quinta-feira, 22 de julho de 2010

Toy Story 3 e o baú das minhas recordações



Preciso entrar no coro dos que estão louvando "Toy Story 3", animação da Pixar que consegue a proeza de repetir o volume 1 em graça e qualidade - aqueles que viram o um-tanto-quanto-frustrante "Shrek para sempre" sabem o quanto isso é difícil.
Apenas conheci a série esse ano, por ocasião de seu relançamento em 3D nos cinemas. Quando a animação que deu origem à série estreou nas salas de exibição, em 1995, a mocinha aqui era uma típica adolescente de 13 anos que se julgava crescida demais para ver desenhos animados. Tanto que, um ano depois, não conseguiu ver 2 minutos da película pela televisão - "Uma história que tematiza a vida de um baú de brinquedos! Que bobagem.". Felizmente a adolescente ganhou uns aninhos - e, o principal, uma dose de senso de humor - e teve a chance de experimentar na telona essa história que é, de longe, uma das mais criativas e sensacionais do cinema.


Que ideia genial criar uma história cujo tema é a vida de um baú de brinquedos! "Toy Story" tem tudo para agradar todas as faixas etárias. Poucas coisas são tão universais quanto o ímpeto da criança de fantasiar. Uma bola de meia torna-se bola de futebol profissional, e o menino peladista da várzea julga-se o Ronaldinho Gaúcho; a boneca em forma de bebê vira a criança que tem nome, certidão de nascimento, um armário de roupas e até ganha festas de aniversário. Qual é a criança que não brinca - e quão importantes não são essas brincadeiras para a construção do eu-social das crianças. Estava faltando alguém que contasse as histórias desses heróis de brinquedo...

A responsabilidade ficou a cargo de uma equipe de escritores e roteiristas cujos nomes pouco fazem sentido para mim, que acabei de ingressar no mundo maravilhoso das animações, portanto, remeto os leitores ao IMDB, que apresenta a lista completa. O grupo se desincumbiu brilhantemente da missão, tanto em âmbito literário quanto cinematográfico.


Poucos filmes apresentam um rol tão grande de personagens cativantes. O Caubói e o Guerreiro estelar, o Cabeça de Batatas e sua esposa, os pequenos Alienígenas brindes da pizzaria, o porco-cofrinho, a Barbie-academia. Até mesmo os vilões são fofos. Os encardidos e semi-destruídos Bebezão e Urso Fofinho Com Cheiro de Morangos Silvestres, e o "metrossexual de plástico" Ken, cativam tanto quanto os heróis.
Em Toy Story 3, nenhum brinquedo é totalmente mocinho ou bandido, já que todos cumprem um mesmo propósito de dar asas à imaginação dos pequenos. O fofo urso cor-de-rosa abandonado pela dona, um dos preferidos pelas crianças da creche, também é aquele que tortura os brinquedos de Andy, querendo exercer sua tirania sobre os demais. Ele é malvado mas, dada a ironia da situação posta em cena, risível, assim como o bebê de olho torto, seu companheiro de desventuras. Olhando-os, lembrei-me da Tati, a coelha de pelúcia que sempre aterrorizava minhas outras bonecas em minhas brincadeiras de infância, mas com a qual eu me divertia a beça. Não há lição mais original de como se fugir do maniqueísmo.
Cinematograficamente, "Toy Story 3" arrasa ao somar o uso de estruturas já consolidadas a um tratamento original do tema. A sequência inicial da perseguição do Senhor Porcão e do salvamento da locomotiva desgovernada pelos vaqueiros Woody e Trixie lembra o que há de mais eletrizante em filmes do gêneros faroeste/ação. O encontro de Barbie e Ken, glosado por uma canção romântica no último volume e composto de primeiríssimos planos dos pombinhos, repete o batidíssimo amor à primeira vista, uma das principais tópicas dos enlatados norte-americanos. O absurdo das situações desloca as cenas para a paródia, o que ressalta sua originalidade.

Porém, "Toy Story 3" dá um salto quando comparado outros dois filmes ao colocar, lado a lado, pessoas e brinquedos. Se, nas películas anteriores, a história dos brinquedos ocupava o primeiro plano, no volume 3 o já adolescente Andy e a pequena Bonnie igualmente destacam-se. Conhecemos um Andy maduro, preocupado em arrumar as malas para ir à Universidade. Assim como ele, a série amadureceu e já não pode exibir unicamente o riso franco comum às crianças.
A fita tem preciosos momentos "sérios", despidos de clichés e profundamente humanos. O abandono que os brinquedos sentem ao serem rejeitados por seu dono - é tão patético quando o Tiranossauro esquecido no baú diz emocionado "Ele me tocou! Ele me tocou!" - motivam no público um sentimento de solidariedade mil vezes mais eficaz do que toda a discurseira das propagandas filantrópicas natalinas. A sequência final, do adolescente que doa à menininha os seus brinquedos e transmite-lhe sua herança cultural comove as pedras, mostrando ao público de todas as idades como é importante colocar brinquedos e histórias para circular. Um ensinamento sem dedo em riste, tão bonito...

Depois de ver o filme, coincidentemente (agora estou começando a achar que não foi coincidência) mergulhei em meu armário e reencontrei a minha infância. Lá estavam o senhor Cabeça de Batata, o Bebê, o Caetaninho (boneco brinde dos Supermercados Caetano), o cofrinho em forma de alienígena, o Ursinho Pimpão, as Barbies, a Skipper (irmã mais nova da Barbie, em alta no começo dos anos 90) e o Ken.


A Skipper em seu quartinho (que ganhei no aniversário de 11 anos).


A Cheirinho, mais conhecida como Carol, chegou quando eu tinha 3 anos. Agora que tem 1/4 de século já não cheira tão bem, mas ainda está bonitinha...

A moral de Toy Story 3 faz todo o sentido: por mais que nos apeguemos aos brinquedos - como se apenas sua presença física nos trouxesse as recordações da infância - , eles precisam ganhar novos donos. Meu maleiro ficou mais vazio, mas uma porção de pequenos vizinhos (moro numa rua de muitas crianças), mais feliz. Foi impagável ver a menininha da rua de baixo abraçando a Rosinha, que era um dos meus bebês preferidos. Infelizmente, não consigo ser tão abnegada quanto Andy, portanto, devolvi a Cheirinho e a Skipper no maleiro. Quem sabe depois de ver novamente o filme...

Woody e Buzz Lightyear agora dividem o meu armário com Theda Bara, Greta Garbo e Doris Day, afinal, eles também têm lugares cativos em minha história de cinéfila.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Yes, nós temos bananas: o Rio no imaginário hollywoodiano


Começo o post pela cena que me motivou a escrevê-lo: Mickey Rooney imitando a Carmen

Miranda em "Babes on Broadway" (1941), um dos Rooney & Garland pictures. É certo que a imitação é mais uma homenagem que uma sátira, cumprindo o programa de irmandade cultural fomentado por ambos os países (tanto que há registros da própria Carmen ensinando o Mickey a balançar as cadeiras). O que mais me fascinou nela - não apenas nela, mas no grosso das películas que fazem alusão ao Brasil - é o olhar estereotipado que lançam ao país, mais especificamente ao Rio de Janeiro, metonímia do Brasil aos olhos do cinema standard norte-americano da época (e, ouso dizer, também de hoje).
É um prazer ver Mickey cantando "Mamá, yo quiero mamar.". O rapazinho é tão carismático que acabamos deixando de lado o quão perniciosa é a caracterização que junta todos países sul-americanos num mesmo pacote, amarrando-os com um laço bem grande e colorido que os transforma em charge. Outra coisa não era Carmen Miranda, uma das maiores cantoras nacionais que, em Hollywood, teve de se contentar com papéis de raparigas sensuais e exóticas, cujos sotaques estilizados não deixavam negar as origens: o país tropical, do calor e do sexo fácil. Carmen ganhou dinheiro e notoriedade, levando o nome do país aos quatro cantos do mundo através das películas em Tecnicolor rodadas pela Twentieth Century Fox. No entanto, contribuiu para que se perpetuasse no estrangeiro a imagem do país do eterno carnaval de acordo com a qual ainda somos conhecidos, imagem que nos trás turistas sedentos de calor e diversão, mas também motiva o turismo sexual.

Mas esse post está tomando um caminho pedregoso que não estou disposta a trilhar, não depois de ter separado com tanto entusiasmo uma porção de fotogramas de alguns filmes (dos quais gosto muito, aliás) em que o Brasil - ou melhor, o Rio - é personagem relevante.
Então vou agora mesmo mudar o rumo e tentar transformar isso aqui em um passeio turístico tão leve e agradável quanto aquele ao qual Hollywood buscava conduzir seus espectadores quando colocava em primeiro plano o brilho de nosso país, deixando de lado as nossas mazelas sociais. Lá vamos nós então.



Os primeiros fotogramas são do musical de 1933 "Flying down to Rio", no qual Ginger Rogers e Fred Astaire dividem a cena pela primeira vez, ainda como artistas coadjuvantes. O conjunto de cenas (parte delas stills), apresentados sucessivamente, dos pontos turísticos da ainda então capital da República, explicitam o imaginário que se construía do Brasil como um país de vicejante beleza natural e muita diversão. A Baía de Guanabara anunciando ao fundo o Pão de Açúcar; o Teatro Municipal, a Avenida Copacabana, o Hipódromo. Puxamos pela memória as últimas novelas das oito e vemos que o imaginário pouco mudou.
Contudo, nesses filmes antigos essas cenas, que não deixam de ser registro histórico de um tempo que há muito já se foi, ganham uma graça especial que sempre acaba por me entusiasmar. Bati os olhos no Hipódromo, hoje praticamente abandonado dada à decadência do esporte, e me lembrei do registro histórico/poético que Manuel Bandeira faz do local nos anos de 1940:

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo
(...)

E ao trombar com os "Turunas Band", banda nacional a princípio ironizada pelo conjunto comandado pela personagem de Astaire, me dei conta de quão up to date estavam os norte-americanos no que se tratava da cultura de nosso país. Para constar apenas de passagem, alguns "turunas" passaram pela cena artística de nosso país, a exemplo dos "Turunas da Mauriceia", grupo pernambucano que fez sucesso no Rio entre 1927 e 1930 tocando canções típicas do nordeste, como emboladas e cocos. Abaixo, um registro do grupo e, a seguir, dos "Turunas" inventados por Hollywood.



A disposição do conjunto nega o epíteto do grupo (turuna: forte, valente, ágil), deixando ainda mais claro aos brasileiros que aos norte-americanos o quanto ela tinha de pejorativa. Mas nem por isso ela deixa de ser engraçada, pois também os brasileiros redefiniam a cultura de seus vizinhos ao apreendê-la. O Brasil era um dos maiores mercados consumidores da produção cinematográfica norte-americana - o que o tornava, por extensão, consumidor do modo de vida daquele país. As jazz-bands pululavam em território nacional, alegrando os cassinos, as rádios, vendendo discos e divertindo as plateias do já abrasileirado teatro de revista. A "Turunas Band" inventada por Hollywood, que tocava foxtrote e a carioca, não ficava muito longe dos grupos compostos por elementos nacionais - no final dos anos 20, "Arthur Castro & American Jazz Band" fizeram sucesso com um maxixe chamado "Cristo nasceu na Bahia". O cosmopolitismo das bandas acenava para o cosmopolitismo instaurado pela indústria do cinema, em que tudo ganhava status semelhante de item de consumo para as massas. A própria "carioca" inventada na película mistura elementos norte-americanos e brasileiros, o violoncelo, o chocalho e o triângulo, os dançarinos de tap dancing e baiana sestrosa.




Aliás, a baiana de "Flying down..." nega a informação historicamente consolidada de que a responsável por elevar o tipo, até então estigmatizado, foi Carmen Miranda. O tipo da brasileira/baiana já parecia bem introjetado no imaginário norte-americano quando Carmen apareceu por lá. Nas películas rodadas em Hollywood, a imagem edênica do país se sobrepõe à sua realidade empírica - não é atoa que, nos anos 50, "Orfeu negro" arrebatou os estrangeiros, apresentando-lhes um país desconhecido. Para a construção do imaginário ajudou o fato de os filmes serem costumeiramente rodados em estúdio, sendo a cor local dada por telões que impunham a magia do espaço físico assim como as fotografias turísticas que batemos dos lugares mais bonitos que visitamos. Fred e Ginger caminham contra o telão que registra a avenida Gonçalves Dias, ponto tradicional da boemia literária carioca, e vão dar num arremedo da Confeitaria Colombo.
Não muito longe dali, cartazes anunciam, em inglês, os "Yankees Clippers" no "Hotel Atlantico". Neles, coqueiros, a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar. Perdura a imagem do Rio como destino de turistas estrangeiros.

É digno de nota o fato de o Brasil comparecer especialmente em comédias musicais, produções em que a fantasia se sobrepõe à realidade. Em "Uma noite no Rio" (That night in Rio, 1941), fotografias da cidade são substituídas por registros pictóricos dela, que salientam a invenção do país em detrimento de seu registro objetivo.


Carmen surge em seguida com a vestimenta de baiana que se tornou a sua segunda pele.

Casais fantasiados dançam tendo ao fundo a Baía de Guanabara. O Technicolor permitiu que se salientasse o colorido que se queria imprimir para o país. O fotograma acena também para outra característica do país que o tornava destino privilegiado, o carnaval.

Isso é ressaltado noutra película dos anos 40, "Romance on the high seas" (1949), debut cinematográfico de Doris Day. O baile de carnaval que dá fecho ao filme, tornando possível o happy end, aponta cabalmente para como nosso país é imaginado lá fora. Inegavelmente, é uma propaganda aos quatro cantos do mundo de nossa cordialidade. Que viengan os turistas...

Antes de ser "feliz para sempre", Doris Day entoa "It's Magic" na Praia de Copacabana, canção que a tornará the toast of Hotel Atlântico, mimetizando a relevância que exerce na ascensão da jovem crooner a estrela da música e do cinema.


A praia de Copacabana e o carnaval retornam brevemente em "Papai Pernilongo" (Daddy long legs, 1955), e novamente enquanto pintura, numa sequência estilizada colorida e lúgubre que lembra (e lembra até demais, para o próprio bem do filme) o antológico balé de "Sinfonia de Paris" (1951).




Brasil, paraíso terrestre, lugar da fantasia, do escapismo. Não é um acaso que casais sexualmente reprimidos vivessem seu idílio envoltos por nossa brisa amena e sob os olhos amorosos do Pão de Açúcar. É o que acontece em "Estranha Passageira" (Now, voyager, 1940), no qual a personagem de Bette Davis torna-se "Camille" à medida em que se aproxima de nosso país tropical - alusão à heroína romântica de Dumas Filho que se entrega a um amor proibido e foge para o campo para vivê-lo. Camille e seu Armand (Paul Heinred) dormem lado a lado numa cabana abandonada na estrada rumo ao Pão de Açúcar, desafiando a moral vigente e a censura cinematográfica. Estou lembrando que já falei sobre esse filme em duas outras ocasiões, quando falava sobre o cigarro no cinema e o sexo em Hollywood... Nem preciso dizer que gosto muito dele, não?



O romance de Ingrid Bergman e Cary Grant também se beneficia das belezas naturais do Rio. Em "Notorious" (Interlúdio, 1946), um dos grandes Hitchcocks, a personagem de Ingrid é outra Dama das Camélias que encontra a regeneração no amor.


Porém, sabemos que o romantismo do diretor percorre vias tortuosas. Antes de oferecer a oportunidade de regeneração à heroína, o Rio torna-se palco de seu mais arrematado decaimento. O imaginário é desconstruído. O hipódromo, cuja elegância contribui para enfeitar as películas norte-americanas, ganha em "Notorious" aquele sabor amargo que adquire para Manuel Bandeira: "Os cavalinhos correndo,/ E nós, cavalões, comendo... (...)/O sol tão claro lá fora,/ O sol tão claro, Esmeralda,/ E em minhalma — anoitecendo!".




Nele, a personagem de Ingrid contará ao homem que ama: "Você pode colocar Sebastian em minha lista de admiradores." Ela sabe que o caminho não tem volta. Precisará se casar com o espião nazista para levar a cabo o plano do governo americano.
A Cinelândia, até então passarela de turistas despreocupados, impregna-se da carga dramática da personagem que, então, já caminhava numa corda bamba. O belo edifício da Biblioteca Nacional, o qual, junto ao Teatro Municipal, ajuda a compor o patrimônio artístico da capital, torna-se no filme a base de operações da polícia brasileira/ norte-americana. Sua magnificência esmaga a protagonista, tanto quanto as luzes da cidade cegam-na, tornando sua doença ainda mais insuportável. Graças à Hitchcock, o Adão e a Eva cinematográficos são finalmente expulsos do paraíso.