domingo, 13 de março de 2011

Horizonte Perdido (1937), obra-prima de Frank Capra

Em 1936, quando "Lost Horizon" estava em pré-produção, pululavam os focos de instabilidade política e social ao redor do mundo. Os Estados Unidos enfrentavam a Grande Depressão, a qual arrastou para o precipício uma porção de outros países que tinham relações econômicas com o gigante do norte - o Brasil, por exemplo; a Espanha entrava numa Guerra Civil que duraria até 1939 e garantiria a vitória da ditadura de Franco, o qual permaneceria no poder até o início dos anos 70; e a movimentação de Hitler numa Alemanha andrajosa e que votava cega obediência aos desígnios do Führer anunciava a proximidade de outra Grande Guerra.
Frank Capra já era, àquela altura, um dos mestres indiscutíveis da Sétima Arte, tendo sido um dos responsáveis por lançar as bases da screwball comedy - gênero que garantiu a qualidade estética do cinema depois da chegada do som, momento em que cineastas embasbacados com o avanço tecnológico quase que fizeram o medium retroceder para o teatro filmado.
Capra e Howard Hawks - outro pioneiro do gênero - rodaram em 1934, respectivamente, "Aconteceu naquela noite" e "Twentieth Century", interessando o público por narrativas que tratavam do confronto sexual e do envolvimento romântico em meio aos conflitos sócio-econômicos da Depressão. Capra e Hawks lançaram modelos diferentes de relação, conforme aponta Thomas Schatz em Hollywood Genres: formulas, filmmaking, and the studio system: enquanto os protagonistas do filme de Hawks pertencem ambos ao topo da pirâmide social, os de Capra ocupam, cada qual, uma extremidade da pirâmide, redefinindo seus lugares na sociedade à medida em que descobrem não poderem viver um sem o outro. O jornalista pobretão - mas boa-praça - a quem Clark Gable dá vida em "Aconteceu..." e a aristocrata tola desempenhada por Claudette Colbert são os protótipos dos casais que fazem suas diferenças culturais chegarem a um denominador comum para que realizem, em conjunto, uma vivência plena. A lição implícita era que em tempos de convulsão social não havia porque em se ater a distinções de classe.
"Horizonte Perdido" é cria do gênero, no entanto, instaura uma modificação fundamental na narrativa. Sensível à mudança dos tempos, Capra desloca para segundo plano o conflito amoroso entre os protagonistas, trazendo para o centro do debate um conflito entre duas ideologias: aquela que prega o diálogo como caminho certeiro para a solução das diferenças e aquela que dubiamente prega a guerra para a conquista da paz. O diretor escolhe como herói o político idealista Robert Conway, que ganha corpo de modo admirável na pele de Ronald Colman - um dos poucos galãs do cinema silencioso que sobreviveram ao som. A escolha é acertada. Com 46 anos à época, Colman transpirava num só tempo virilidade e sensatez. Capra se sabia, naquele momento, o porta-voz do cidadão americano. A verossimilhança da história dependia da eficácia com que seu herói respondia à situação insólita que a trama lhe impunha.
A personagem de Colman, embora seja um britânico, assemelha-se a um daqueles típicos americanos aos quais Capra deu vida anos antes. É um homem que venceu pelo merecimento pessoal: talentoso diplomata, cotado para ser Ministro dos Assuntos Exteriores da Inglaterra, é enviado à China para retirar do país um grupo de ocidentais que estavam em meio ao fogo cruzado de uma Guerra Civil. Cedo saberemos, todavia, que o valor do homem de pouco serve no ambiente em que ele vive. Logo após embarcar o último ocidental e saltar para dentro do avião que o levaria para longe do conflito, Conway verbaliza de modo irônico sua desilusão: Você anotou que salvamos 90 brancos? Viva nós! Você anotou que deixamos 10 mil nativos para serem aniquilados? Não, você não diria isso, porque eles não contam. Salienta também seu ideal pacifista, lançando um hiato com relação à produção cinematográfica norte-americana, que bradava aos sete ventos seu éthos belicoso:

Vou fazê-los todos de bobos. Não vou ter nenhum exército. Vou afundar meus navios de guerra. Vou destruir cada pedaço de artilharia. Aí, quando o inimigo se aproximar, vamos dizer: "Entrem, cavalheiros, o que podemos fazer por vocês?". Aí os pobres soldados inimigos vão parar para pensar: "Há algo errado aqui. Fomos enganados. Isso não está de acordo com o protocolo. Essas pessoas parecem amigáveis. Por que é que vamos atirar nelas?". Aí eles vão abaixar as armas. Viu como é tudo tão simples?

O caráter de exceção de "Horizonte Perdido" - libelo pela paz em meio à propaganda bélica largamente divulgada por Hollywood - é metaforizado na escolha do título da obra e na sociedade que ela focaliza. O título remete a Shangri-la, espaço ideal em que a regra geral é o comedimento e onde as discordâncias são resolvidas pelo diálogo. É um local de abundância de alimentos, de beleza, de conforto, de saúde, portanto, não há no lugar policiais ou médicos. Quem rege o local é um lama bicentenário que não precisa fazer qualquer esforço para impor regras, pois lá todos vivem felizes com a divisão de trabalho que se auto-impuseram. Shangri-la, em suma, apenas funciona como uma maquinaria bem lubrificada porque em nada se assemelha ao restante do mundo. O brilho que Conway tem no semblante ao avistar o lugar maravilhoso pela primeira vez e a alegria com que ele aceita o mistério que o circunda provam sua rápida percepção de que, embora ele fosse o arquétipo do homem valoroso, não era em seu país natal que ele veria realizado seu ideal de paz.
Ao escolher transpor para as telas essa história - adaptada do romance homônimo de James Hilton publicado em 1925 - Frank Capra demonstrava percepção aguçada da sociedade em que vivia. Ao tematizar a interação entre o homem e a natureza exuberante em que ele vive, refaz um movimento caro à literatura ocidental. O Romantismo está repleto de histórias que relatam a chegada do herói - metáfora da civilização - numa terra virgem. Só nós temos duas, Guarani e Iracema, ambas de José de Alencar, nas quais ele apresenta sua interpretação da dinâmica de formação de nossa nação: em ambas o branco impõe sua civilidade aos índios, considerados selvagens, tábulas rasas. No Romantismo inglês é Robinson Crusoe que leva seu modo de vida civilizado à ilha na qual se perde. Entretanto, em "Horizonte Perdido" a relação entre civilização e barbárie é redefinida. Shangri-la, com sua natureza exuberante e suas jovens que banhavam-se nuas e criavam pombos, estava tão distante do Éden bíblico tematizado pelas narrativas românticas quanto estava distante da civilização distorcida dos Estados Unidos e da Inglaterra.

Ela era, sim, o epítome da civilização, espaço onde o desenvolvimento intelectual era o elemento deflagrador da harmonia - a concretização, enfim, do ideal da modernidade. Prova contumaz disso é a personagem de Jane Wyatt, fresca e serelepe como uma menina e, não obstante, sábia ao ponto de perceber, nos ideais que a personagem de Colman fazia publicar em seus livros, o quão vazia era a vida dele.
E, assim, ao contrário do que ocorre aos heróis das narrativas românticas, em "Horizonte Perdido" não é o herói que modifica o meio - é o meio que o modifica.
Todavia, a película explicita que o caminho do homem ocidental rumo à civilidade é mais pedregoso do que ele a princípio imaginara. Até mesmo Conway é sucumbido por paixões passageiras, acabando por preferir o retorno ao Ocidente à vida tranquila em Shangri-la. A conclusão, todavia, é positiva - e acredito que a atualidade do filme esteja tanto em seu percurso quanto em seu desenlace: A guerra parece um caminho muito mais prático e sedutor do que o diálogo para a resolução dos conflitos, no entanto, é ridículo que a usemos como pretexto para a paz. Urge fazermos o percurso que separa o bom-senso da selvageria, mesmo que ele seja tão inóspito quanto aquele que, no "Horizonte Perdido", separa Shangri-la do restante do mundo dito "civilizado".
Infelizmente o clamor pacifista do filme não foi ouvido na época de seu lançamento - tanto que, durante a Segunda Guerra, elementos da história foram modificados para que ela servisse de propaganda do esforço bélico norte-americano. Mas eu acho que ainda dá tempo. Por isso, junto minha voz à do britânico que empreendera as buscas à Conway e brinda com os amigos pelo sucesso da empreitada do herói: Proponho um brinde: À esperança de que Robert Conway encontre sua Shangri-la. À esperança de que todos nós achemos nossa Shangri-la.

12 comentários:

ANTONIO NAHUD disse...

Dani, você lembrou um grande momento do cinema, um filme magistral em suas intenções éticas. Obra atípica de Capra -por tratar de um mundo mítico -, seu HORIZONTE PERDIDO encanta justamente pela idéia de um mundo melhor, de valores fundamentais. Ronald Colman dá vida ao protagonista com sinceridade e emoção (o que não é novidade na sua trajetória). A participação de Sam Jaffe como o velhíssimo Grande Lama também é extraordinária. O filme também tem uma situação inusitada para a época: a insinuação singela de um relacionamento homossexual entre os personagens de Thomas Mitchell e Edward Everett Horton.
Um belo filme, amiga, diferente do insosso remake dos anos 70. Parabéns pelo post.

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Antonio, obrigada pelas palavras!
O filme é impressionante. Acabei me atendo na temática e deixei de lado detalhes referentes à sua forma e aos artistas coadjuvantes.

Eu concordo contigo sobre a personagem de Sam Jaffe. Gosto especialmente de Edward Horton, que desempenha aqui o que suponho ser a personagem mais sóbria de sua carreira.

O filme é especial pelo modo como envolve o público desde o princípio, fazendo-o personagem da viagem insólita empreendida por Conway e demais indivíduos que estão no avião. É especial pelos diálogos tocantes que a todo momento anunciam a possibilidade de um mundo melhor - e o anunciam de um modo que ultrapassa o moralismo fácil para tocar na nossa essência, mesma, de homens.

Capra merece aplausos por colocar algumas das principais falas do filme em personagens coadjuvantes - escapando do que era comum ao cinema padrão de Hollywood, a transformação do protagonista no grande salvador da pátria; por usar pinceladas sutis para esboçar características das personagens (a prostituta tuberculosa, o casal homossexual); por não aprofundar na história de amor entre a personagem de Colman e a de Wyatt (já que não é isso que importa à história).

O filme é, realmente, um grande momento do cinema. Sou fã de Ronald Colman e de Frank Capra, e mesmo adorando as comédias Capra, fui, como a personagem de Colman, carregada com surpresa e alegria para dentro do mundo atípico construído em "Horizonte Perdido". Fiquei feliz por Capra ter mudado sua trajetória e nos dado esse presente.

Não sabia que o filme teve uma versão nos anos 70. Confesso que sempre me admiro da autoestima que têm aqueles que decidem refazer os clássicos. Especialmente porque quase nunca o resultado é aproveitável...

Bjos e obrigada por passar por aqui!
Dani

As Tertulías disse...

Quantos ideais lindos este filme nos transmite: Shangri-Lá... Agora, voce viu o musical dos anos 70???? rsrsrsrs... Michael York, Sally Kellerman, Olivia Hussey, Peter Finch e até Liv Ullmann cantando (tentando bailar)... A música de Burt Bacharach... uma tragédia... que foi chamada nao de "Lost Horizon" mas de "Lost Profits" pela crítica! e se voce prestar atencao, vai ver que os takes sao práticamente análogos aos de Capra... a mesma coisa que aconteceu em "An affair to remember" quando comparado a "A love Affair". Mas de volta à obra original. Leia o livro de james Hilton, que também criou o eterno "Goodbye, Mr. Chips"...
Linda escolha hoje amiga!
Ahhh, já ía esquecendo. Voce está mencionada na postagem que acabei de fazer, ou seja, que ainda está quantinha, saíndo do forno :-)
Beijos, linda!
Ricardo

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Ricardo, esse musical de 1970 é uma pérola do mau-gosto. Preciso agradecer a você e ao Antonio por me fazerem saber da existência dele.

Vou colocar abaixo o link de seu post sobre o musical, seguido do link de uma das canções do filme, cantada no melhor estilo "High School Musical" pela Liv Ullman (ainda custo a acreditar que ela tenha feito isso). Leitores - se é que mais alguém leu o post - essa parte vocês não podem perder:

http://tertulhas.blogspot.com/2008/07/blog-post.html

http://www.youtube.com/watch?v=qC1C1L5jOHE

Bjinhos

Rubi disse...

Mais um filme maravilhoso e clássico!
É incrível como esses filmes mais antigos tem algo mágico que me encanta.
Frank Capra é um gênio.
Inclusive, esses dias assisti Mr. Smith Goes to Washington com o grande Claude Rains no elenco, e fiquei tão eufórica por ver o Claude atuando que fiquei sabendo só depois de pesquisar que era do Frank HAHA Sou muito desligada.

Parabéns por valorizar estas figuras tão importantes do cinema.
Parabéns mesmo!

*E aquele filme " Aconteceu naquela noite " é um dos meus preferidos do Frank. *--*

Um filme simples que virou uma obra prima com a atuação de Clark E Claudette.
Estou seguindo!

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, Rubi!

"Mr. Smith goes to Washington" (que nominho ruim lhe deram aqui: "A mulher faz o homem") e "Aconteceu naquela noite" são outros dois grandes filmes de Frank Capra. Também adoro "Adorável Mr. Deeds" e "Felicidade não se compra".

Concordo totalmente contigo quanto à "mágica" desses filmes. Não faltam explicações científicas que tentam dar conta do fascínio exercido por eles. Mesmo conhecendo algumas, não consigo evitar de, em alguns momentos, me sentir arrebatada pela tela, invadida pelo filme e querendo estar no meio da cena...

Bjos. Obrigada pela visita e pelas palavras tão simpáticas. Adorei seu blog - vou colocá-lo na minha lista de favoritos.

Danielle

Danilo Ator disse...

Querida Danielle, infelizmente ainda não vi Horizonte Perdido, então não posso comentar sobre ele, mas mesmo assim li seu post, já que você sempre vai além do assunto em questão. Parabéns.

Danielle, antes de conhecermos os blogs um do outro, fiz alguns comentários sobre alguns filmes, dos quais destaco para você:

Duas Mulheres
Escravos do desejo
Grandes Esperanças (do David Lean)
Relações Perigosas
A cor do Dinehiro
Mamãe Faz Cem Anos
Taxi Driver
A Época da Inocência
A Professora de Piano
Num Lago Dourado
O Leitor
Foi Apenas Um Sonho
Nunca Te Amei
Sete Noivas para Sete Irmãos
O Manto Sagrado
A Canção de Bernadette
As Horas
Dúvida
Alice Não Mora Mais Aqui
A Casa dos Espíritos
A Escolha de Sofia
Bem-vindo à Casa de Bonecas
Vatel
As Pontes de Madson
Kissed - Cerimônia de Amor
A Cruz da Minha Vida
Cidade dos Sonhos

Isso fora os especiais sobre musicais, Tarantino, Scorsese etc. Estou lendo várias das suas postagens antigas. Amo ler sobre cinema, rsrsrs. Antônio Nahud também escreve bastante. Parabéns por escrever bem e com arte sobre algo que amamos tanto.

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Danilo, você é muito gentil! Obrigada pelas palavras, querido.
Veja "Horizonte Perdido" (o de 37, não a adaptação musical dele ;D), é mais que recomendado!
Vou ler suas outras resenhas. Gostei muito de uma porção desses filmes, por exemplo de "O Leitor" e de "Foi Apenas Um Sonho" (a propósito, a antes tão operosa Kate Winslet sumiu depois que ganhou o Oscar, não?). Vou ler os textos que você sugeriu!

Bjos e até mais
Dani

ANTONIO NAHUD disse...

Dani, estou com uma edição toda em homenagem ao Musical!
Beijos

www.ofalcaomaltes.blogspot.com

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Estou lendo-os aos poucos, Antonio. São ótimos como sempre!

Bjs

Unknown disse...

Acabei de assistir horizonte perdido e tenho q admitir que se trata de um clássico e, como já muito bem falado aqui um filme atípico mas, que nos faz refletir sobre o verdadeiro sentido da vida.
Vivemos em intensa correria em busca de um topo, talvez inalcançável ou ainda que seja algo palpavel traz a sensação de q estamos correndo para alcançar o vento.
Dani, primeira vez q li seus escritos e preciso dizer q vc arrasa.
Beijo e sucesso!

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Caro leitor,

Desculpe-me a demora por registrar aqui seu comentário, que me deixou, aliás, muito feliz. Obrigada por se deter no blog, e pelas suas palavras sobre ele!
Você tem razão: certos filmes crescem com o tempo, e este é um deles. O ideal de paz e comunhão mútua que apregoa soam mais modernos do que nunca no nosso mundo moderno, repleto de lutas entre nações ou intestinas (mesmo entre nós, auto-proclamado um povo cordial!...).
Abraços (deixe aqui o seu nome para que eu o identifique!).
Danielle