quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Um hino à liberdade: "Nabucco" (Giuseppe Verdi) em BH


Entre os dias 17 e 23 de outubro, o Palácio das Artes de Belo Horizonte reencenou, depois de 13 anos, a montagem de Nabucco (1842) idealizada por André Heller-Lopes, com cenografia de Renato Theobaldo. A obra de Giuseppe Verdi, com libreto de Temistocle Solera, é conhecida sobretudo por “Va, pensiero, sull’ali dorate”, quiçá o número coralista mais afamado de todos os tempos, repetido em todas as galas do gênero. 
Baseada no (melo)drama em quatro atos Nebuchodonoser (1836), de Auguste Anicet-Bourgeois e Francis Cornu, a obra operística faz emergir as características mais indeléveis deste gênero teatral: o traçado plano das personagens, que exibem à flor da pele as suas qualidades e os seus defeitos, e a dicotomização da trama, que se transforma numa luta do bem contra o mal, dos judeus contra os assírios –, mais especificamente, dos cristãos contra os não-cristãos. 
O gênero melodramático restitui à população francesa, no interior da cena teatral, o âmbito da religião, contestada durante a Revolução (quando muitos templos foram postos abaixo). A visada é conservadora, aproximando-se as personagens boas do ideário do cristianismo e vice-versa. Vertida para o gênero operístico, Nabucco, além de servir a já religiosa sociedade italiana, ganha um aspecto simbólico: 
Produzida durante o processo de unificação italiana, quando ainda inexistia o país que conhecemos hoje, e a Itália, em sentido lato, enfrentava o domínio austríaco, a obra torna-se um libelo à liberdade, entoado de forma contumaz no referido coro, no qual os hebreus escravizados dão asas aos pensamentos, já que seus corpos jazem submetidos ao jugo assírio: “Vá, pensamento, sobre as asas douradas/Vá, e pousa sobre as encostas e as colinas/Onde os ares são tépidos e macios/Com a doce fragrância do solo Natal!”. 
Embora construídas em contextos históricos específicos, as obras de arte se abrem a leituras múltiplas à medida que atravessam tempos e espaços. O gênero teatral, afetado pelas reflexões do pós-moderno e do pós-dramático, e o operístico, pelo Regietheater, quando tomam a peito a encenação de uma obra clássica, não raro intervêm nela até tornarem-na irreconhecível; pretendendo, assim, eliminar a carga de preconceito que nela veem – leitura anacrônica, que rejeita o fato de essas obras terem sido produzidas num tempo específico, e, portanto, trazerem impregnadas marcas desse tempo. A montagem de Nabucco capitaneada por André Heller-Lopes caminha a contrapelo disso, e é isso, suponho, que a torna tão bem-sucedida. 
Ao invés de bater de frente com a dicotomia colocada pelo libreto, desconstruindo-a e, portanto, desmontando a estrutura que põe a ópera em pé, o sempre competente Heller-Lopes, em consonância com o magistral Theobaldo, os belos figurinos de Marcelo Marques e a eficiente luz de Fábio Retti, resolve situá-la historicamente. Além de dar fluência ao âmbito musical, isso favorece a legibilidade do enredo intrincado por parte do público. 
Jerusalém, e depois a Assíria, são construídos por grandes e maleáveis molduras verticais revestidas por canudos de papelão que, amoldados, dão a ver, à medida que são manipulados, as silhuetas das divindades. Os fiéis cristãos e o exército de Nabuco, que em breve invadirá o templo, são claramente discerníveis. Os primeiros trazem kipás à cabeça e talits nos ombros – ambos os acessórios representam o respeito a Deus, e o segundo é usado como cobertura durante as preces. 
A representação da fé exacerba o desrespeito de Nabuco, que invade o templo montado num cavalo dourado – signo, de resto, da sua megalomania, como o bezerro dourado que será destruído quando o rei da Assíria põe fim à sua sanha, no desfecho da história. Temos aqui um manejo inteligente dos signos, que além de conseguirem avançar a história, dialogando com o repertório cultural, ainda chancelam a inteligência do público, permitindo que ele construa a sua interpretação sobre o que vê. 
Isso não significa ausência de liberdade interpretativa. A encenação impregna as personagens – sobretudo as femininas – de densidade psicológica. Por exemplo, no momento em que Nabuco é tocado pela loucura, punição divina pela sua arrogância, atravessam os olhos de Fenena (Denise de Freitas), a sua filha legítima e a “mocinha” da história, um brilho ganancioso semelhante àquele que tem a sua irmã ilegítima Abigaille (Eiko Senda), a “vilã”. A sede de poder toca a todos. Também Abigaille ganha curva dramática, da ira, quando descobre que seu amado Ismaele ama a sua irmã, à tristeza, quando narra seus sonhos de felicidade ao lado dele, ao seu aparecimento derradeiro, moribunda diante do bezerro de ouro destruído. 
E mesmo Nabuco (Rodrigo Esteves), que migra do desejo cego de conquista – o tronco ereto com que invade o templo judaico – até o total despojamento de si, e, enfim, à tomada de consciência de sua sanha. Esse jogo de cena resulta de um trabalho de excelência do diretor cênico e da inteligência do elenco. Heller-Lopes conseguiu rendimento dramático também do Coral Lírico de Minas Gerais, que se mostrou circunspecto, belicoso e melancólico nos momentos certos. Enfim, estivemos, em BH, diante de teatro de verdade, que abordou com profundidade as relações humanas. 
Dirigido por Hernán Sánchez Arteaga, o coro realizou um belo trabalho. Timbrou admiravelmente no famigerado “Va, pensiero, sull’ali dorate”, cena, ademais, inesquecível, em que o grupo, sob o cárcere assírio, mimetizou fisicamente o movimento de seu pensamento, escalando as grades que o prendiam em terreno inimigo. Porém, igualmente amalgamou-se bem aos solistas, num número como o “Viva Nabucco!”, no final do primeiro ato, extremamente bem realizado também devido à regência segura de Ligia Amadio, a quem coube a direção musical da produção. 
Os papéis protagonistas couberam a alguns dos mais respeitados artistas do cenário lírico brasileiro. 
A soprano Fabíola Protzer, no pequeno papel de Anna, irmã do sumo sacerdote judaico Zaccaria, exibiu um belo timbre e também correspondeu, no aspecto cênico, às exigências do diretor. O papel do sacerdote coube a Sávio Sperandio, que já havia realizado, no mês anterior, um ótimo trabalho na produção paulistana da obra. Com seu timbre potente e sua dramaticidade sempre colocada a serviço da cena, Sávio passou com agudeza pelo seu número de entrada, em que ele apresenta Fenena como escrava aos seus asseclas, e tinge de ira a oração “Tu sul labbro”, quando, no 2. ato da ópera, já se encontra sob domínio de Nabuco. 
O tenor Giovanni Tristacci criou um Ismaele suave e passional. Seu timbre brilhante fez-se ouvir no trio “Fenena! O mia diletta!”, no qual ele, ademais, se mostrou um responsivo parceiro cênico para sobretudo Denise de Freitas, de quem foi o par romântico, mas também para Eiko Senda, cuja personagem nutria por ele um amor pouco abnegado. 
Na parte de Fenena, a mezzosoprano Denise de Freitas fez emergir as superlativas qualidades de atriz e de cantora que são uma constante em seus trabalhos. Do ponto de vista teatral, foi uma Fenena extremamente convincente e humana, somando entrega abnegada (ao amor, aos seus oponentes) e assertividade. Com sua conhecida potência vocal, destacou-se nos ensembles – a exemplo do Finale do 2. ato, e demonstrou domínio vocal e profundidade dramática ao entoar, num misto de tristeza e esvaecimento, a ária “Oh, dischiuso è il firmamento”. 
Coube a Eiko Senda o papel de Abigaile, e ela deu corpo com competência à ambiciosa assíria que paulatinamente vê o seu mundo ruir. A leitura do documento em que descobre que é filha não do rei, mas de escravizados (“Anch’io dischiuso un giorno”), a sua disputa com Nabuco, no 3. ato (“Donna, chi sei?”) e, enfim, a sua conversão, no recitativo final, foram cantadas de forma passional. 
O papel-título coube ao barítono Rodrigo Esteves, que o desempenhou com maestria. Ótimo ator, imprimiu com destreza a heráldica da personagem do rei, na primeira parte do espetáculo, e construiu com delicadeza a sua insânia, na segunda parte. Seu timbre potente, mas também quente e aveludado, resultaram numa performance notável. 
A coesão do conjunto, acompanhado pela ótima Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, resultou num espetáculo emocionante. Este resultado denota algo que deve ser diretriz numa montagem operística: a escolha de vozes apropriadas para os papéis e o respeito do encenador pela obra que tem em mãos, e pela carga cultural que, para o bem ou para o mal, ela carrega.

As imagens foram retiradas das redes sociais dos participantes da encenação.

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