domingo, 30 de setembro de 2012

“Ninotchka” (1939). Ou: como fazer uma bolchevique render-se à Cidade-Luz.

O aniversário de 107 anos do nascimento de Greta Garbo, comemorado em 18 de setembro, pedia uma celebração à altura. Urgia rever algo da eterna “Divina”, da dama solitária, etérea, inatingível. “Ninotchka”, só poderia ser “Ninotchka”! Que filme mais condizente com um festejo de aniversário, mais high-spirited, mais esvoaçante do que o conto da bolchevique convertida às plumas e paetês do capitalismo pelas mãos do francês bon vivant Leon? Garbo está tão brilhante nesta comédia de Lengyel, Reisch, Brackett, Wilder e Lubitsch, encontra-se tanto nela, que pouco nos damos conta de que este é o filme no qual ela menos foi Garbo...
em "Mata Hari"
O que não se deu por acaso. O fim da década de 1930 via a saturação dos tipos criados por Hollywood a partir de meados de 1910. Pelo espaço de 10 anos a atriz experimentara sucesso inaudito pelas variantes de vamp que levou à cena: a Mata Hari (do filme homônimo de 32), a Felicitas (de “Flesh and the Devil”, 1927), a tentadora Elena (de The Temptress, 1926), a misteriosa Tânia Fedorova (de “The Mysterios Lady”, 1928). Mulheres perigosas, porque distantes léguas da criatura passiva tida naquele tempo como modelo de esposa ideal. Mulheres que misturavam androginia, liberalidade e romantismo num grau demasiado temerário para a sociedade machista onde viviam; daí a pagarem por suas escolhas desviantes com a morte ou a solidão. 
Os desenlaces dos filmes de Garbo apresentam quase que unicamente o desfile de entes infelizes. Pobre bailarina Crusinskaya, que em tão breve período descobre o amor e a perda (“Grande Hotel”, 1932). E Camille, que sucumbe após ser obrigada a deixar seu querido Armand (“A Dama das Camélias”, 1936)? E a Rainha Cristina (do filme de 1933), que abdica da coroa para imediatamente depois descobrir que o amado morrera em combate? E Elena, pobre ébria a vagar pelos botequins da vida, sem perceber que o homem que lhe dá esmola é seu grande amor, e a confundir o mendigo com Jesus Cristo!? A máxima hollywoodiana do happy ending sistematicamente poupou Greta Garbo. 

Por isso, “Ninotchka” marca uma ruptura na carreira da atriz. Por ser a primeira comédia de uma filmografia que remontava a 1924 e porque marca a redefinição da persona que a tornara notória e que deixara de apetecer o público. Sorte de Garbo – e nossa – foi que tal redefinição tenha se dado por meio de veículo tão primoroso. “Ninotchka” é uma obra-prima de comédia, brilhantemente escrita, desempenhada e dirigida. 
Quem conduz a batuta aqui é Ernst Lubitsch, alemão que nasceu artisticamente junto com o longa metragem, em meados dos anos de 1910. Foi um dos grandes artífices da sétima arte; homem de timing perfeito para o que quer que fosse: a comédia sofisticada silenciosa (“Lady Windermere’s Fan”, 1925); o musical (“Alvorada do Amor”, 1929, apresentação do eterno par romântico Jeanette MacDonald/Maurice Chevalier); a screwball comedy (“To be or not to be”, de 1942 e “A loja da esquina”, de 1940 são duas obras-primas do gênero)... 
Lubitsch, Garbo e Melvyn Douglas
No que concerne a “Ninotchka”, Lubitsch soma o trabalho de direção ao de escrita do roteiro. Segundo Mark Vieira, soluções fundamentais à história foram criadas pela pena do diretor. Soluções cinematográficas, que claramente faziam emergir o Lubitsch touch, como as cenas em que figura o chapeuzinho tipicamente parisiense, a relação de Ninotchka com o adorno servindo de metáfora à sua paulatina aceitação dos modos de vida da Cidade-Luz. Mark Vieira ainda sublinha a importância de Lubitsch no sentido de ajudar sua protagonista a encontrar o caminho da personagem – Garbo estaria insegura e amedrontada por retornar à cena numa personagem tão diversa daquelas que costumava interpretar. 
Notória por personificar mulheres cada vez mais distantes, Garbo via-se arrastada a terra. “Garbo laughs”: a expressão que surgira antes do roteiro, no departamento de marketing da MGM, deixava claro o intuito de dessacralizar a persona da “Divina”. O roteiro primoroso segue fiel o intuito, efetuando a humanização da diva por meio de um delicioso exercício metalinguístico, que todo o tempo questiona e rasga a roupagem que o star system atrelara à atriz. 
Garbo é Ninotchka, enviada especial da Rússia comunista à luminosa Paris de um tempo nostalgicamente referido no prólogo como “aqueles dias maravilhosos em que uma sirene era uma morena e não um alarme – e se um francês apagava a luz, não era por conta de alguma ameaça aérea!”. O tempo histórico da rodagem da película era, efetivamente, bem mais conturbado: em 1939, Hitler já havia anexado a Áustria, declarado Guerra aos Aliados e assinado um tratado de não-agressão com a Rússia. O filme caminha entre a história e a fantasia: saíra da máquina de fazer sonhos que, no entanto, durante a guerra aceitava cada vez mais discutir a realidade. Por isso, Ninotchka é num só tempo a bolchevique pragmática que viaja à Paris incumbida de vender as joias outrora pertencentes à Rússia czarista, e a borralheira tornada cinderela depois que a cidade a enfeitiça. 
A reconstrução da imagem de Garbo se dá desde o primeiro plano em que ela aparece. Ninotchka aporta numa estação de trem de Paris: Garbo está sem maquiagem. Aparece despida do mistério que, em filmes anteriores, lhe emprestavam o figurino, a maquiagem e a fumaça das locomotivas. Surpresos pelo fato de o enviado especial ser uma mulher, os três russos que a esperavam na estação recebem dela a resposta: “Don’t make an issue of my womanhood.” Está aí um exemplo de como funciona esta máquina de ditos certeiros que é o filme. 
Lubitsch e companhia criaram para Garbo uma personagem bastante coesa. Ela é uma tipificação anedótica da Rússia vermelha, dirão os críticos. Certamente, mas, o que é a comédia se não a restrição dos indivíduos aos tipos sociais? O que vale é que o filme diverte imenso, e Greta está tão absolutamente hilária que quem o vir se lastimará por ela ter abandonado a carreira tão cedo, dedicando-se tão pouco a este gênero. A pragmática Ninotchka, exemplar de uma Rússia que pouco tempo antes dera adeus a convenções como o casamento, repudiando o lastro burguês dele e de seus congêneres, como o amor romântico, toma a relação homem-mulher como uma atração de cunho biológico. Surpreendente é que diálogos como o abaixo tenham passado incólumes pela censura da época (Mark Vieira argumenta como isso se deu no imperdível Greta Garbo: a cinematic legacy, minha bíblia da atriz): 

Ninotchka: Love is a romantic designation for a most ordinary biological... or shall we say “chemical” process. A lot of nonsense is talked and written about it. 
Leon: I see. What do you use instead? 
Ninotchka: I acknowledge the existence of a natural impulse common to all. 
Leon: What can I possibly do to encourage such an impulse in you? 
Ninotchka: You don't have to do a thing. Chemically, we are already quite sympathetic.
Leon: You are the most incredible creature I’ve ever met. Ninotchka. 
Ninotchka: You repeat yourself. 
Leon: Yes, I’d like to say it 1,000 times. You must forgive me if I seem a little old-fashioned. After all, I’m just a poor bourgeois. 
Ninotchka: It's never too late to change. I used to belong to the petite bourgeoisie myself.

Aliás, as declarações de amor de Ninotchka a Leon são das minhas all time favourites... 

Leon: Ninotchka... do you like me just a little bit? 
Ninotchka: Your general appearance is not distasteful. 
Leon: Thank you. 
Ninotchka: The whites of your eyes are clear. Your cornea is excellent. 
Leon: Your cornea is terrific; 

ou 

Ninotchka: As basic material, you may not be bad. But you are the unfortunate product of a doomed culture. I feel very sorry for you; 

ou 

Ninotchka: And what do you do for mankind? 
Leon: For mankind? 
Ninotchka: Yes. 
Leon: Not so much for mankind. But for womankind, my record isn’t quite so bleak.
Ninotchka: You are something we do not have in Russia. 
Leon: Thank you. Glad you told me. 
Ninotchka: That’s why I believe in the future of my country. 

O roteiro genial é sublinhado por uma obra-prima de interpretação. Com sua voz profunda, seu sotaque estrangeiro e seu cabedal de vamps, Garbo torna único um papel que, malgrado a tipificação, é originalíssimo. Impossível vermos “Ninotchka” sem colocá-lo em contraponto com tudo o que ela fizera antes. O próprio roteiro não deixa: “Go to bed, little father. We want to be alone.”, diz Ninotchka ao velho mordomo de Leon, claramente dialogando com a expressão que até então a definia em Hollywood. 
“Ninotchka” faz mofa do comunismo, mas não poupa o capitalismo. A jovem irrita-se com a injustiça social presentificada pelo carregador de malas da estação. “Injustiça? Depende da gorjeta.”, o moço replica. “Repilo O Capital como repilo a poeira.”, diz o papaizinho mordomo de Leon. “Mas você não está interessado na igualdade? Você é um reacionário!”, Leon lhe diz. “Tudo bem que não sou pago faz dois meses. Mas ter de dividir com o senhor as economias de minha vida inteira já é demais.”, responde o velho... Por outro lado, essa definição que Leon dá para o rádio cairia como uma luva ainda hoje como explicação da sanha de consumo capitalista: “Rádio é uma caixinha que você compra no plano de instalação, e antes de ligá-lo descobre que há um novo modelo no mercado.”... 
Aliás, a personagem impagável de Garbo só funciona porque tem um leading man à altura. Melvyn Douglas já contracenara com ela no ótimo “As you desire me” (1932) e ainda seria seu galã no malfadado “The two faced woman” (1942), filme com que ela se despede das telas. Aqui ele é o parisiense arquetípico, que Maurice Chevalier tão bem apresentara anos antes: galanteador, charmoso. Este perfeito exemplar da luminosa sociedade capitalista acabará por encantar a bolchevique obstinada, claro. No entanto, embora eu prefira a Garbo borralheira da primeira parte do filme, não consigo negar seu charme quando ela se deixa impregnar do romantismo daquela sociedade “brilhante e condenada” – como tão bem a define Leon. 
Porém, mesmo os chavões românticos são envoltos pelo roteiro numa aura de eternidade: observem-se a reação de Ninotchka quando recebe as flores e o leite de cabra que Leon lhe mandara, sabendo já naquele momento que deveria deixá-lo; o fuzilamento simbólico da bolchevique em honra das “massas”; ou toda a sequência em que Ninotchka e os companheiros, já em Moscou, decantam nostálgicos sua temporada parisiense. 
“Ninotchka” é, efetivamente, um ótimo modo de se celebrar Greta Garbo. Porque, pensando bem, o filme nem rompe tanto assim com a imagem que consolidara no écran esta mulher que, mesmo terrena, soube como continuar divina.

12 comentários:

Marcelo Castro Moraes disse...

Para a época, seu tipo de interpretação estava muito a frente do seu tempo. Sem sombra de duvida uma das melhores atrizes de todos os tempos.

disse...

Excelente análise, Dani! Guardo muito carinho por Ninotchka, uma comédia brilhante, que contava também com Billy Wilder como roteirista.
Também fico pensando como garbo teria se saído em outras comédias se não tivesse se aposentado tão cedo.
Beijos!

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Concordo contigo, Marcelo! Isso é bastante perceptível logo nos silents, nos quais ela imprimirá às suas personagens uma naturalidade que seria louvada no cinema posterior.

Obrigada, Lê!
Wilder é brilhante, não? As produções dele como diretor e escritor são das minhas preferidas do cinema clássico.
Infelizmente Garbo desistiu da carreira tão cedo. A contar pelo que diz Vieira, ela era uma mulher complicada, insegura, temerosa de que a idade destruísse sua beleza física - elemento de que o cinema naquele tempo não prescindia. Concomitante ao seu abandono das telas surge sua conterrânea Ingrid Bergman, que estabelecerá uma relação bem diferente com a sétima arte...

Bjinhos
Dani

ANTONIO NAHUD disse...

Respeito Garbo, mas não é das atrizes que mais gosto. Acho que pouco aproveitou no seu reinado na M-G-M, fazendo quase sempre filmes enfadonhos. NINOTCHKA é exceção. É uma comédia muito divertida e todo o elenco está perfeito. Gosto também de Garbo em DUAS VEZES MEU. Pena que ela fez poucas comédias.

O Falcão Maltês

As Tertulías disse...

Engracado... nunca considerei Garbo "grande atriz"... Ícone, símbolo sim... grande personalidade, sem dúvida... mas nunca atriz (para mim).
Gosto de Ninotschka (que em russo, vim aprender há pouco tempo, é pronunciada "Ninatschka"). Boa escolha Dani, um clássico inesquecível, eterno... só aquee chapéuzinho é uma das coisas mais loucas qu já foram inventadas, né?

Et toi????? Dejá arrivée a Paris?????

Claro que entendi o porque DESTA postagem... viu, voce também relaciona o filme com os acontecimentos de sua vida... uma influencia "tertuliana"? :-)


Mande notícias, "vizinha"!!!!! Ou telefone!!!! Louco para saber de voce!!!! Beijos

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, meninos!

Adorei as duas opiniões semelhantes de vocês, que descobri só agora que consegui achar jeito de conectar a internet. Bem, sou das que acham Garbo uma das grandes atrizes de sua época. E, Ricardo, você tem razão - mesmo que inconsciente o post está relacionado à minha vida!... Cheguei por aqui anteontem. Logo que conseguir ficar mais na internet te escrevo mais longamente.
Sabe, Antonio, também curto muito "Duas vezes meu", embora eu o considere inferior a "Dama das Camélias", por exemplo.

Bjs
Dani

disse...

Dani, meu blog está no segundo turno do top blog! É só clicar no banner dourado na barra lateral do blog. Conto com seu voto para mais esta conquista!

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Que linda, Lê! Vou votar em ti agora mesmo. Congrats, isso já é a conquista!!

Bjinhos
Dani

DarkNinja disse...

Greta Garbo, é, sem sombra de dúvida, a maior atriz-estrela de seu tempo e uma das maiores de todos os tempos. Ela sabia envolver o público seja rindo ou chorando. Acho injusto o fato de que em 1938 ela tenha sido considerada "Veneno de Bilheteria", acho que foi uma total ingratidão por tudo que ela já tinha feito. Quanto à Ninotchka, é um dos meus clássicos favoritos, e acho uma comédia tão simpática quanto Um Lugar Chamado Notting Hill e Os Donos da Noite, apesar de os três filmes serem muito distintos. É uma pena que sua atuação ficou ofuscada pelo sucesso de Vivien Leigh em E o Vento Levou, mas, apesar de nunca ter assistido esse, acredito que foi mais por mérito da atriz anglo-indiana do que desmerecimento da diva sueca. É um filme que diverte, que muitas pessoas hoje em dia achariam leve, mas em 1939 foi um tapa na cara do conservadorismo da época. Greta Garbo nunca atuou mal em filme nenhum que eu tenha assistido até hoje. Ela fez bem em não ir receber aquele Oscar honorário em 1955, acredito que ela deve ter pensado como Jerry Lewis pensou em 2009, que fez tantos filmes e só ganhou um Oscar humanitário. Nos dois casos, mereciam muito mais que um simples 'consolo'.

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Como você, Darkninja, adoro Ninotchka! Bem humorada, inteligente e ainda muito eficiente como crítica. Também sou das que têm Greta Garbo em alta conta. Ótima atriz, mastigada pelo star system. Eu não sabia/me lembrava de ela ter recusado o prêmio pelo conjunto da obra. Pelo que me lembre, ouvi que ela não foi buscá-lo e que quem o recebeu por ela demorou anos para entregá-lo. De todo modo, acho que são dois prêmio diferentes, e por mais que goste da sua bolchevique, não dá pra negar que aquele ano foi de Vivien Leigh. Ela está absolutamente genial num dos filmes mais "cinema" de todos os tempos. Precisa ver "E o vento levou...", amigo!

Bjs e obrigada pelo comentário tão detalhado.
Dani

Alice Von Amerling disse...

Ótima analise, eu adoro Garbo, mas ela detestava comédia, principalmente romântica. E o que eu outros consideram enfadonhos, ela não consideraria. Eu acredito que ela saiu tão cedo de Hollywood não só pela guerra, mas porque ofereciam papéis ruins, ela tentava melhorar os roteiros, e não deixavam! Ela não era obrigada a colocar o nome em algo mal feito, não acha? Ela até tentou voltar para o cinema, mas a imprensa italiana pensou que ela não era mais Garbo por causa da idade. Ao menos, ela fez os filmes que queria. Neste sentido, ao menos, alguém foi feliz. Parece que você realmente aprecia os filmes dela. Garbo faria qualquer pela Arte, não tenha dúvida. Por sinal, dê uma olhada na url do Facebook que deixei.

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Olá, Alice!

Muito obrigada por esse comentário tão cuidadoso à minha resenha (desculpe-me por não tê-lo anexado antes; estou viajando, demorei uma semana para abrir o blog). Também agradeço porque ele fez me lembrar dessa postagem que escrevi já há tanto tempo. Realmente gosto muito de Garbo, que povoa o blog (a penúltima postagem, aliás, é sobre ela.)
Você também gosta um bocado, pelo jeito! Há, realmente, vários registros de como a atriz repudiava os papéis repetidos que Hollywood lhe dava, e como tentava interferir neles. Por outro lado, ela parecia uma mulher insegura (malgrado a força que demonstrava nas telas). Negou-se, segundo registros, a trabalhar de novo com Lubitsh, por sugestão de uma grande amiga sua. Teria feito grandes coisas com ele e, quem sabe, não abandonaria as telas tão cedo.

Você poderia reenviar o link? Não consegui encontrá-lo.

Abraços e até logo!
Danielle