Hoje os cinéfilos precisam comemorar: faz 112 anos que nasceu Alfred Hitchcock (13/8/1889-29/4/1980).
O que dizer desse inglês de alma cosmopolita cuja impecável sensibilidade artística gerou uma das obras mais densas da cinematografia mundial? Eu o amo apaixonadamente desde que era menina. Para mim, ele é quem melhor resume a Sétima Arte. Suas obras repletas de cenas de perseguição, grandes romances, traços detetivescos e bom-humor convidam o grande público à diversão. Porém, os elementos do melodrama rocambolesco são sempre sutilmente desvirtuados, para que saciem o gosto do público sem que traiam a arte.
Da primeira vez que vi “Um corpo que cai”, “Janela Indiscreta” ou “Psicose”, eu, que então devorava loucamente Agatha Christie, só queria descobrir o mistério que se escondia por detrás das personagens de Madeleine Elster, Lars Thorwald e Norman Bates. Quinze anos depois, volto a essas obras ainda com avidez. O diretor é um bruxo danado – algumas das faíscas que iluminam suas produções só se fazem visíveis para o espectador insistente.
Eu sou das devotadas, ao ponto de voltar pela 15ª vez a um filme como “Interlúdio”, por exemplo, mesmo que conheça de cor enredo e diálogos, apenas para prestar atenção nas tomadas, no modo como os planos são montados, na composição dos quadros, nas trucagens. Nem sempre dá certo.
Mesmo que agora eu tenha mais maturidade e instrumentos críticos para captar as nuances dos diálogos ou o simbolismo dos objetos, muitas vezes acabo mesmo é enredada pela história. Ainda continuo torcendo para
Cary Grant conseguir arrancar
Ingrid Bergman da casa infestada de espiões nazistas; para ver Grace Kelly finalmente se colocar em posição de igualdade com o solteirão convicto Jimmy Stewart e, assim, dobrá-lo; para a velhinha informante de “A dama oculta” (1938) escapar do trem e cantarolar ao governo inglês a informação secreta em forma de melodia; para o belo Laurence Olivier se livrar do fantasma de Rebeca...
Tomar de passagem a filmografia de Hitchcock, apenas para o mérito da homenagem, geraria simplificações desnecessárias. Pelo menos 20 de suas 50 obras pedem mergulhos profundos que, infelizmente, não tenho meios de dar neste momento. Portanto, deixo os leitores com um bate-papo que Isabella Batista de Souza e eu fizemos sobre Hitch - e especialmente sobre "Vertigo"/"Um corpo que cai” (1958) - no final de 2010. Como eu, Isabella é da área de Letras. Vasculhando a internet em busca de referência sobre o filme para um trabalho de final de disciplina (na UFMG), ela trombou com o
post que escrevi sobre ele em março de 2010. A conversa a seguir reflete o desejo dessas duas colegas de formação de entender o maior dos Hitchcocks.
I: Hitchcock é considerado o mestre do suspense e um dos melhores diretores de todos os tempos. Por que ele conquistou tamanha importância no cenário cinematográfico?
D: A obra de Hitchcock como um todo é importante para a história do cinema porque ele conseguiu elevar o filme de suspense (considerado até então um gênero menor) a objeto de arte. Os produtos do gênero hoje são influenciados pela obra do diretor – embora a massa dos filmes de suspense produzidas em nossos dias não chega aos pés da produzida por ele.
Todavia, embora hoje ninguém negue que o diretor é um dos maiores de todos os tempos, sua obra demorou para ser aceita pela Academia (apenas uma vez uma obra sua foi premiada com o Oscar de Melhor Filme – “Rebeca”, de 1940 – e ele nunca recebeu o prêmio de Melhor Diretor). Até a altura dos anos de 1960, Hitchcock era, no geral, considerado como mais um diretor da indústria do cinema, desejoso apenas de agradar o público para vender seu produto. Foi nessa época que os cineastas vanguardistas franceses enxergaram uma unidade em sua obra, o que respondia ao conceito de “autoria” criado por eles. Significava
grosso modo que, mesmo produzindo seus filmes no centro da indústria cultural, alguns diretores teriam conseguido se descolar dos parâmetros meramente mercadológicos criados por ela. Exemplos de diretores de cuja obra se poderia depreender um
estilo autoral seriam John Ford e Hitchcock: se se analisasse suas obras completas, seria possível perceber nelas o desenvolvimento e amadurecimento, ao longo do tempo, de alguns traços ou temas. Em 1962, François Truffaut, fundador da revista francesa
Cahiers du Cinema, conduziu uma série de entrevistas históricas com Hitchcock, buscando derrubar por terra a ideia vulgarizada de que o diretor não produzia obras dignas de debate. As entrevistas, compiladas em português no ótimo
Hitchcock/Truffaut: entrevistas, foram fundamentais para a mudança de posicionamento da crítica acerca da obra do diretor.
Vertigo, embora tenha sido um fracasso de bilheteria, está entre os 100 melhores filmes, de acordo com o Instituto de Cinema Americano. Por que essa obra carrega tão grande importância na carreira de Hitchcock e no cinema, em geral?
Bem, a questão da recepção das obras cinematográficas é curiosa. Nós hoje pouco sabemos sobre alguns filmes que geraram grandes bilheterias no seu tempo,
porém, consideramos grandes obras outros que foram fracassos de público. Não convém levantar os motivos disso, que são muitos (e duvido que eu conheça todos), mas eles têm relação com uma série de fatores. Apenas um exemplo: No começo do cinema sonoro, os primeiros filmes musicais de
Al Jolson (protagonista de “The Jazz Singer”, 1927, o primeiro filme sonoro rodado) foram assistidos por grande parte da população norte-americana, curiosa por ver nas telas pela primeira vez a sincronização de som e imagem. Hoje, poucos conhecem este artista e muitos de seus filmes são considerados apenas por sua importância histórica, já que não têm grandes qualidades artísticas.
Não podemos nos esquecer também de quão importante é a publicidade para a venda de um filme. A indústria norte-americana do cinema descobriu isso logo nos anos de 1910. Os departamentos de marketing eram peças importantes dos estúdios, tornando públicas as imagens dos artistas e as películas que faziam. Hollywood construía estrelas – mudava os nomes dos artistas que contratava, lhes inventava biografias chamativas, tudo isso para torná-los interessantes para o público que ia ao cinema e alimentava a indústria. Essa sede que o público tem hoje de conhecer as vidas das celebridades vem daquela época.
Hitchcock, como todos os outros diretores, sabia que o interesse do público era motivado por razões que nem sempre tinham relação com a esfera artística, por isso seus filmes foram tão bem sucedidos na época. O melhor exemplo talvez seja o caso de Psicose (1960): O diretor fez uma campanha junto ao público de “Não conte o final do filme para ninguém, para não estragar o prazer do espectador de conhecê-lo por si mesmo.” (isso pode ser conferido nos extras da edição do filme distribuída pela Paramount). Ele criava suspense junto ao público com relação à sua própria obra, ou seja, acima de tudo era um bom negociador. Além disso, era conhecedor do público que assistia aos seus filmes, portanto, elaborava as cenas objetivando determinadas reações das plateias. Isso fez com que parte considerável de sua obra tivesse obtido sucesso de bilheteria.
Tal sucesso não aconteceu com Vertigo, que, no entanto, teve cerca de 1 milhão e setecentos mil dólares de lucro (segundo informação do IMDB). Na entrevista a Truffaut, Hitchcock vê o filme como um fracasso porque afirma que as bilheterias apenas cobriram os gastos – estamos falando de um diretor que respeitava bastante a opinião do público. Isso considerado, é visível que o diretor não via no filme a relevância que hoje vemos nele. A análise retrospectiva da obra que ele nos deixou, no entanto, nos permite considerá-lo um dos mais importantes, porque nele o diretor atinge a excelência no manejo de temáticas e elementos com que trabalhou durante sua carreira: a sexualidade, as taras que se escondem na vida privada do homem burguês, etc.
Hitchcock, a esposa e a equipe de filmagem na Europa dos anos de 1920
A linguagem da câmera, os planos, o próprio nome do filme (Vertigo) – todas essas expressões carregam significados. Na resenha sobre o filme, você fala de como o “modo como imagens e sons se agrupam dizem mais sobre os personagens que o enredo”, exemplificando a primeira cena, em que John Ferguson e Midge Wood se encontram. Quais recursos o diretor utiliza para expressar características dos personagens, além das explicitadas no enredo? E quais são essas características?
Eu tentei pontuar um pouco isso ao longo da resenha (que, aliás, foi escrita numa tarde e não tem qualquer intenção de fechar uma interpretação da obra). Quis dizer que o enredo de Vertigo é básico comparado à excelência com que ele é construído cinematograficamente. Essa cena que você sublinhou, por exemplo. De acordo com o enredo, nela precisamos ficar sabendo que John está doente e recebendo apoio da amiga, que sente por ele um amor platônico. Quantas vezes não ouvimos histórias assim? Isso beira a subliteratura. Porém, o trabalho de Midge, o silêncio com que ela escuta o que lhe fala o homem e o modo como ela o olha quando ele menciona o episódio do casamento, bem como o modo como ela o ampara quando ele despenca da escada, trazem à tona essas ideias de modo incrivelmente conciso e denso, o que torna a cena tão fascinante.
Hitchcock é notório por escolher obras literárias menores para transformar em filmes. Perguntado por Truffaut sobre porque nunca havia adaptado nenhum clássico, afirmou algo como: “Porque essas obras têm muitas palavras e todas são importantes.”. Nós, que somos da Letras, devemos atentar a isso: o diretor percebe que o mundo construído pelos grandes romancistas passa pelas palavras que escolheram utilizar – retirar uma palavra do todo seria destruir a obra. Isso fica claro tão logo vemos as adaptações cinematográficas de
Memórias Póstumas de Brás Cubas ou
Dom Casmurro – as piores são aquelas que desejam com mais veemência copiar literalmente a obra de Machado de Assis para as telas. Em
Vertigo, Hitchcock estava interessado em trabalhar as ideias de modo cinematográfico (o que, aliás, é uma constante na produção dele). Por isso nessa cena faz uso de símbolos para mostrar a força de Midge e a fraqueza de John. O modo como a cena é organizada através da montagem diz mais que quaisquer palavras. Por exemplo (sem nenhuma intenção de fazer uma análise exaustiva): O sutiã que a mulher desenha mostra seu papel empreendedor. Ele não é usado como um símbolo da inferioridade feminina com relação ao homem, mas sim simboliza o papel da mulher que trabalha. Neste sentido, contrapomos Midge e John: ela ganha seu próprio dinheiro, ele foi aposentado por problemas psicológicos. O modo irreverente como ela trata a sexualidade ao longo da cena mostra que ela é assertiva, enquanto a fragilidade de John torna-o passivo. Ao mesmo tempo, vemos que ela ainda é apaixonada por ele. Esses elementos, trabalhados na composição dos quadros dessa cena e na montagem dela, serão trabalhados ao longo do filme – quando Midge cuida de John no manicômio, quando cola seu rosto no corpo da suposta antepassada de Madeleine, no quadro que pinta, etc.
com Janet Leigh (Psicose)
Nesse mesmo post você fala, também, da maneira que, na visão de homem apaixonado de John, a mulher “misteriosa” se assemelha a um objeto de arte. Quando isso acontece e quais os símbolos responsáveis por tal interpretação?
Hitchcock emoldura a personagem de
Kim Novak – você percebeu isso bem ao apontar, abaixo, a moldura que envolve o perfil da atriz, assemelhando-a a uma estátua grega.
Isso também é patente na cena da floricultura e, imediatamente depois, na do museu de arte. A composição de imagens nessas duas cenas se assemelha: Na primeira, John abre uma porta no final do beco e dá num lugar incrivelmente florido; na segunda, a fria construção do museu recebe um quadro de temática e cores análogas. Ambos os lugares convidam o mergulho na imagem (o mergulho na ficção, por parte do personagem principal que observa a cena e por parte do espectador, que, por tabela, a vê). Isso também pode ser lido como uma metáfora no mergulho do espectador no objeto produzido pela Sétima Arte: teóricos na época ressaltavam o papel da montagem cinematográfica na identificação do espectador com a história apresentada nas telas. Lembra-se da
Rosa Púrpura do Cairo, quando a personagem de Cecília é convidada pelo mocinho do filme a entrar na tela? Woody Allen tornou literal a metáfora da projeção do espectador no filme.
Em várias cenas, as molduras são presentes no cenário (em alguns, com abundância). Na cena em que John vê Madeleine, pela primeira vez, há um momento em que ela se levanta da mesa, com sutileza, ao fundo uma moldura a envolve. Ela sai da mesa, passa por outra moldura, para e quando sai do restaurante sua imagem está em um espelho. Esses enquadramentos poderiam ser interpretados como uma metáfora do “segredo” do filme?
Do meu ponto de vista, essas composições sugerem o mistério que envolve a personagem (já que o mistério que a circunda é criado primeiramente pelo suposto marido dela e em seguida pelo próprio John); o romantismo com que o protagonista a observa; e, em última instância, a existência da mulher apenas enquanto construção ficcional – já que, como uma pintura, ela é apenas fruto da interpretação de alguém. Neste sentido, creio que podemos dizer que isso metaforiza o segredo do filme, sim.
Você diz que “Madeleine não é apenas uma mulher fugidia, ela é uma mulher que não existe (para perceber isso logo do princípio, o espectador precisa ver o filme uma segunda vez)”. Gostaria que você explicasse o porquê da afirmação de que “o espectador precisa ver o filme uma segunda vez” e falasse mais do envolvimento do telespectador, manipulado, ou não por Hitchcock.
Bem, eu escrevi o texto quando já tinha visto o filme umas dez vezes pelo menos. Uma obra de substância como essa vai se revelando para os espectadores aos poucos. Só prestamos atenção na relação entre o elemento pictórico e a ironia que envolve a personagem, por exemplo, quando já conhecemos o final da história – ou seja, depois que já sabemos que a misteriosa Madeleine não passava de uma simplória vendedora, e que a imagem de mistério dela foi construída para nós, como um pintor bom corrige as imperfeições de uma pessoa ao desenhá-la. Ao vermos o filme pela primeira vez, somos enganados tanto quanto Johnny. Depois de o vermos algumas vezes, conseguimos organizar seus símbolos em direção a uma interpretação. Sobre a manipulação do cinema, lembro os debates fomentados por Béla Balázs e Edgar Morin sobre o modo como a montagem direciona o olhar do espectador. No cinema, somos levados a enxergar com os olhos das personagens: quando uma personagem olha para determinado objeto, nós também o olhamos. Isso acontece pela alternância entre as objetivas indiretas (o olhar da câmera aos objetos) e as subjetivas diretas (o olhar do personagem aos objetos) – por exemplo, a câmera focaliza o personagem e, em seguida, focaliza o que ele vê. Esse movimento contínuo faz com que tenhamos a sensação de estarmos do filme, daí nossa identificação – ou seja, daí a sermos manipulados pelo diretor, já que é ele o responsável por organizar os olhares aos personagens, às coisas e os olhares dos personagens às coisas.
Hitchcock e Ingrid Bergman