Diz-se que, não importa sobre o que escolhemos escrever, acabamos sempre falando sobre nós mesmos... Prova disso é este último post do ano, saído do caldeirão onde nas últimas horas revolveram-se artigos de uma Folha da semana passada, zelosamente guardada por minha mãe enquanto eu viajava; uma resenha antiga sobre “Charada”, datada do início do blog; o último conto de fadas de Julia Roberts, exibido ontem em TV aberta entre um amontoado de inserções comerciais...: Bárbara Heliodora fez publicar recentemente uma história do teatro cuja única novidade é a informação de que Machado de Assis escreveu uma paródia de “La Traviata”, diz o jornal paulistano. Que Machado desgostava da “Dama das Camélias” eu já sabia. O desdobramento inusitado da tal ojeriza muito me fascina, vindo do escritor que a história literária embalsamou dentro duma aura de santidade. A ópera de Verdi e “Charada” foram apanhadas com a mesma graça por Gary Marshall em “Uma linda mulher”, protagonizada pela ainda hoje belíssima e carismática Julia Roberts, obra que vi faz muito pouco tempo, por conta d’outras “Traviatas”...
Bem, so much for the autobiography. Vamos ao filme.
“Uma linda mulher” é fruto da parceria entre o diretor Garry Marshall, o roteirista J. F. Lawton, a até então novata Julia Roberts e o galã Richard Gere, cuja carreira remontava ao início dos anos 70 e contava já com uma obra de sucesso como “O Gigolô Americano” (1980). Aliás, a aproximação das temáticas de ambos os filmes é apenas acidental. A obra de Marshall dá ao assunto árido o talhe dos contos de fadas. Sua protagonista é uma Gata Borralheira moderna, prostituta do baixo meretrício de Hollywood Boulevard transformada em Cinderela pelas mãos de um ricaço de Wall Street. O Happy Ending é tão irreal quanto adorável. Não falamos de realidade, mas de cinema, como o filme deixa claro, ao apropriar-se de um conjunto de produções da dita “Era de Ouro” da cinematografia, especialmente de “Charada” (Stanley Donen, 1963) - obra que, por sua vez, dialoga com o cinema que lhe é anterior (por exemplo, “Interlúdio”, de Hitchcock, 1946 – reflexão mais aprofundada sobre tal produção o leitor obterá neste link).
A referência artística fundamental do filme é, no entanto, “La Traviata”, cujas sequências principais são encenadas diante de uma protagonista em prantos, espectadora de seu provável – no entanto, não consumado – infortúnio. A Violetta da obra de Verdi ao final sucumbe à doença, à solidão, ao preconceito. A Vivian/Julia Roberts é salva pelo seu errático cavaleiro andante: que galopa uma limusine conduzida por um motorista, usa o guarda-chuva à guisa de espada e galga com dificuldade, pois tem medo de altura, a escadaria de serviço que o leva ao topo do prédio onde jaz sua dama... “Pretty Woman” desce o conto de fadas das alturas do mito até o chão-a-chão da realidade – ainda que edulcorada.
Suas personagens, ao abdicarem da intrepidez arquetípica das matrizes clássicas, ganham em humanidade. Penso que o viço deste blockbuster – mesmo passados mais de 20 anos de seu lançamento – se deve ao equilíbrio certeiro que ele estabelece entre a fantasia atemporal e o pragmatismo contemporâneo. Para além de debates rasteiros sobre o suposto machismo presente no “resgate” da prostituta da “sarjeta” por meio do casamento, temos ali um par de personagens que igualmente precisam de salvação, e seu duro percurso rumo ao comprometimento afetivo como fuga do capitalismo selvagem. Desnecessário me ater em como isso se dá – quem desconhece “Uma linda mulher”?
Calha ainda de o filme ser acompanhado por uma das trilhas sonoras mais brilhantes de todos os tempos. Bastam os primeiros acordes de “Pretty Woman”, na voz poderosa de Roy Orbison, para que venha à nossa cabeça a sequência chave do filme: Vivian experimentando os figurinos com que entrará para o jet set. Marshall constrói aí uma perfeita versão moderna da transformação da Gata Borralheira em Cinderela. A “Fada Madrinha” não é só o galante Edward Lewis/Richard Gere mas sobretudo o seu cartão de crédito - o verdadeiro protagonista dos afagos do gerente da loja de luxo. Clímax do filme, a cena mostra que, no palco de aparências da sociedade, cada qual só vale pelo que ostenta. Só o amor atinge a essência dos seres.
Qualquer pieguice da conclusão é diluída por um roteiro repleto de tiradas luminosas, pela química dos protagonistas (ambos igualmente ótimos), além da música inesquecível. Nossa “Traviata” moderna palmilha as ruas de Hollywood embalada por uma trilha que se revelaria tão popular quanto a de Verdi, como tantas outras palmilharam antes dela, de Alla Nazimova a Greta Garbo e Vivien Leigh, em tantas versões de “damas da noite” em busca da felicidade. Felizmente já estávamos em 1990, e então ela pôde encontrá-la.