
Coube a Eiko Senda o papel de Abigaile, e ela deu corpo com competência à ambiciosa assíria que paulatinamente vê o seu mundo ruir. A leitura do documento em que descobre que é filha não do rei, mas de escravizados (“Anch’io dischiuso un giorno”), a sua disputa com Nabuco, no 3. ato (“Donna, chi sei?”) e, enfim, a sua conversão, no recitativo final, foram cantadas de forma passional. 
O papel-título coube ao barítono Rodrigo Esteves, que o desempenhou com maestria. Ótimo ator, imprimiu com destreza a heráldica da personagem do rei, na primeira parte do espetáculo, e construiu com delicadeza a sua insânia, na segunda parte. Seu timbre potente, mas também quente e aveludado, resultaram numa performance notável. 
A coesão do conjunto, acompanhado pela ótima Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, resultou num espetáculo emocionante. Este resultado denota algo que deve ser diretriz numa montagem operística: a escolha de vozes apropriadas para os papéis e o respeito do encenador pela obra que tem em mãos, e pela carga cultural que, para o bem ou para o mal, ela carrega.

As imagens foram retiradas das redes sociais dos participantes da encenação.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2024: parte 8

“La Bohème” (1926)

Por fim, o programa Il canone rivisitato/The canon revisited [O cânone revisitado] abordou obras no geral já conhecidas do público amante do cinema silencioso. De novo, destaques são a qualidade da cópia disponível, a possibilidade de vê-la na tela grande, ou ainda a inventividade do acompanhamento musical. ´
Este último caso aplica-se à deliciosa obra alemã “Saxophon-Susi” (1928), de Carl/Karel Lamač, que respinga, em sua temática e em sua montagem, a sinuosidade do jazz, mimetizada maravilhosamente pelo trio Neil Brand, no piano, Frank Bockius, na bateria, e Francesco Bearzatti tecendo o leitmotif de Susi no saxofone. 

Desempenhada por Anny Ondra, a protagonista é uma jovenzinha da elite econômica que, por muito amar o jazz e o teatro ligeiro, seu palco principal de expressão, acaba trocando de lugar com a amiga pobre, juntando-se a uma companhia teatral mambembe, enquanto a amiga é internada numa escola de boas-maneiras – local contrapontístico à vivacidade que poreja da trupe alimentada por este gênero musical que então era considerado o epítome da modernidade. Susi torna-se, às barbas da família, dançarina e saxofonista da moda. 
Uma cena impagável é quando a jovem, retornando à sisuda casa onde crescera, é convencida pelos pais a convidar as amigas da suposta escola de boas-maneiras para um chá, e alguns acordes da música da moda – não por acaso, tocada por Susi – soam no gramofone da família, levando todo o grupo a abandonar-se aos irresistíveis requebros do jazz, sob os olhares perplexos dos pais da jovem e de toda a ancestralidade que preenche as paredes do local. 
Mas o “cânone revisitado” em Pordenone este ano foi sobretudo o dramático. A começar pelo dinamarquês “Blade af Satans Bog” (Leaves from Satan’s Book, 1920), de Carl Th. Dreyer, rodado pela afamada Nordisk – longo, porém, também belo, no esforço enciclopédico comum àqueles tempos de englobar toda a história do mundo no espaço de uma película. 
Nele, quatro episódios separados são atravessados pela personagem de Satanás, anjo caído que recebe de Deus a condenação de tentar os humanos. O filme cobre os últimos momentos de Jesus, depois da traição de Judas, a inquisição espanhola, a Revolução francesa e, finalmente, a guerra civil finlandesa, no ano de 1918. Neste último episódio, uma jovem funcionária do telégrafo é tentada a cometer um ato de traição. A resistência da moça faz com que o ciclo fatal se quebre. 
Da Dinamarca de 1921 para a Itália de 1917. A obra em questão é “Rapsodia Satanica”, de Nino Oxilia, rodado pela Cines e protagonizado por esse epítome de diva que foi Lyda Borelli; filme sobre o qual já tive a oportunidade de escrever no início de 2021. Naquele momento eu o havia visto num canal num link do Youtube, numa versão que passou pelo crivo do laboratório bolonhês L’Immagine Ritrovata – o qual devolveu toda a pujança original deste filme feito com as mais diversas técnicas de coloração da imagem. Vê-lo na tela grande, numa experiência tão próxima àquela vivenciada pelo público de cem anos atrás, foi uma experiência inesquecível. Borelli, Oxilia e a Cines concorrem para criar, de forma absolutamente sedutora, um veículo para a exacerbação dos dotes físicos (e metafísicos) de sua estrela, mulher feita de luz. “Rapsodia Satanica” coloca exemplarmente à baila o funcionamento do star system. O fio de enredo que o sustenta é mera desculpa para o desfile da diva em cena, tingida pelas cores as mais estupefacientes. 
E, enfim, esta revisita do cânone brindou-nos com uma obra maior da maior de todas as atrizes do cinema silencioso: a película norte-americana “La Bohème” (1926), protagonizada por uma Lillian Gish em estado de graça, e pelo sempre satisfatório galã John Gilbert. Dirigida pelo grande King Vidor, a obra é menos baseada na ópera de Puccini que no romance “La Bohème: scenes de la vie de Bohème”, de Henri Murger. 
Enquanto a obra operística apressa o idílio amoroso e o interrompe bruscamente, no filme a história caminha mais a passo, e tecem-se de forma detalhada não apenas a boemia dos rapazes de vida airada do Quartier Latin, mas a vida de labor da bordadeira Mimi – leitura, aliás, que desce às raias do realismo neste último caso, pela interpretação cuidadosa, pormenorizada, realmente inacreditável de Lillian Gish. Atriz inteligente, Gish constrói a sua personagem como um ser etéreo, quase que descolado deste mundo, mesmo quando ela, vestindo seu vestido de gaze primaveril, corre feliz pelos campos, ao lado do amado Rodolphe, ou narra com vivacidade, a um possível investidor do namorado, os episódios da peça de teatro que ele estava escrevendo. 
Marcada pelo signo da abnegação, como tantas mulheres, caberá a Mimi o paulatino esvaecimento, até que uma carruagem a arrasta como trapo ao reduto dos boêmios, onde ela morrerá nos braços dos seus. Que honra vê-la na tela grande, com os acordes da amada “Bohème” pucciniana vez por outra atravessando o acompanhamento que Donald Sosin realizou para a obra!

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2024: parte 7

La Sultane de l'amour (1919)

Algumas sessões noturnas da Giornate, exibidas a partir das 20h45-21h00, são apresentadas como Eventi Speciali/Special Events [Eventos Especiais], em geral com acompanhamento musical de grupos orquestrais maiores. Destaco, este ano, a exibição dos norte-americanos “3 Bad Men” (1926), de John Ford, e “Girl Shy” (1924), de Fred Newmeyer, e do francês “La sultane de l’amour” (1919), de Charles Burguet e René Le Somptier. 
“3 Bad Men” (1926) teve acompanhamento da Orchestra da Camera di Pordenone e regência de Timothy Brock, também autor do acompanhamento musical. Trata-se de um western que já apresenta todas as principais características de Ford – que depois se celebrizaria por, entre outros, “No tempo das diligências” (1939) e “Rastros de ódio” (1956). Como sói aos filmes do gênero, toma num diapasão heroico a conquista, pelo branco, do Oeste norte-americano, terra indígena. 
As longas cenas de batalha pela disputa do território, uma constante nesta cinematografia, também não faltam aqui. Numa delas morre o pai da mocinha – mulher assertiva que se ombreava ao velho na Marcha para o Oeste. Algo não tão típico no cinema clássico, embora comum na cinematografia de Ford, é a construção de tipos matizados, não totalmente bons, nem totalmente ruins, como é o caso desses “3 homens maus”, que, depois da morte do velho, se tornarão braços direitos da mocinha. 
Girl Shy” (Fred C. Newmeyer, Sam Taylor, 1924) foi gloriosamente acompanhado pela pordenonense Zerorchestra, de levada jazzística, e a sua partitura foi escrita por Daan van den Hurk. Protagonizado por Harold Lloyd, o filme faz uma impagável piada do tipo de machão clássico. Lloyd, ator cômico bem conhecido do público por caminhar na contracorrente deste tipo, é o tímido aprendiz de alfaiate que resolve escrever um livro para enriquecer. Na viagem em que submeteria a obra ao editor, ele encontra a personagem de Jobyna Ralston, e o sucesso profissional passa, então, a ter para si uma finalidade especial: ele deseja desposá-la. 
A comicidade brejeira dos filmes de Lloyd – por exemplo, a cena em que ele, dentro do trem em movimento, resgata, com o cabo da bengala, o cachorrinho da jovem, que escapa dela e salta na via férrea – soma-se à crítica social (e também cinematográfica) ao homem que submete às suas vontades todos os tipos femininos existentes (os quais foram também, em grande medida, construídos pela cinematografia): a flapper, a vamp, etc. 

“La sultane de l’amour” (Charles Burguet e René Le Somptier, 1919) teria, originalmente, um acompanhamento musical de artistas libaneses, os quais, todavia, segundo Jay Weissberg, diretor da Giornate, não puderam aceitar a incumbência graças ao conflito em seu país. A música, então, ficou a cargo de um trio de musicistas da Giornate, Mauro Colombis (piano), Frank Bockius (bateria), Elizabeth-Jane Baldry (harpa). 
O filme francês lê os usos e costumes árabes de forma romantizada e exotizante. A história é um fio, pretexto para o desfile de festins e a apresentação de danças protagonizadas por homens e mulheres ricamente vestidos, os quais ganham ainda mais relevo porque o filme é colorizado por meio de várias técnicas – as cores e a música são elementos que negam a imagem que o grande público tem deste cinema, mudo e em preto e branco. 
“La sultane de l’amour” conta a história do filho do sultão que, ao se fingir de reles pescador, se apaixona por uma jovem que ele encontrara na praia. A obra narra o périplo deste rapaz para encontrá-la, e os esforços de um velho e pusilânime sultão para desposá-la. A obra está coalhada de números de dança, perseguições e expedientes mágicos – como a luneta graças à qual o mocinho descobre onde a jovem fora escondida, conseguindo, assim, salvá-la. Malgrado a obra se arraste e o seu enredo seja inane, ela é uma festa para os olhos.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2024: parte 6

O programa voltado às Riscoperte/Rediscoveries [Redescobertas] apresentou uma seleção bastante heterogênea de filmes: comédias e farsas, filmes naturais (alguns dos quais flertavam com a encenação), aventuras nas montanhas, na guerra e submarinas. 
“Peg o’ the mounted” (Alfred J. Goulding, 1924) é uma comédia desopilante protagonizada pela adorável Baby Peggy, atriz realmente vocacionada para o métier – que partiu faz um par de anos e recentemente esteve na Giornate, apresentando uma retrospectiva de sua obra –, uma vez que se tratava de um bebê quando a série de filmes que ela protagonizava foram rodados. Neste ela é a responsável por prender uma quadrilha de bandidos que leva o pânico – construído, claro, do ponto de vista cômico, levando-se em consideração o próprio papel inusitado da criança transformada em polícia – às redondezas onde ela vive. 
“Mr. Jack ducks the alimony” (C. J. Williams, 1916) foi o filme escolhido pela David Selznick School para ser preservado na Eye Film Institute este ano – o consórcio entre o Film Institute de Rochester, a instituição holandesa e a Giornate já data de algumas décadas. Trata-se de uma farsa verdadeiramente hilária que gira em torno do homem que decide se tornar soldado depois de descobrir que não precisaria pagar pensão à ex-mulher caso o fosse. A obra toma como foco os esforços, claro, canhestros deste inusitado combatente. É um bom exemplo de obra que volta uma visada cômica à sanguinária 1ª Grande Guerra, conflito contemporâneo ao momento em que ela foi rodada. 
Denominado “Undersea Adventures”, uma porção do programa de redescobertas deste ano trouxe à baila filmes tematizando aventuras subaquáticas, rodadas em períodos e com técnicas e objetivos distintos. “Dans le sous-marin” (1908), por exemplo, é um filme de atrações que bebe consideravelmente da obra de Méliès. O filme tem início com o mergulho de uma maquete em cartolina de um submarino. No fundo do mar, uma trucagem mostra os peixes atravessando mergulhadores que tentavam destruir o veículo: tudo rodado no seco, como fazia Méliès (sequências soberbas dessas filmagens são reproduzidas no maravilhoso “A aventura de Hugo Cabret”, de 2012). Ao contrário das obras do mago-cineasta, este filme tende ao drama: os tripulantes do submarino se despedem de forma altissonante ao descobrirem que sucumbirão. 
Já o norte-americano “Wonders of the sea” (1922), de Ernest Williamson, é uma obra surpreendente por vários motivos. Pela apresentação didática que faz do método de filmagem submarina do diretor, unindo as características do documental àquelas da fábula, já que a apresentação do fundo do mar é costurada pelos mergulhos de uma mergulhadora que o filme lê como uma sereia moderna. Pela leitura abertamente colonialista, a qual, ao mesmo tempo em que endeusa a jovem, objetifica o negro nativo das plagas onde o filme é rodado – a quem cabe, no filme, tarefas braçais como a de mergulhar em busca do peso que ela utilizara para conseguir chegar mais rápido às profundezas. Pela intervenção pouco ecológica que faz da vida marinha, já que precisa iluminar profusamente o fundo do mar para poder filmá-lo. E, não obstante, pela técnica surpreendente graças à qual o fundo do mar pôde se tornar conhecido do público. 
Por fim, “The land of promise” (Yaackov Ben Dov, 1924) é um filme israelense exasperante, quando lido, hoje, à luz da invasão de Israel aos territórios palestinos, e da matança daí oriunda. Rodada no princípio dos anos de 1920, a obra faz alusão ao trecho bíblico concernente à terra prometida. Mostra a penetração paulatina de Israel pelo território que as escrituras sagradas consideravam seu por direito: a construção de acampamentos transformados, depois, em suntuosas residências. Sublinha o desenvolvimento industrial. 
Deslinda os costumes do povo, as festas e danças típicas, a alegria típica desses eventos. Malgrado a histórica diáspora dos judeus e o holocausto que aconteceria nos anos subsequentes, não há como não observarmos este filme em relação com o que acontece hoje. 
A música de José María Serralde Ruiz, pianista que acompanhou esta sessão, foi precisa; dramática e grave, caminhando mesmo a contrapelo da obra, nos momentos mais desopilantes dela, o que julgo um gesto crítico necessário: o acompanhamento musical produzido hoje em dia para o cinema silencioso, se por um lado precisa se historicamente informado, dialogando com o que se fazia durante a voga deste cinema, nem por isso deve deixar de ser crítico.