Ainda estou sob o impacto dos últimos dois filmes que vi no cinema, "Valsa com Bashir" (Vals im Bashir, produção conjunta de Israel, Alemanha, França e uns tantos outros países, 2008) e "Entre os muros" (Entre les murs, França, 2008), pois ambos põem em debate uma questão complexa e de extrema relevância, que é aquela que pondera sobre o lugar da verdade. Vê-la colocada assim, num veículo de entretenimento de massa, é algo reconfortante, especialmente num momento em que o cinema, assim como as demais artes, está tendo de buscar uma linguagem com a qual possa se expressar nesses tempos sem incorrer em anacronismos.
Inovar é sem dúvida arriscado, uma vez que isso pode gerar estranhamento e, consequentemente, repúdio. Se isso é verdade na literatura - que se considera razoavelmente bem sucedida quando vende 1000 cópias - que dirá no cinema, que, devido aos investimentos na produção, requer um público que lhe pague ao menos os custos.
"Valsa" encara esse desafio de cabeça erguida. Em cena, desenhos pálidos de um momento que, por sua tremenda violência, a muito se esvaeceu da memória de seus personagens: a invasão do Líbano por Israel em 1982. A escolha da fotografia do filme é, portanto, extraordinária. O que é melhor para demonstrar uma memória que se esboroa senão um desenho que só toma seus contornos (isso quando consegue apreendê-los, porque, não raro, precisa se contentar com longos quadros quase todo negros).
E que linguagem é mais acertada para pintar a crise que enfrenta a palavra para expressar a "verdade" (e o que é a verdade?) do que aquela que trabalha nos meandros do gênero documental com o cinematográfico, e dele com a HQ. A beleza visual do filme soma-se à relevância do assunto tratado, tocante por abordar a fragilidade que temos para lidar diplomaticamente com o outro sem que, no caso, ele estetize a violência e, assim, a torne apetecível àquele grande público que vai aos cinemas querendo ver sangue, muito sangue.
"Entre os muros" é outro filme que impressiona pela maturidade com que foi concebido. Acho que não conseguiria falar dele se não o comparasse com "Escritores da liberdade" (Freedom Writers, 2007) - pois pensei neste filme durante todo o tempo em que via aquele. "Escritores" coloca defronte aos nossos olhos uma sala de aula de uma escola pública num bairro suburbano localizado nos Estados Unidos, e nos faz conhecer detalhes da vida de uma professora e de sua classe heterogênea. Inúmeros conflitos emergem, mas todos são solucionados pela doçura com que a mestra conduz os debates em classe, mesmo que para isso acabe estragando seu casamento. "Entre os muros" também nos apresenta uma classe de um colégio situado na periferia (desta vez de Paris), e também frequentado por estudantes de culturas e nacionalidades heterogêneas. No entanto, ele nos coloca em meio ao caos.
Em meio a um maravilhoso caos, da profundidade das diferenças de concepções que são alimentadas por indivíduos de idades, níveis educacionais e culturas diferentes, todos com seus preconceitos mais ou menos enraizados. Enfim, das diferenças que podem emergir quando se está em jogo a hierarquia entre professores e alunos. Aqui não há mocinhos, não há alguém que salve e outro que seja salvo. A educação aqui não salva - não quando ela não é acompanhada de um respeito real pelo outro. E o mais fascinante dessa viagem - aqui não há lições de moral.
E não as há porque o tema é demasiadamente complexo para ser resolvido no desfecho. Os professores que tentam fazer os alunos cumprirem as regras da escola são os mesmos que fumam no refeitório enquanto a faxineira limpa o recinto, porque, afinal, "Não tem mais ninguém aqui". Os educadores são também aqueles que ensinam a seus colegas novatos o preconceito "Esse aluno é bonzinho", "Esse não é bonzinho", "Esse é bonzinho"... E os estudantes são um caldeirão de rostos, nacionalidades e personalidades nem sempre coesos. Tentam incansavelmente questionar o lugar ocupado pelos mestres mas, ao mesmo tempo, sofrem as angústias de não saberem o que fazem naquele ambiente, e exemplo mais contundente é o da menina que, no final do ano, afirma, séria, que não aprendeu nada durante todo o ano.
Esse grave questionamento sobre a relevância dos saberes ensinados pela escola não recebe nenhuma resposta altissonante, o que é um alívio, pois deixa de incorrer num mal comum à nossa sociedade, que dá respostas rápidas - e portanto, rasas - a qualquer assunto. Eu senti, durante todo o filme, a angústia que a menina exprime no final, o que também se deveu à cinematografia mais amadora e, paradoxalmente, mais profissional que eu já vi: a zonzeira que me deu ao ver aqueles rostos sendo focalizados continuamente em close-ups não seria, também, a zonzeira daquele professor que tem de lidar com aquele grupo de alunos; e desses jovens, que têm de lidar com os professores; e de todos esses, que têm de lidar com os saberes veiculados pela escola e também consigo mesmos?
Esse conflito de verdades permanece ao longo de toda a película e, no final, é magistralmente simbolizado numa sequência que apresenta, de modo concomitante, as carteiras desarrumadas dos alunos que saíram da sala de aula com pressa, como que fugidos, e dos gritos da torcida desses mesmos alunos, que assistem a um amistoso jogo de futebol no qual jogam professores e estudantes. E assim termina o filme.
Um comentário:
que postagem mais incrível... de uma obsersavacao maravilhosa e fascinante... estou louco para ver os filmes. Obrigado por tanta sensibilidade!!!!!
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