terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

“Cisne Negro” (2010): a dança como pretexto

Dentre as estreias cinematográficas desse início de ano, “Black Swan”, o mais recente longa metragem de Darren Aronofsky, é a bola da vez em matéria de polêmica. A Folha de São Paulo desta semana gastou longo tempo falando do filme, não apenas porque ele recebeu 5 indicações ao Oscar (melhor filme, diretor, atriz, e aí vai), mas devido às controvérsias que gerou entre a crítica.
O diretor inegavelmente tentou fazer um filme artístico. A Folha lembra que, durante entrevista, Aronofsky afirmou que sua obra era mais pura que outras que tematizavam “a arte do balé” (Folha - Ilustrada, 3/2/11). Se ele conseguiu ou não é uma questão que nem a crítica especializada consegue responder de modo unívoco, que o digam os dois julgamentos críticos diametralmente opostos ao filme que o jornal alinhou na Folha “Ilustrada” da edição de 3 de fevereiro.
Um leitor incauto pode até criticar o que é aparentemente denotativo de falta de parâmetro. Aos mais acostumados ao funcionamento da crítica isso é, no entanto, instigante: afinal, é digno de atenção quando, em meio à produção eminentemente rasteira de Hollywood, aparece uma obra inovadora ao ponto de deixar a crítica em palpos de aranha.
Vi o filme logo na pré-estreia, pois estava curiosa por saber para que lado me inclinaria. Depois de vê-lo, decidi subscrever a opinião de Inácio Araújo: não consegui gostar muito dele, não. Mesmo assim, é impossível negar que “Cisne Negro” é um dos poucos filmes a provocar o espectador: não consegui parar de pensar nele até que decidi me sentar ao computador para refletir a seu respeito em letra de forma.


A história não me atraiu, nem o (ultraelogiado) desempenho de Natalie Portman, nem a linguagem cinematográfica escolhida para a apresentação da trama. O filme não proporciona nenhum esforço reflexivo. A linguagem da câmera mata a charada logo de início: abundam rápidos primeiros planos, quase todos tomados pelo método “câmera na mão”. A escolha não deixa enganar: a história nos será contada pelos olhos da protagonista, a instável Nina, bailarina de uma companhia de Nova Iorque que sonha em ser a estrela do balé “O lago dos cisnes”, de Tchaikovsky. O desequilíbrio psicológico da jovem encontra sinonímia perfeita no uso praticamente único da subjetiva direta. Aí está o que, num só tempo, é o maior trunfo do filme e seu principal ponto fraco. Sim, porque logo que captamos a escolha – e a captamos rapidamente – a história perde a graça.
O caráter de exceção da loucura faz nascer um filme também excepcional pela ousadia com que quebra com a estrutura linear de narrativa à qual estamos acostumados. O efeito negativo disso é que cabe ao leitor o papel de observador passivo das imagens que se desenrolam à sua frente. Como se trata do desdobramento de um caso de insânia, não há como prever que caminho tomará a narrativa. Resta-nos embarcar no Trem Fantasma construído pelo diretor e pelo roteirista (Mark Heyman) e deixar que ele nos leve. Aliás, o exemplo mais artificioso do efeito gerado pela linguagem escolhida é a quantidade de sustos que a história nos faz tomar: As luzes se apagam na sala em que Nina ensaia e, bang, aparece a múmia do Trem Fantasma de braços abertos e nos grita no meio da cara; Nina caminha pela passarela que desemboca no metrô e, bang, a caveira nos assopra no ouvido, gelando-nos a espinha. Deixei de frequentar o Trem Fantasma há pelo menos 20 anos porque faz tempo que parei de me contentar com essa emoção puramente física proporcionada pelo brinquedo. Confesso que não gosto quando um amigo me assusta gratuitamente na rua – imaginem, então, como isso não me aborrece quando eu pago ingresso.
Mas nem por isso me arrependi de ver o “Cisne Negro”, pois ele veio ao encontro de coisas em que ando pensando. Por exemplo, na diferença entre o vistoso e o belo. O filme é inegavelmente vistoso: é imbatível em matéria de trilha sonora, pelo tratamento pulsante que dá à partitura do clássico de Tchaikovsky, apresentando também belos figurinos e atuações irrepreensíveis. Mas a soma de tudo isso não gera a beleza. O paradoxo maior da história seja, talvez, a apreensão falha que ela faz do mundo do balé – e isso é uma pena, pois o que de mais bonito há no filme, a trilha sonora, acaba servindo apenas como ilustração ao invés de ser incorporada dramaticamente à história. O fato de o drama se passar entre as paredes de uma companhia de dança é meramente circunstancial. Não há relação de causa e efeito entre a loucura da jovem e o ofício que ela desempenha – nas raras tomadas descritivas, a câmera flagra jovens ensaiando alegremente – constatação que nos leva à fácil conclusão de que o estado patológico da protagonista poderia se desenvolver em detrimento de sua escolha profissional. Mas aí teríamos que afirmar que o mais apurado dos filmes sobre balé (como pensa seu diretor) não é um filme sobre balé...
Trata-se, sim, de uma engenhosa história de suspense/terror, original como “A Bruxa de Blair” (1999). Como thriller, “Cisne Negro” é curioso pela abordagem nova que dá ao gênero, assustando o público sem dó e abusando de sua paciência ao decidir o que dirá ou não a ele. Como apreensão do mundo do balé, é falho, pois deixa de lado um elemento que, desde meu ponto de vista, é de fundamental importância na arte (especialmente no balé, que tem o benefício da presença empírica dos espectadores): a busca do envolvimento do público. Basta lembrar do pas-de-deux do cisne negro, contado pelos olhos da protagonista, cena em que se dá a metamorfose da mulher em galináceo. Vendo a cena (estranhamente curta, considerando-se que deveria ser clímax da história), truncada pelos constantes cortes e primeiros planos, ela não me pareceu nada além de bizarra. Noutras palavras, e parafraseando o diretor da companhia de Nina, falta ao filme “uma abordagem visceral do Lago dos Cisnes”. Falo do “visceral” de modo figurado – vísceras literais já aparecem de sobra nele.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

"Tempos Modernos", Charlie Chaplin e os paradoxos da Era Industrial


Quando Charlie Chaplin deu ao público seu silent "Modern Times" (1936), o cinema já tagarelava havia uma década. Todavia, o que aparentemente nascera fadado ao papel de peça de museu, revelou, naquele 1936, uma atualidade que foi sendo renovada com o passar dos anos. Prova de que o filme é obra de um gênio (que, tocado pelo dedo de Deus, conseguiu construir algo imortal), ou simplesmente reflexo do medo recôndito que a sociedade desde sempre teve do famigerado "capitalismo" - o qual movimenta riquezas com a mesma sem-cerimônia com que elimina a poesia da vivência cotidiana? Um pouco das duas coisas, talvez. O certo é que, em "Tempos Modernos", nosso querido vagabundo conseguiu dar tratamento único a uma tópica muito discutida pela produção literária e cinematográfica da época: o progresso tecnológico, que alterara o modo como as pessoas enxergavam a realidade.
A antológica imagem do homem pequenino engolido pelas gigantes engrenagens de uma máquina não pode, no entanto, nos levar a pensar no filme estritamente como uma recusa à era industrial.
Ora, o progresso tecnológico foi o responsável pelo surgimento do cinematógrafo, máquina que, pelas imagens que escolheu oferecer ao espectador desde os primórdios, cooperou para que ele enxergasse o mundo moderno como um espaço veloz, dinâmico e, por que não dizer, assustador. O endosso do cinematógrafo à tecnologia fica patente na vista mais célebre de Lumière, do trem chegando à Estação: em que a câmera estática recupera o ponto de vista do passageiro que espera para embarcar, o qual parece prestes a ser colhido pela locomotiva que se aproxima veloz.
Contudo, a sátira dos artefatos modernos não deixa de ser o cerne do filme. Nele, Chaplin dá vida a um operário insignificante, sem nome - e, portanto, metonímia dos milhões de trabalhadores anônimos que operavam as linhas de produção das grandes indústrias da América e da Europa.
Apenas um indivíduo entre tantos que precisava enfrentar a selva de pedras da cidade moderna para tirar dela seu sustento. O aspecto animalesco da cidade é patente não apenas na linha de montagem, que massacra a personagem, reprimindo seus anseios de indivíduo, reduzindo-o à peça de uma bem engrenada maquinaria e literalmente engolindo-o. Também notamo-lo no turbilhão das ruas, repleto de pessoas que, no seu ir e vir, parecem à deriva; e na violência com que as autoridades tratam o homem comum.
O enredo, apresentado nessas poucas palavras, poderia ser a notícia de um drama amargo igual a vários outros que Hollywood produziu sobre o assunto naqueles anos. "Tempos modernos" é, no entanto, uma das mais hilárias comédias da história do cinema. O gênero tem importância fundamental para sua atualidade. Chaplin era filho de artistas do music hall londrino. Cresceu sob as luzes da ribalta, onde estreou aos cinco anos. Conhecia, portanto, a preferência do público pela comédia pastelão, pelos enredos cheios de reviravoltas, pelos números que censuravam os costumes através do riso demolidor, pela graça irresistível que emanavam os personagens tipos. Portanto, quando jovem, sentiu-se à vontade na atmosfera mambembe dos estúdios cinematográficos dos primeiros tempos. Estreou como ator de cinema em 1914 - reportagem de uma Careta de 1920 antecipa essa data em três anos, período no qual ele teria trabalhado para a Keystone, mas o IMDB dá o ano de 14 com tanta riqueza de detalhes que temo contradizê-lo. A construção da personagem do vagabundo - que Chaplin apenas abandona em 1947, em "Monsieur Verdoux" - denota ainda uma vez a influência do teatro alegre, em que os artistas eram fadados a interpretar sempre um mesmo tipo, máscara que usualmente se colava às suas faces e por meio da qual eram reconhecidos onde quer que fossem.
Mas, se a arte de Chaplin é em parte devedora do meio teatral dentro do qual ele nasceu, ela deve outro tanto às telas do cinematógrafo, medium que o artista ajudou a apurar à medida em que apurava a personagem eterna que inventara.
Aquele artigo da revista Careta ao qual me referi acima oferece informações preciosas para que entendamos a construção do tipo. Nele, o então já mundialmente consagrado ator conta detalhes da criação de seu personagem e estabelece as diferenças entre cinema e teatro. Seu vagabundo teria sido, segundo ele, o resultado final de um tipo que demorou anos para construir, burilado na medida em que ele via o que agradava o público. Chaplin deixa implícito ser um constante observador de si mesmo e do público que o vê. Diz frequentar as telas de exibição para conhecer a reação dos espectadores com relação a seus filmes. Como um ator de teatro, precisava dos aplausos do público, desesperando-se quando não os recebia. A atitude denuncia a formação que Chaplin tivera como artista. Sublinha, também, características que depois serão fundamentais para o estabelecimento do cinema como uma das mais rentáveis indústrias dos EUA a partir de fins dos anos de 1910: a construção de tipos facilmente reconhecíveis, compreendidos pelos espectadores de todas as classes sociais; o aspecto popularesco do veículo, uma das diversões mais baratas das cidades daqueles tempos; o estabelecimento do star system, que traçava relação de sinonímia entre o tipo posto em cena e o artista que o representava, fomentando a venda de ingressos, fotografias de stars e produtos por eles anunciados.
A consagração que Charlie Chaplin recebeu desde jovem - e durante toda sua carreira - e o fato de seus filmes se destacarem em meio aos milhões de quilômetros de películas produzidas entre os anos de 1910 e 1950, atestam, no entanto, que algo o diferenciava das centenas de estrelas da galáxia de Hollywood. Parece absurda a força que sua obra eminentemente silenciosa (apenas em “O grande ditador”, 1940, ele passou a usar o diálogo verbal em seus filmes) exerce até hoje em nossa sociedade tão faladeira e amiga das novidades. Só parece, já que as artimanhas aparentemente banais do vagabundo adorável são oriundas de uma série de escolhas cuidadosamente refletidas, de um esforço hercúleo para a transformação das experiências cotidianas em arte.
Chaplin era um perfeccionista. A trivia de Hollywood oferece informações curiosas a respeito: os milhares de metros de película inutilizados até que ele tivesse estabelecido as tomadas perfeitas para a montagem da (genial) dança dos pãezinhos da "Busca do Ouro" (1925); o fato de "Uma mulher de Paris" (1923) ter sido rodado linearmente, para o bem do realismo da ação, a despeito da vultosa quantia gasta na reconstrução dos cenários.
Ele era um poeta em meio aos burocratas da indústria do cinema. Este é um elemento chave que possibilitou a abrangência de sua obra e o trouxe, moderníssimo, até nós. Com o fim dos anos de 1910 terminou, para si, o tempo das produções de menor fôlego (algumas especialmente bem cuidadas, como "Vida de cachorro", de 1919). O ano de 1920 trouxe-lhe a possibilidade de se juntar a Mary Pickford, Douglas Fairbanks (ator e atriz considerados então os queridinhos da América) e ao diretor D. W. Griffith na fundação da United Artists. O capital da empresa permitiu-lhe trabalhar na produção de seu primeiro longa metragem, "O Garoto" (1921), o qual lhe tomou um tempo muito maior do que as produções de Pickford e Fairbanks, porém, consolidou sua imagem e o tornou unanimidade entre o público e a crítica da época.

Os fundadores da United Artists: Mary Pickford, Griffith, Chaplin, Douglas Fairbanks

A crítica brasileira contemporânea à exibição de "O Garoto" - que reuni por acaso, à medida em que cursava as disciplinas do semestre passado - constata que o artista ecoava o anseio dos escritores modernistas de, através de um trabalho penoso e lento, transformar a inspiração numa “obra-de-arte, coletiva e funcional, mil vezes mais importante que o indivíduo” (palavras de Mário de Andrade). "O Garoto" antecede em 15 anos "Tempos Modernos". Porém, as preocupações de Chaplin permanecem as mesmas. Por isso ele segue admirado pelo público, pelos escritores modernistas brasileiros e pelas vanguardas cinematográficas europeias. Não se trata da defesa da repetição de fórmulas velhas. O tipo construído pelo artista britânico captava a essência do homem moderno membro das classes desfavorecidas. O brasileiro Alberto Cavalcanti, pertencente ao grupo dos inovadores europeus e um dos pioneiros do documentário, diz:

O tipo que o próprio Chaplin representa de preferência é o símbolo do homem universal que viveu entre as duas grandes guerras, vítima de todas as injustiças sociais que, no entanto, não conseguiram abatê-lo. (...). O homem simples de todos os povos e de todas as raças sente-se nele retratado, porque, na sua aparente fragilidade, Chaplin simboliza a sua resistência inata e indomável às condições precárias de vida de nosso tempo.

Não é por acaso que encontramos, na produção dos vanguardistas, ecos da filmografia de Chaplin. Um exemplo saboroso desse aproveitamento está na “Voyage Imaginaire” (1925) de René Clair, obra que flerta com a psicanálise (que então começava a ser vulgarizada) ao postular o caráter liberador do sonho. Nela, o mocinho tímido apenas se descobre capaz de lutar pela jovem que ama depois de passar por uma série de aventuras que culminam num museu de cera onde ele é ajudado pelos bonecos de cera de Chaplin e do Garoto, que magicamente ganham vida à meia noite (alguém está se lembrando de “Uma noite no Museu”? “Voyage imaginaire" é infinitamente melhor).


Chaplin e o Garoto, ainda figuras de cera



O caráter catártico da obra de Chaplin está patente no filme de Clair, cujo final recupera uma tópica das fitas do vagabundo: a partida do personagem, captado por uma câmera estática à medida em que ele se afasta da audiência, emocionada mas convencida de que ele voltaria outra vez porque, mais do que um homem, ele é um símbolo.

Última cena de “Voyage Imaginaire”

O trecho em itálico não é meu, mas de Alberto Cavalcanti, e ele não se refere especificamente ao vagabundo de “Tempos Modernos” – o qual deixa a cena de braços dados com Paulette Goddard enquanto soa “Smile” (canção que também é obra sua) - mas sim a "Monsieur Verdoux" (1947). Vê-se, portanto, que Chaplin fez dessa partida uma constante do seu personagem, que àquela altura era tão simbólico para a cultura ocidental quanto o Pierrot da Commedia del Arte (apenas para repetir a constatação da crítica). Ao tomá-la, Clair retoma pelo menos outras duas produções anteriores de Chaplin, “O Vagabundo” (1915) , "The Pilgrim (1923) e “O circo” (1928), traçando uma ponte entre a supostamente hermética vanguarda e o popular cinema de Hollywood.

A influência, todavia, foi de mão dupla, já que “Tempos Modernos” claramente recebeu influência de uma película de Clair denominada “A nous la liberté” (1931) – ao ponto de ter sido considerado por alguns uma paródia ao filme! Aliás, preciso aqui agradecer à minha orientadora Miriam Gárate, sem a qual eu nada saberia desse desdobramento da história. Para quem tiver interesse, o filme é facilmente baixado pelo Torrent. Eu obviamente que tive. Vendo-o, qual não foi a minha surpresa ao encontrar uma comédia musical que deslizava de modo adorável da canção para a declamação rimada, tocando raramente o diálogo prosaico. O enredo trabalha o mesmo tema: a desumanização que a tecnologia fomenta. Porém, por um viés diferente: aqui é contada a história de um ex-presidiário que incidentemente é envolvido na massa que principiará a trabalhar numa empresa de fonógrafos, tornando-se também ele um funcionário. A música que costura o filme surge como uma exigência bem humorada do roteiro, que brinca com o paradoxo da situação: um homem se vê destituído de sua liberdade enquanto cria diversão para os outros.



À nous la liberté (1931)

Modern Times (1936)

A tão desejada liberté é alcançada no final do filme, quando o homem deixa de ser joguete da máquina e passa a dominá-la, podendo, enfim, desfrutar do seu tempo livre. E mais, apaga-se o fosso que separa patrão e empregado: ambos dão as mãos e cantam felizes a canção título depois de a empresa ser dividida entre os trabalhadores, que passam assim a dominar plenamente sua força de trabalho. O fecho de “Tempos Modernos” não repousa nessa questão. Nele, o “capitalismo selvagem” da sociedade industrial é tomado como um caminho sem volta. Às personagens que desejavam a liberdade restava a fuga.

O patrão e o empregado de “À nous la liberté”, agora unidos, seguirão por aquele mesmo caminho eternizado por Chaplin.

O trabalho diferenciado com a banda sonora é outra característica que aproxima Clair e Chaplin. Disse no início que o cineasta apenas começou a se utilizar sistematicamente dos diálogos em prosa no começo dos anos 40. Isso porque, como bem aponta Cavalcanti, Chaplin sabia que o uso dramático do som não devia se reduzir à palavra falada. A prosa foi o último elemento que o artista levou para seus filmes. Contudo, o desenvolvimento do som, que possibilitou a gravação do mesmo na película, foi fundamental para sua arte, pois permitiu que ele sincronizasse os efeitos sonoros à ação de forma a potencializá-la.
Charlie Chaplin era um artista completo – isso é chavão, mas não custa insistir. Basta uma vista d’olhos nos seus longas-metragens para notar que seu nome invariavelmente domina os créditos: ele dirigia, atuava, roteirizava, compunha a trilha sonora e produzia. Isso o torna único na indústria dos primeiros tempos, quando o trabalho era diluído, nunca se sabendo ao certo quem fazia o quê. Esse controle total sem dúvida foi o responsável por ele criar uma obra incrivelmente densa que, apesar da inovação tecnológica, permanece ainda hoje como o que de melhor se produziu no campo cinematográfico.
O sucesso que esse genial criador conseguiu desde logo entre público e crítica vem de sua habilidade de trabalhar cinematograficamente com os elementos que dominava desde que atuava nos palcos londrinos. A pantomima, o melodrama e o vaudeville, gêneros populares, são por ele destilados para que surjam, diante das câmeras, numa pureza desconcertante que apenas transmite o essencial. Chaplin emprestou aos seus longas-metragens a estrutura do gênero melodramático e do vaudeville, misturando cenas dramáticas e cômicas. Todavia, nunca em seus filmes uma cena cômica interrompe abruptamente a ação, aparecendo apenas para distender o público. Ao contrário, o artista sabia transitar com maestria da comédia para o drama, levando o espectador pela mão até gerar nele a emoção estética - estou me lembrando que, meses atrás, falei algo muito semelhante da Judy Garland, tão feiticeira quanto Carlitos por esse mesmo motivo. Um exemplo perfeito disso encontramos nos minutos finais de "Tempos Modernos", quando a personagem de Chaplin e a de Paulette veem-se obrigadas a interromper sua entusiasmada apresentação no café-concerto para empreenderem uma dramática fuga da polícia. Eles escapam, no entanto, aparentemente apenas para despencarem na existência de penúria da qual haviam acabado de sair. Porém, os símbolos apresentados imediatamente após o fade out apontam que a esperança subsiste ao desespero: amanhece o dia e descortina-se o horizonte, imagem substituída pelo plano do casal de fugitivos e por um primeiro plano da jovem que chora, seguida do plano do rapaz que se arruma, assobiando. Enquanto isso, a banda sonora reconstrói, no plano musical, a atmosfera agridoce apresentada pelo plano visual. A jovem, que havia desistido de lutar, é contagiada pela alegria de viver do amigo e segue com ele rumo ao desconhecido.

“Smile...”

A letra e a música de "Smile" metaforizam cabalmente a persona artística de Chaplin. Ninguém como ele entendeu como dor e alegria se misturam na vivência cotidiana: como se uma gota de sofrimento estivesse sempre guardada no final do riso. Por isso, "Smile" aproveita-se dos violinos e de um tempo lento e torturado para cantar a necessidade de se buscar a alegria na dor: Smile, though your heart is aching. (...). Light up your face with gladness. Hide every trace of sadness. Although a tear maybe ever so near. That's the time you must keep on trying. Smile, what's the use of crying. You'll find that life is still worthwhile. If you just smile.


Queria terminar o texto com um vídeo de Judy Garland cantando "Smile". Judy sabia bem o que era rir das desditas - talvez seja por isso que ela interpreta a canção de modo tão maravilhoso, com um riso no rosto e lágrimas na voz.



*
Meus agradecimentos àqueles que votaram na enquete. O resultado, como supus, foi apertado: todos os filmes de Chaplin receberam votos, sendo que "Luzes da Ribalta" e "Tempos Modernos" ficaram, respectivamente, com 27% e 47% da preferência dos leitores.