domingo, 30 de outubro de 2011

Era uma vez um tolo e uma vampira: desdobramentos da “Vampire” do poema de Rudyard Kipling nos filmes de 1915 a 1966

Vestindo unicamente uma túnica branca, a mulher reclina-se sobre o homem que jaz em seu leito de morte. Ela é uma vampira. Ele, sua última vítima. A pintura do inglês Phillip Burne-Jones causou sensação ao ser exposta em público pela primeira vez, em 1897. Tanto que, inspirado por ela, Rudyard Kipling compôs o poema “The Vampire”. Nos versos, um eu-lírico aparentemente perturbado estende-se longamente sobre o perigo representado por aquela mulher misteriosa, perto da qual os homens não passavam de tolos.

A fool there was and he made his prayer
(Even as you and I!)
To a rag and a bone and a hank of hair
(We called her the woman who did not care),
But the fool he called her his lady fair
(Even as you and I!)

Burne-Jones e Kipling não tiraram o tema do nada. O arquétipo da mulher fatal povoa o imaginário ocidental desde a antiguidade e, como a fênix, renasce continuamente das cinzas. A cada retorno, crescem suas vítimas e os sentidos a ele vinculados. A mulher descrita por Kipling empresta a vilania e o éthos misterioso das fêmeas medievais, tantas delas mortas acusadas de servirem o demônio. No que toca ao seu nome, também remete ao personagem de Drácula, a quem Bram Stokem deu vida no mesmo ano. Mas igualmente respinga a literatura Romântica, especialmente no que diz respeito à faceta exótica e erótica de tal produção. A “jovem fada”, ser belíssimo e selvagem que enreda o cavaleiro em armas, obrigando-o a vagar a esmo na “fria borda da colina” (“La Belle Dame sans Merci”, poema de Keats – 1919); a maga que se veste de menino no intuito de penetrar no mosteiro onde habita o monge Ambrósio e lá, o induz à libertinagem (“Monk”, romance de Lewis, 1796): aproxima essas mulheres a invulgar beleza, o porte altivo e dominador, a frieza, o canibalismo sexual.
La Belle Dame Sans Merci de Sir Frank Dicksee (1853 - 1928)

O vampirismo delas é metafórico, o que não significa que, na literatura romântica, elas não convivessem com as vampiras literais. Um exemplo é a esplêndida Clarimonde do conto “A morte amorosa”, de Gautier. “Aquela mulher era um anjo ou um demônio, e talvez os dois; certamente não saía do flanco de Eva, a mãe comum.” – diz o pobre padre ao lembrar do momento em que os olhos dele encontraram os dela, quando ele era ordenado: “Que olhos! Como um raio, decidiram o destino de um homem.”. E efetivamente decidiram: o homem torna-se amante da vampira que, para se nutrir, bebia gotículas de seu sangue quando ele dormia.
O tema me interessa, aqui, pela relação que ele estabelece com o campo cinematográfico. Aliás, meu fascínio pela personagem da “Vampire” data da época em que inaugurei este blog, (quase) exatos três anos atrás. Nada melhor que lembrar do aniversário do meu filhinho trazendo-a de volta; especialmente considerando-se que o aniversário de “Filmes, filmes, filmes” é no Dia de Finados, dois após o Halloween... Meu fascínio foi primeiro gerado pela Theda Bara, hoje uma ilustre desconhecida da massa que vai ao cinema, porém, a principal atriz de meados dos anos 10. Em 1915, a atriz, então novata, encarnou a personagem de Kipling de modo tão altissonante que ela e sua película adquiriram fama instantânea. Na aurora do cinema de estúdio, parecia sensacional que uma atriz – ainda mais uma que desempenhasse papel de vilã – recebesse 100 cartas diárias, muitas com pedidos de conselhos; e açulasse as ligas de moralidade em torno de todos os EUA; e do dia para a noite começasse a rodar o mundo como símbolo de tudo o que era proibido e delicioso. Bara foi pioneira em mostrar o potencial mercadológico, social e simbólico do cinematógrafo.
O filme em questão, “A fool there was” (dirigido por Frank Powell para a Fox Films), apropria-se literalmente dos versos do poema de Kipling, que servem de intertítulo à encenação do declínio de um homem de família que se envolve com a personagem-título: “bela dama” tão conhecedora do “Desconhecido”, porém, tão alheia à moralidade comum. A fita aproveita-se igualmente da trama de “A fool there was”, drama em três atos de Porter Emerson Browne – encenado com tanto sucesso na Broadway (em 1909) que motivou o escritor à produção o romance homônimo; texto, aliás, dedicado a Robert Hilliard, criador do principal papel masculino no palco da Broadway e um dos responsáveis pelo processo de plágio movido contra o filme. A corte acusa o filme de se apropriar do título do livro, nada dizendo sobre a linha geral da trama – da qual, diga-se de passagem, ele também se apropria.
No poema, o caso entre a “Vampira” e o “Tolo” ganha o estatuto de símbolo: tempo e lugar são suspensos; em primeiro plano está a paulatina destruição do homem que desperdiçou “honra e fé e um intento verdadeiro” com a “mulher que não se importava”. Na peça e no romance, o símbolo é encarnado num tempo e lugar: a movimentada Nova Iorque do início do século XX, mais especificamente a elegante Fifth Avenue, onde cresce uma menina e os dois meninos que a amam. Todos são amigos. Depois de adultos, a jovem casa-se com um desses dois rapazes e tem uma filha. A família e o amigo vivem às mil maravilhas até que o homem – John Schuyler, o tolo em questão – é convidado a viajar ao estrangeiro a trabalho.
Seu encontro com a “Vampire” não fica devendo nada à literatura anterior que trata do tema. Também seus olhos são presas dos olhos da malvada: “[Deus] não me ajudou; e não consegui resistir. Eu tentei! Como tentei! Mas havia algo em seus olhos, eram olhos que queimavam e crestavam!”. Sua destruição é descrita nos mínimos detalhes no romance. No fim de seus dias, já preso de corpo e alma ao comando da femme fatale, torna-se “Uma imitação enfraquecida, miserável, digna de piedade do John Schuyler que ele havia sido.”. “Honra, e fé, e um intento verdadeiro, uma esposa, uma criança, uma reputação, um caráter”, tudo ele perdeu, restando-lhe apenas o “nu, úmido esqueleto”. Como um pássaro encantado por uma cobra, ou um príncipe encantado por uma bruxa má – analogias postas no romance – não havia escapatória ao ser humano escolhido como vítima pelo ser supra-humano. Isso aproxima “A fool there was” da literatura romântica e da decadentista/ simbolista do fim do século XIX, sensíveis ao intangível e ao misterioso que circundava o homem.
Katherine Kaelread, a Vampire da peça de Emerson Browne

Porém, a história de Porter Emerson Browne é, sobretudo, uma peça moralista. No cerne da questão está a ambição do homem, que abdicava da segurança do lar e da proximidade da família e rumava ao desconhecido. Mesmo sua força e pureza de caráter, reafirmados ad nauseam nas primeiras 100 páginas do livro, não conseguem ajudá-lo quando ele se encontra com os olhos e depois, com o restante do corpo da mulher fatal. À segurança do lar ele prefere o amor da vamp: amor que queima “como o fogo do inferno”, tão excitante quanto a rosa vermelha cujas pétalas ela debulha sobre ele. Tudo isso é contado com fortes tintas melodramáticas, que insistem em pintar a felicidade no seio do lar e num matrimônio sadio em contraposição à saciedade sexual nos braços da vampira – alegria intensa porém, mentirosa (“false heaven of unreal joys”, como pomposamente descreve o romance), como a história desfilará escolarmente ante os olhos do público.
O fim do homem é a mais vil das mortes: abandonado pela família e amigos e decrépito, ele despenca aos pés da vamp, que debulha sobre seu corpo as últimas pétalas vermelhas que ela lhe oferecerá. Aqui não há dupla interpretação – diferente do conto de Gautier, em que o padre, depois de matar a vampira, questiona-se se ele seria realmente mais feliz sem ela. No final da peça – diz a crítica dela publicada na época – a luz que banhava o casal de libertinos indicava com clareza que não era o céu que os esperava; expediente que a própria crítica aplaude, já que “textos moralizantes nunca são demais” – ela afirma.
O cinema, desde seu surgimento, acompanhou o teatro no emprego da personagem tipo da mulher fatal. Porém, no escuro da sala de exibição elas pareciam ao público mais deleitantes do que perigosas. Em “A fool there was”, a “Vampire” de Theda Bara termina com um riso sardônico enquanto desfolha rosas sobre o cadáver de John Schuyler. Nada de luz indicando punição: o homem é punido; ela sai vitoriosa. Não muito depois, por influência das ligas de moralidade, as vamps das telas principiariam a amargar claras punições pelos seus atos. Antes disso, Theda Bara vira ídolo de homens e mulheres, velhos e crianças; é transformada pelos fãs em conselheira e até leva a cabo o insólito papel de madrinha dos soldados americanos durante a Primeira Guerra (ela recebe o cetro ao som de entusiastas Vamp! Vamp! Vamp! vindos dos soldados, como lembrou-me certa vez o amigo Ricardo Leitner).
Fotografia de divulgação de "A fool there was"

Depois de Theda Bara, muitas mulheres fatais amargaram com a morte os crimes que cometeram. Os anos de 1910 para 1920 foram, para o cinematógrafo, de busca de um crescente realismo; de uma crescente humanização de arquétipos – como constata Edgar Morin no saborosíssimo (e inteligentíssimo) As estrelas: mito e sedução no cinema. A vamp de Theda Bara era uma força da natureza; selvagem, inexplicável e indomável. As posteriores eram mais humanas, suscetíveis ao amor, à consciência de seu erro e, na lógica pedagógica do melodrama, merecedoras de punição. Conforme o realismo assenta-se ao cinematógrafo, personagens como a “Vampire” de “A fool there was” são consideradas mais e mais ridículas (para constatar o fato basta que assistamos a trechos deste filme com os pressupostos de hoje). Isso as leva a serem lidas pelo cinema, nos anos subseqüentes, pelo viés do humor.
Exemplo delicioso é a participação de Gloria Swanson num episódio do “The Beverly Hillbillies” de 1966, no qual ela incorpora a personagem de Theda Bara num filme rodado dentro do episódio. O “Tolo” é o pai de família, uma espécie de Zé Buscapé, o que por si só já dá dimensão de humor à apropriação. A graça ainda será multiplicada pela encenação ultrateatral do casal, pela alteração do conteúdo e alguns diálogos – numa clara referência à película de Bara – e pelo desfecho diametralmente oposto, já que o pai larga de bom grado a mulher fatal para ficar com a esposa e a filha. Abaixo há os dois vídeos para a comparação (e a diversão).



Outra releitura inteligente do tema é feita na “Roda da Fortuna” (dirigido por Vincente Minnelli, filme que foi tema do post abaixo), mais especificamente na sequência musical “Girl Hunt: a Murder Mystery in Jazz”, protagonizado por Cyd Charisse e Fred Astaire. Este filme, como o anterior, faz uma leitura metalinguística da arte; desta vez, do teatro. O número soma mistério e dança, numa referência ao filme noir – outro gênero que fizera largo uso da mulher fatal – e ao cinema musical. Desta vez, não retornam trechos do filme de Theda Bara, mas sim do poema de Kipling. A sequência apropria-se de símbolos criados pelo poeta, todavia, desfragmenta-os e os ressignifica. O farrapo, o osso e o chumaço de cabelo (rag, boné, hank of hair) aos quais o “Fool” de Kipling faz sua oração serão, no número musical, transformados nas pistas que levarão o detetive protagonizado por Astaire a descobrir o assassino ladrão de esmeraldas.
Ao longo do número, acompanhamos as andanças do homem, apresentadas de modo fragmentário e aludindo todo o tempo aos símbolos em questão: quer seja no ateliê de alta costuras, na loja de perucas ou no insólito “Bar do Esqueleto”, onde ele novamente encontrará a mulher “má” e “perigosa”, de vestido vermelho colado ao corpo e andar deslizante de cobra. A mulher – Cyd – deslizará por seu corpo e o convidará para dançar, introduzindo no sincopado número de jazz - plenamente compartilhado por ambos - a dureza e a assertividade comum ao arquétipo das mulheres fatais.
Figura diametralmente oposta é a loura delicada – também interpretada por Cyd – cujos passos de balé servem como símbolo da necessidade que ela tem de proteção. Porém, o detetive e o público descobrirão no desfecho que a malvada não era a vamp e sim, a mocinha loura. Ela é morta pelo detetive machão que verá, ao fim e ao cabo, que “alguma coisa estava faltando” para si. Faltava-lhe a mulher fatal: “Ela era má, era perigosa. Eu não podia confiar nela. Mas era o meu tipo de mulher.”. É com ela que ele acabará a história – e bastante feliz, aparentemente...

Os objetos artísticos que surgiram a partir da pintura de Burne-Jones, nos quais me detive aqui, deixam claro o que atesta Edgard Morin sobre a paulatina humanização do arquétipo da vamp. Ao me deter sobre os exemplos, procurei demonstrar como isso acontece. A “Roda da Fortuna” dá o último passo, penso eu, ao inverter o arquétipo. Fico pensando no quanto tal inversão não se relaciona ao papel que a mulher daquela época desempenhava na sociedade. Ela saía mais às ruas, votava, tinha mais voz ativa, tomava decisões; não era mais o bicho desconhecido e temido pelo homem, que ele se via obrigado a proteger ou subjugar. O que igualmente gerou outro tipo de homem: um que não se incomodava em ser domado, contanto que ele e a domadora se divertissem. Afinal, um relacionamento regado a rosas vermelhas poderia ser muito mais excitante (em todos os níveis) que as rosas brancas oferecidas pelas sensaboronas mocinhas dos anos de 1900, 1910.
*
Me ajudaram a escrever o post, além de Morin, Mário Praz (A carne, a morte e o diabo na Literatura Romântica).

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

“A Roda da Fortuna” (1953): brilhante homenagem ao cinema musical

“The Band Wagon” compôs a lista dos filmes de Vincente Minnelli que o Centro Cultural Banco do Brasil recentemente apresentou ao público amante do cinema.
A mostra dedicada ao diretor ofereceu aos curiosos a possibilidade de conhecer um dos mais competentes artífices da Hollywood clássica e aos cinéfilos, o prazer de rever clássicos do musical e do melodrama – gêneros que Minnelli manipulava com maestria – desta vez na tela grande. Eu me encaixo na segunda categoria. No CCBB carioca eu vi esse musical pela – suponho – vigésima vez. E mesmo sabendo de cor e salteado canções, diálogos e sequências, senti emoção análoga àquela que me pegou quando eu o vi pela primeira, ainda moleca. Análoga não, maior. E não só pelo tamanho da tela: minhas andanças pelo mundo da sétima arte me permitiram comprovar que esse filme é um dos mais sofisticados musicais da história do cinema.
Curioso é que essa sofisticação é construída a partir da mais óbvia das premissas. A obra trata dos bastidores da produção de uma comédia musicada a ser encenada na Broadway. Segue, portanto, a trilha dos “Broadway Melody” (de 1929, 1935, 1937, 1940), de “Rua 42” (24nd Street, 1934), “Footlight Parade” (1933), “Ciúme, sinal de amor” (Berkleys of Broadway, 1949) e um cem número de backstage movies que ganharam as telas desde que o cinema começou a falar e a dançar. Soma-se a isso o fato de sua produção ter sido contratada tendo-se em vista a utilização de um cancioneiro fechado (pertencente aos compositores Arthur Schwartz e Howard Dietz), a partir do qual deveria ser desenvolvido o enredo. Coube à unity de Arthur Freed, da MGM, rodar um filme que visasse, sobretudo, engordar os caixas da companhia. Trata-se, portanto, de uma obra realizada dentro do mais severo controle do estúdio, o que aparentemente lhe roubaria qualquer originalidade.

Os trigêmeos encrenqueiros Astaire, Febray e Buchanan

Porém, o acaso quis que as canções fossem escolhidas com extremo bom-senso por Betty Comden & Adolph Green, que no ano anterior haviam roteirizado “Cantando na chuva”, o que por si só patenteia a eficiência de ambos. A dupla produz um roteiro num só tempo limpo, profundo e bem-humorado, amarrando-o tão bem às canções que é como se elas brotassem naturalmente dele. O principal responsável por encarnar a graça desenhada pelo casal é Fred Astaire, monstro sagrado do cinema musicado que desempenha um ator decadente do teatro cômico-musicado tentando voltar ao palco da Broadway pelas mãos de Lily e Lester Marton – exceto no que toca à decadência, Fred era uma espécie de irmão do personagem que põe em cena. Oscar Levant e Nanette Fabray desempenham, em cena, os alter-egos de Comden e Green. Fred e Cyd Charisse representam personagens que ecoam seus passos artísticos.

O sapateador

Fred ingressou no show business ainda criança. Sapateou ao lado da irmã até ela se casar e deixar o meio artístico; só aí ele pensou seriamente no cinema. Cyd era bailarina de formação e fora contratada pela MGM para tomar parte no coro de “Ziegfeld Follies” (1945), uma das stravaganzas da companhia. Embora o studio system criasse para eles personas artísticas que se completavam, o certo é que ambos eram artistas muito diferentes: um popular, outro clássico. Comden & Green aproveitam-se disso, fazendo essa diferença emergir como cerne da história. Com isso, transformam “A Roda da Fortuna” no palco onde se encena o conflito indissolúvel entre a arte da elite e a das classes populares. Porém, isso se dá sem que a graça se perca. Embora o filme tenha um forte viés crítico, ele não deixa de ser adorável; e para que isso ocorra, Jack Buchanan desempenha papel fundamental.
Buchanan era ator cômico de carreira sólida no vaudeville londrino. Em “The Band Wagon” ele é Jeffrey Cordova, um “faz tudo” comum no meio artístico naquele tempo – meio que tinha revelado Orson Welles (diretor-autor-ator de “Cidadão Kane”) uma década atrás. Jeffrey é um artista “sério” – a primeira cena sua flagra-o desempenhando a tragédia “Édipo Rei”.

Édipo Rei sai de cena...

Todavia, ele será caracterizado desde o início como personagem cômico – repetindo uma constante na produção cinematográfica de Hollywood: a defesa de seu cinema a partir do rebaixamento da arte considerada “erudita”. Daí, por exemplo, o deslizar jocoso da câmera pelo cartaz de propaganda da tragédia na qual seu personagem entrava como tradutor, diretor, produtor e protagonista. Jeffrey desempenha um megalômano que rejeita a arte ligeira em prol do drama, considerado por ele um produto cultural superior. Por isso, tão logo põe as mãos no roteiro dos Marton, desejará transformar uma “light play” num “drama with stature and meaning”.
Exemplo cabal da graça com que o assunto é tomado encontra-se na extraordinária “That’s Entertainment” – canção que, dali em diante, passaria a definir o show business (Gene Kelly rodaria, entre os anos de 70 e 90, o trio de documentários do mesmo título – um sensacional tributo ao cinema musicado da MGM). A canção é usada duas vezes. Na primeira, quando os Marton apresentam o entrecho da comédia a Jeffrey e descobrem que ele deseja transformá-la no tal “drama de estatura e significado”. Questionado sobre o retorno financeiro que teria uma produção tão erudita, o homem afirma que tudo era entretenimento: desde os trejeitos de um palhaço até o drama vivido por Hamlet. A partir daí, os roteiristas e o sapateador decadente entram em seu jogo, dando vida a um genial número musical, perfeito pelo modo como a cenografia potencializa o sentido da música. Segue o vídeo – nunca é demais (re)ver uma obra prima:

Jeffrey transformará a “peça graciosa” escrita pelos Marton – peça em que o enredo frouxo serviria apenas como desculpa para a introdução de números musicais; bem ao gosto do teatro musicado daqueles tempos – numa versão moderna do mito de Fausto. Num drama de tamanha estatura ganharia o papel feminino principal a bailarina clássica interpretada por Cyd Charisse, a quem o público é apresentado num solo de ballet de tirar o fôlego.

A bailarina

Cyd e Fred – Gabrielle Gerard e Tony Hunter – metaforizam desde o princípio o conflito entre a cultura europeia e a norte-americana. Falei sobre isso com algum cuidado posts atrás, quando discuti o papel dos musicais de Rooney & Garland na afirmação da cultura ianque. Remeto os leitores àquele texto para ir direto ao ponto aqui. Se, durante a primeira metade do filme, sobram desentendimentos e farpas entre o casal principal, ambos acabarão por descobrir um meio termo que torne possível sua relação – primeiro no âmbito profissional e depois no afetivo. Isso não enquanto ensaiam o Fausto moderno, mas sim durante o belíssimo dueto Dancing in the Dark, no qual Cyd e Fred explicitam que o que os diferencia é o gênero ao qual cada um resolveu se dedicar, não a beleza com que o fazem.

O desenlace da história é óbvio – portanto, deem-me licença de dizê-lo: a megalomania de Jeffrey mostra-se infrutífera, levando-o a entregar a batuta da direção da peça a Tony Hunter. Uma vez na dianteira, o sapateador poderá realizar com os Marton o projeto original. De bailarina clássica, Gabriele Gerard torna-se vedete de teatro de revista – o sonho de consumo da Hollywood clássica... E todos vivem felizes para sempre – inclusive eu, pelo menos cada vez que vejo o filme. Mas não sem antes entoarem uma paródia de “That’s entertainment” que subverte o sentido da original. Se, na versão entoada no início do filme, todo e qualquer gênero serviria para entreter o público, no final fica claro a supremacia do teatro leve sobre o erudito:

A show that is really a show
Sends you out with a kind of a glow
And you say as you go on your way
That Entertainment!
A song that is winging along
or a dance with a touch of romance
is the art that appeals to the heart
That's Entertainment!
Admit we're a hit and we'll go from there
We played a charade that was lighter than air
a good old fashioned affair
as we sing this finale
we hope it was up your alley
No death like you get in Macbeth
No ordeal like the end of Camile
This goodbye brings a tear to the eye
The world is a stage
the stage of a world of entertainment!

Supremacia que, em última instância, é estendida para o próprio cinema americano – que tantas críticas ouvira desde o início do século por ser considerado um arremedo da arte teatral; por só servir de diversão barata às classes pobres; por destruir as personagens criadas para os palcos and so on... A releitura da canção passa em revista o enredo do filme: o palco (e, por extensão, a tela), é um mundo aberto ao entretenimento, portanto, um espetáculo que desejasse tocar o coração do público deveria deixar de lado o drama em prol da “música que voa como um pássaro” e da “charada que é mais leve que o ar”... Coisa que o filme faz de sobra, brincando com gêneros e tipos explorados pelo cinema em seus primeiros 50 anos de existência (os desentendimentos amorosos, os quiproquós cômicos, a trama detetivesca, a mulher fatal), submetendo-os todos à lógica do musical de estúdio. Porque “A Roda da Fortuna” é, acima de tudo, uma defesa arrebatada e arrebatadora do musical da época de ouro do cinema. E se esses argumentos ainda não convenceram o leitor a verem-no, então o vejam porque ele é lindo, lindo, lindo.