Enquanto eu via “Casablanca” pela última vez, na semana em que o filme completava 70 anos, procurei levantar as razões que o tornaram tão especial aos olhos da crítica e do público, da época e de hoje. Em 1943, a obra recebeu os Oscars de Melhor Diretor, Filme e Roteiro. Em 2007, ela passou a ocupar o 3º lugar na seleção da American Film Institute dos 100 melhores filmes americanos de todos os tempos. Hoje, ocupa o 20º lugar da sempre atualizada lista do IMDB dos 250 melhores do mundo. Uma unanimidade.
Unanimidade merecida, nem é preciso dizer.
“Casablanca” conseguiu, na época, a proeza de agradar as mais diversas camadas do público. Sucesso devido à competente mistura de gêneros que apresenta: É uma história de aventura, anunciada desde o princípio pela melodia épica de Max Steiner, enquanto um mapa-múndi a girar aponta o caminho palmilhado pelos personagens. Tem lastro forte com a realidade, que aparece fundida aos planos do mapa, nas imagens (provavelmente) de arquivo dos indivíduos que deixaram a Europa assolada pela guerra rumo ao Marrocos francês, de onde poderiam partir para a América, desvencilhando-se da fome, da pobreza e dos nazistas. E tem uma história de amor. Uma, não: tem a história de amor quintessencial, feita de lágrimas, fossas homéricas, abnegação; embalada pela canção que define cabalmente seus protagonistas.
Moonlight and love songs
Never out of date
Hearts full of passion
Jealousy and hate
Woman needs man
And man must have his mate
That no one can deny.
It’s still the same old story
A fight for love and glory
A case of do or die.
The world will always welcome lovers
As time goes by.
Ao emoldurar o idílio de Ingrid Bergman e Humprey Bogart, “As time goes by” – composta originalmente para um show de pouco brilho da Broadway e esquecida em 1932, junto com ele – torna-se atemporal. Sem a história de amor impossível que vive o casal não haveria uma sussurrante Barbra Streisand, trepada sobre o piano em “Esta pequena é uma parada” (1972), a cortejar Ryan O’Neal enquanto arrastava as letras da melodia. Ou Meg Ryan na busca insólita pelo homem por cuja voz ela se apaixonara em “Sintonia de Amor” (1993). A canção torna-se depois metonímia de cinema – já que o amor é o que, sobretudo, o nutre. Não é à toa que ela foi escolhida pela Warner na altura dos anos 2000, para embalar o clipe comemorativo de seus 75 anos, e desde então serve de trilha sonora ao logotipo da companhia.
Parte considerável do charme duradouro do filme está na escolha dos protagonistas. Ingrid chegara a Hollywood havia pouco, vinda da Suécia, país onde fizera poucas protagonistas. Graças a uma delas, a jovem pianista de “Intermezzo” (1936), a atriz é descoberta por David Selznick e, então, convidada a repetir o papel em versão norte-americana da película. Sua beleza natural a torna objeto de atenção na Hollywood maxfactorizada da entrada dos anos 40, multiplicando-lhe as chances de trabalho e atrelando-se imediatamente a ela uma imagem de pureza e magnificência da qual ela forçou-se por se desvencilhar, na vida e na arte, em papéis como o da dançarina de cabaré de “O Médico e o Monstro” (1941) ou em sua escapada rumo ao neo-realismo de Roberto Rossellini em 1949, do qual ela retornaria apenas sete anos mais tarde, mãe de três filhos de seu marido-diretor. Humprey Bogart ingressara na Sétima Arte corporificando uma variante de facínoras, ocasionalmente desdobrados em toda sorte de indivíduos de caracteres dúbios. Trabalhando constantemente desde 1930, ainda em 1940 ele raramente via seu nome encabeçar os créditos das produções – vilães raramente faziam papéis principais.
“Casablanca” colocou em cena os opostos, redesenhando os tipos no curso da ação. Redesenhou menos a bela Ingrid – que no filme desempenha uma variante das mulheres esplendorosas das quais ela tentava fugir – que Bogart, que se vê transformado numa versão atualizada de romantic knight, a torturar-se pelo amor da misteriosa europeia por quem se apaixonara durante a guerra, e que agora ele via à sua frente, supostamente inatingível porque casada com um homem moralmente superior. Cabe a Bogey os gestos mais românticos da história. Ingrid é, durante boa parte do filme, a mulher racional, fiel acompanhante do marido, líder da resistência francesa durante a 2ª Guerra. Toda a frieza de Bogey, desdobramento dos inúmeros personagens frios que ele interpretara no curso de sua carreira, desfragmenta-se quando ele reencontra a personagem de Ingrid na “espelunca” que possuía em Marrocos. “As time goes by”, que novamente materializa o caso de amor ao ser tocada por Sam no Rick’s Café Americain, é primeiro relembrada por Ilsa, mas comove sobretudo Rick. É ele que, na escuridão do bar fechado, bêbado, pede que o pianista – testemunha da história – toque novamente a canção:
Rick: You know what I want to hear.
Sam: No, I don't.
Rick: You played it for her, you can play it for me!
Sam: Well, I don't think I can remember...
Rick: If she can stand it, I can! Play it!
A fragilidade que subjaz a casca supostamente impermeável reproduz-se numa série de gestos que devem ter surpreendido os homens, acostumados ao tipo usualmente desempenhado pelo ator, e posto as mulheres para suspirar. Esta que aqui escreve julga o diálogo entre Rick e Ilsa, na mesa compartilhada também pelo marido Victor Laszlo (Paul Heinreid) e pelo capitão francês Louis Renault (Claude Rains), uma das mais belas cenas da história do cinema. É Rick que lembra os detalhes do último encontro de ambos, no dia em que os Alemães sitiaram Paris: “[It] was La Belle Aurore. I remember every detail. The Germans wore gray, you wore blue.” Uma cena que patenteia a quebra do estereótipo de machão é sempre digna de nota, especialmente quando ela tem como interlocutor um personagem também superior de marido, que silenciosamente compreende a dor da esposa que o julgava morto e, portanto, na solidão da guerra, se envolvera com outro.
A Guerra é a mola propulsora da história. “Casablanca” compõe, sem dúvida, parte do esforço norte-americano de propaganda antinazista e em prol dos aliados. Os EUA entraram objetivamente no conflito em dezembro de 1941, após a invasão de Pearl Harbour comandada pelos japoneses. O filme estreou um ano depois, durante a fase mais cruenta do conflito. Era o momento em que a França subjugada pela Alemanha era dobrada a gestos moralmente condenáveis, como a caça aos judeus franceses e a entrega dos mesmos à oficialidade alemã. O momento em que os campos de concentração transformaram-se em campos de extermínio – aliás, um documentário imperdível sobre a questão é “Noite e Neblina” (Nuit et Brouillard, 1955), de Alain Resnais.
O filme encara com força essas questões, batendo de frente, de modo surpreendente, com a Casablanca prenhe de exotismo – e, portanto, muito pouco verossímil – que ele constrói no âmbito do cenário. Numa época em que teoricamente pouco se sabia sobre quão nocivos eram os campos de concentração ou sobre o envolvimento escuso da França com a Alemanha nazista, Victor Laszlo, tendo recentemente escapado de um campo e fugido para o Marrocos, afirma: “In a concentration camp, one is apt to lose a little weight.” Para também colocar em questionamento o papel desempenhado pela França no conflito: “The present French administration hasn’t always been so cordial.” Representante, no filme, da administração francesa, é o Capitain Louis Renault: charmoso, corrupto, a flertar com a oficialidade alemã durante o transcurso da película. Suas atitudes subscrevem a assertiva de Laszlo. Porém, o desfecho obrigará não só Renault, mas todos os demais personagens, a rever suas posições.
Obra produzida para o esforço de guerra, “Casablanca” tem um fecho inclinado ao idealismo. Idealismo adolescente, com direito a exaltações cívicas e a corações a falarem mais alto. Porém, ainda assim, comovente. Que cena é mais tocante que aquela na qual os europeus espoliados de Casablanca silenciam o hino alemão ao entoarem em uníssono a Marselhesa? A união de Rick e Laszlo, rivais no amor, porém, partidários da liberdade anunciada pelo hino; o grito final de “Vive la liberté”, enunciado pela ex-namorada de Rick, agora amante de um alemão, porém, acima de tudo partidária da França... A cena que botou lágrimas nos olhos dos roteiristas, como é dito nos extras da edição de 60 anos da película, provoca em mim reação análoga sempre que a vejo, mesmo transcorridos 70 anos de sua rodagem. Os céticos dirão que o cinema era aliado valioso na transformação do povo em massa de manobra do Estado. Eu prefiro pensar que os ideais conflagrados pelo filme são das mais belas ficções que aprendemos. A vitória da liberdade e o amor. “A fight for love and glory”, nos dizeres da eterna canção. “Casablanca” vive até hoje porque eles ainda não morreram.
Tais ideias não são alardeadas num filme puramente de palanque, como Hollywood usava fazer naquele tempo. Ganham corpo por meio de uma cinematografia coesa, que procura responder aos anseios do público sem, para isso, precisar abdicar da qualidade estética. O diretor Michael Curtiz era um dos multifacetados da indústria do cinema, eficiente na direção de dramas, comédias, musicais, thrillers. Aqui, sua união com os roteiristas Julius e Philip G. Epstein e Howard Koch faz brotar uma história que une com precisão a comédia, o drama, a tragédia e a música.
O cancioneiro americano é reverberado de modo acolhedor pelo piano de Sam, algumas vezes acompanhado de coreografia, à moda dos musicais, outras se atrelando intimamente à história narrada – “Love for sale” (Cole Porter), por exemplo, é tocada quando Renault se junta a Ilsa e Laszlo no Rick’s Café, ironizando a suposta volubilidade do coração da mocinha. A comédia pontua o drama, nota dominante do filme, mas um riso de canto de boca perpassa mesmo os momentos mais dramáticos, já que o roteiro é absolutamente genial, repleto de movimento e de frases inesquecíveis: “Round up the usual suspects.” (Renault), “Here’s looking at you, kid.”, “We’ll always have Paris.”, “I think this is the beginning of a beautiful friendship.” (Rick). A câmera desliza atrevida pelos eventos, a iluminar-lhes com uma precisão a toda prova. Só não penetra mesmo no coração da heroína, cujo dono a audiência apenas conhecerá ao fim da história, coroada por aquela cena final que todos já devem conhecer, ápice da abnegação e do romantismo. Porque a principal razão da perenidade de “Casablanca” está estampada nos versos de sua canção-tema:
The world will always welcome lovers
As time goes by
13 comentários:
Existem inúmeras razões para o sucesso desse clássico, um que eu destaco, é o final que está muito longe do convencional, o que o torna unico.
Acompanhe o meu novo especial que comecei essa semana no meu blog:
http://cinemacemanosluz.blogspot.com.br/2012/07/cine-especial-david-lynch-o-lado-escuro.html
Dani minha querida!!!! Ahhh... cheguei a imprimir para me recostar numa poltrona gostosa, colocar as pernas pra cima, relaxar e curtir "de fio a pavio" esta delícia de postagem...
Voce tocou no ponto mais profundo da arte cinematográfica que envolve este filme... Ele sempre será atual, ele nao está (apesar do tema "anos 40") ligado à uma certa linguagem cinematogtrafica vinculada à uma certa época... existem muitos "clássicos" que envelheceram... La Dolce Vita é para mim um exemplo... Bravo Dani, minha "ídola" da Blogsfera!!!!! Amei!
Beijos
Ricardo
Bela homenagem ao clássico que até hoje comove multidões.
O Falcão Maltês
Não credito que ainda não vi Casa Blanca, preciso fazê-lo imediatamente!
http://monteolimpoblog.blogspot.com.br/
Excelente tua postagem.Parabéns Meu abraço.
Gente, muito grata pelos comentários!
Marcelo, você tem toda razão. Pode deixar que logo mais vou acompanhar seu blog. Estou meio atarantada ainda, mas em breve estarei mais tranquila e aí passo lá. E o selinho, fazendo sucesso? :D
Antonio, Suzane, obrigada pelos elogios! Gabriel, veja urgente o filme! É imperdível pra quem gosta e/ou quer conhecer cinema clássico.
Ricardo, você é um querido, mesmo! Muito obrigada pelo elogio (estou aqui misintindo). Então, pra mim esse filme só ficou melhor com o tempo. Uma arrematada obra-prima. Sabe, La Dolce Vita me encanta. Mas há uma porção de coisas que não descem. Outros feitos na época de Casablanca, tematizando a guerra. "For me and my gal", por exemplo. Há Judy linda e afinada, Gene Kelly mais belo que nunca, mas a coisa toda soa tão moralista...
Bjs pra todos
Dani
Dani ótima lembrança e ótima postagem, CASABLANCA na minha opinião é um dos maiores filmes de todos os tempos, inclusive em meu blog é o post com maior número de acessos, e sempre sem ser alcançado...
Ótimo texto, Parabéns mais uma vez...
Abração
Olá , em meu blog postei , desmistificando supostos furos no roteiro de CASABLANCa , e , como admirador do filme , adorei seu post!
Honre-me com sua visita!
http://efeblogdoefe.wordpress.com/
EFE
Dani, ainda não tinha lido seu post para não escrever o debate Cidadão Kane contra Casablanca com um toque tendencioso.
Você falou tudo: Casablanca toca nossos corações, especialmente com o durão porém sensível Rick, a Marselhesa e, claro, As Time Goes By. Por sinal, não conhecia a trajetória da música.
Beijos!
Lê, Effe, Jefferson, muito obrigada pela visita, leitura e palavras de vocês!
Lê, li ontem de noite o post no qual você compara os dois filmes e achei muito bom. Só não comentei porque era tarde, e eu ia ser meio comprida - volto lá logo que voltar de viagem. Mas você tem razão quanto à subjetividade de se decidir sobre o melhor. Eu gosto demais dos dois, mas é Casablanca que mora no meu coração - como acontece com parte considerável das pessoas, como você observou lá, e o Jefferson notou no blog dele...
Efe, vou com certeza ler seu blog. A honra será minha!
Abraços
Dani
Estou acabando de chegar no teu blog, e de cara um filmaço como CASABLANCA adorei muito mesmo,sinal de que vou gostar do blog!
Parabens!!!
Deise, muito obrigada pela referência tão simpática ao blog! O filme é um escândalo, não? É desses filmes que vão ficando melhor à medida em que os vemos...
Abs
Dani
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