Dentre as estreias cinematográficas desse início de ano, “Black Swan”, o mais recente longa metragem de Darren Aronofsky, é a bola da vez em matéria de polêmica. A Folha de São Paulo desta semana gastou longo tempo falando do filme, não apenas porque ele recebeu 5 indicações ao Oscar (melhor filme, diretor, atriz, e aí vai), mas devido às controvérsias que gerou entre a crítica.
O diretor inegavelmente tentou fazer um filme artístico. A Folha lembra que, durante entrevista, Aronofsky afirmou que sua obra era mais pura que outras que tematizavam “a arte do balé” (Folha - Ilustrada, 3/2/11). Se ele conseguiu ou não é uma questão que nem a crítica especializada consegue responder de modo unívoco, que o digam os dois julgamentos críticos diametralmente opostos ao filme que o jornal alinhou na Folha “Ilustrada” da edição de 3 de fevereiro.
Um leitor incauto pode até criticar o que é aparentemente denotativo de falta de parâmetro. Aos mais acostumados ao funcionamento da crítica isso é, no entanto, instigante: afinal, é digno de atenção quando, em meio à produção eminentemente rasteira de Hollywood, aparece uma obra inovadora ao ponto de deixar a crítica em palpos de aranha.
Vi o filme logo na pré-estreia, pois estava curiosa por saber para que lado me inclinaria. Depois de vê-lo, decidi subscrever a opinião de Inácio Araújo: não consegui gostar muito dele, não. Mesmo assim, é impossível negar que “Cisne Negro” é um dos poucos filmes a provocar o espectador: não consegui parar de pensar nele até que decidi me sentar ao computador para refletir a seu respeito em letra de forma.
A história não me atraiu, nem o (ultraelogiado) desempenho de Natalie Portman, nem a linguagem cinematográfica escolhida para a apresentação da trama. O filme não proporciona nenhum esforço reflexivo. A linguagem da câmera mata a charada logo de início: abundam rápidos primeiros planos, quase todos tomados pelo método “câmera na mão”. A escolha não deixa enganar: a história nos será contada pelos olhos da protagonista, a instável Nina, bailarina de uma companhia de Nova Iorque que sonha em ser a estrela do balé “O lago dos cisnes”, de Tchaikovsky. O desequilíbrio psicológico da jovem encontra sinonímia perfeita no uso praticamente único da subjetiva direta. Aí está o que, num só tempo, é o maior trunfo do filme e seu principal ponto fraco. Sim, porque logo que captamos a escolha – e a captamos rapidamente – a história perde a graça.
O caráter de exceção da loucura faz nascer um filme também excepcional pela ousadia com que quebra com a estrutura linear de narrativa à qual estamos acostumados. O efeito negativo disso é que cabe ao leitor o papel de observador passivo das imagens que se desenrolam à sua frente. Como se trata do desdobramento de um caso de insânia, não há como prever que caminho tomará a narrativa. Resta-nos embarcar no Trem Fantasma construído pelo diretor e pelo roteirista (Mark Heyman) e deixar que ele nos leve. Aliás, o exemplo mais artificioso do efeito gerado pela linguagem escolhida é a quantidade de sustos que a história nos faz tomar: As luzes se apagam na sala em que Nina ensaia e, bang, aparece a múmia do Trem Fantasma de braços abertos e nos grita no meio da cara; Nina caminha pela passarela que desemboca no metrô e, bang, a caveira nos assopra no ouvido, gelando-nos a espinha. Deixei de frequentar o Trem Fantasma há pelo menos 20 anos porque faz tempo que parei de me contentar com essa emoção puramente física proporcionada pelo brinquedo. Confesso que não gosto quando um amigo me assusta gratuitamente na rua – imaginem, então, como isso não me aborrece quando eu pago ingresso.
Mas nem por isso me arrependi de ver o “Cisne Negro”, pois ele veio ao encontro de coisas em que ando pensando. Por exemplo, na diferença entre o vistoso e o belo. O filme é inegavelmente vistoso: é imbatível em matéria de trilha sonora, pelo tratamento pulsante que dá à partitura do clássico de Tchaikovsky, apresentando também belos figurinos e atuações irrepreensíveis. Mas a soma de tudo isso não gera a beleza. O paradoxo maior da história seja, talvez, a apreensão falha que ela faz do mundo do balé – e isso é uma pena, pois o que de mais bonito há no filme, a trilha sonora, acaba servindo apenas como ilustração ao invés de ser incorporada dramaticamente à história. O fato de o drama se passar entre as paredes de uma companhia de dança é meramente circunstancial. Não há relação de causa e efeito entre a loucura da jovem e o ofício que ela desempenha – nas raras tomadas descritivas, a câmera flagra jovens ensaiando alegremente – constatação que nos leva à fácil conclusão de que o estado patológico da protagonista poderia se desenvolver em detrimento de sua escolha profissional. Mas aí teríamos que afirmar que o mais apurado dos filmes sobre balé (como pensa seu diretor) não é um filme sobre balé...
Trata-se, sim, de uma engenhosa história de suspense/terror, original como “A Bruxa de Blair” (1999). Como thriller, “Cisne Negro” é curioso pela abordagem nova que dá ao gênero, assustando o público sem dó e abusando de sua paciência ao decidir o que dirá ou não a ele. Como apreensão do mundo do balé, é falho, pois deixa de lado um elemento que, desde meu ponto de vista, é de fundamental importância na arte (especialmente no balé, que tem o benefício da presença empírica dos espectadores): a busca do envolvimento do público. Basta lembrar do pas-de-deux do cisne negro, contado pelos olhos da protagonista, cena em que se dá a metamorfose da mulher em galináceo. Vendo a cena (estranhamente curta, considerando-se que deveria ser clímax da história), truncada pelos constantes cortes e primeiros planos, ela não me pareceu nada além de bizarra. Noutras palavras, e parafraseando o diretor da companhia de Nina, falta ao filme “uma abordagem visceral do Lago dos Cisnes”. Falo do “visceral” de modo figurado – vísceras literais já aparecem de sobra nele.
O diretor inegavelmente tentou fazer um filme artístico. A Folha lembra que, durante entrevista, Aronofsky afirmou que sua obra era mais pura que outras que tematizavam “a arte do balé” (Folha - Ilustrada, 3/2/11). Se ele conseguiu ou não é uma questão que nem a crítica especializada consegue responder de modo unívoco, que o digam os dois julgamentos críticos diametralmente opostos ao filme que o jornal alinhou na Folha “Ilustrada” da edição de 3 de fevereiro.
Um leitor incauto pode até criticar o que é aparentemente denotativo de falta de parâmetro. Aos mais acostumados ao funcionamento da crítica isso é, no entanto, instigante: afinal, é digno de atenção quando, em meio à produção eminentemente rasteira de Hollywood, aparece uma obra inovadora ao ponto de deixar a crítica em palpos de aranha.
Vi o filme logo na pré-estreia, pois estava curiosa por saber para que lado me inclinaria. Depois de vê-lo, decidi subscrever a opinião de Inácio Araújo: não consegui gostar muito dele, não. Mesmo assim, é impossível negar que “Cisne Negro” é um dos poucos filmes a provocar o espectador: não consegui parar de pensar nele até que decidi me sentar ao computador para refletir a seu respeito em letra de forma.
A história não me atraiu, nem o (ultraelogiado) desempenho de Natalie Portman, nem a linguagem cinematográfica escolhida para a apresentação da trama. O filme não proporciona nenhum esforço reflexivo. A linguagem da câmera mata a charada logo de início: abundam rápidos primeiros planos, quase todos tomados pelo método “câmera na mão”. A escolha não deixa enganar: a história nos será contada pelos olhos da protagonista, a instável Nina, bailarina de uma companhia de Nova Iorque que sonha em ser a estrela do balé “O lago dos cisnes”, de Tchaikovsky. O desequilíbrio psicológico da jovem encontra sinonímia perfeita no uso praticamente único da subjetiva direta. Aí está o que, num só tempo, é o maior trunfo do filme e seu principal ponto fraco. Sim, porque logo que captamos a escolha – e a captamos rapidamente – a história perde a graça.
O caráter de exceção da loucura faz nascer um filme também excepcional pela ousadia com que quebra com a estrutura linear de narrativa à qual estamos acostumados. O efeito negativo disso é que cabe ao leitor o papel de observador passivo das imagens que se desenrolam à sua frente. Como se trata do desdobramento de um caso de insânia, não há como prever que caminho tomará a narrativa. Resta-nos embarcar no Trem Fantasma construído pelo diretor e pelo roteirista (Mark Heyman) e deixar que ele nos leve. Aliás, o exemplo mais artificioso do efeito gerado pela linguagem escolhida é a quantidade de sustos que a história nos faz tomar: As luzes se apagam na sala em que Nina ensaia e, bang, aparece a múmia do Trem Fantasma de braços abertos e nos grita no meio da cara; Nina caminha pela passarela que desemboca no metrô e, bang, a caveira nos assopra no ouvido, gelando-nos a espinha. Deixei de frequentar o Trem Fantasma há pelo menos 20 anos porque faz tempo que parei de me contentar com essa emoção puramente física proporcionada pelo brinquedo. Confesso que não gosto quando um amigo me assusta gratuitamente na rua – imaginem, então, como isso não me aborrece quando eu pago ingresso.
Mas nem por isso me arrependi de ver o “Cisne Negro”, pois ele veio ao encontro de coisas em que ando pensando. Por exemplo, na diferença entre o vistoso e o belo. O filme é inegavelmente vistoso: é imbatível em matéria de trilha sonora, pelo tratamento pulsante que dá à partitura do clássico de Tchaikovsky, apresentando também belos figurinos e atuações irrepreensíveis. Mas a soma de tudo isso não gera a beleza. O paradoxo maior da história seja, talvez, a apreensão falha que ela faz do mundo do balé – e isso é uma pena, pois o que de mais bonito há no filme, a trilha sonora, acaba servindo apenas como ilustração ao invés de ser incorporada dramaticamente à história. O fato de o drama se passar entre as paredes de uma companhia de dança é meramente circunstancial. Não há relação de causa e efeito entre a loucura da jovem e o ofício que ela desempenha – nas raras tomadas descritivas, a câmera flagra jovens ensaiando alegremente – constatação que nos leva à fácil conclusão de que o estado patológico da protagonista poderia se desenvolver em detrimento de sua escolha profissional. Mas aí teríamos que afirmar que o mais apurado dos filmes sobre balé (como pensa seu diretor) não é um filme sobre balé...
Trata-se, sim, de uma engenhosa história de suspense/terror, original como “A Bruxa de Blair” (1999). Como thriller, “Cisne Negro” é curioso pela abordagem nova que dá ao gênero, assustando o público sem dó e abusando de sua paciência ao decidir o que dirá ou não a ele. Como apreensão do mundo do balé, é falho, pois deixa de lado um elemento que, desde meu ponto de vista, é de fundamental importância na arte (especialmente no balé, que tem o benefício da presença empírica dos espectadores): a busca do envolvimento do público. Basta lembrar do pas-de-deux do cisne negro, contado pelos olhos da protagonista, cena em que se dá a metamorfose da mulher em galináceo. Vendo a cena (estranhamente curta, considerando-se que deveria ser clímax da história), truncada pelos constantes cortes e primeiros planos, ela não me pareceu nada além de bizarra. Noutras palavras, e parafraseando o diretor da companhia de Nina, falta ao filme “uma abordagem visceral do Lago dos Cisnes”. Falo do “visceral” de modo figurado – vísceras literais já aparecem de sobra nele.