quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Cannes 2013 no Brasil: “Jovem e bela” e “Azul é a cor mais quente”

Dois exemplares da cinematografia francesa lançada em Cannes este ano aportaram a pouco nos cinemas de arte brasileiros: “Jeune et jolie” (François Ozon) e “La vie d'Adèle” (Abdellatif Kechiche). Ganham aqui uma nota conjunta porque ambos debruçam-se com análoga sensibilidade no universo feminino à época do desabrochar da sexualidade. 
Ozon segue eminentemente voyerístico, como o fora de modo admirável em “Dentro de Casa”, sua obra anterior. Desta vez, a câmera acompanha as errâncias da adolescente Isabelle (Marine Vacth) entre a Riviera e Paris, do preâmbulo de sua primeira experiência sexual até sua transformação na jovem de vida dupla, aluna de Liceu e prostituta nas horas vagas. “Bela da tarde” (La belle du jour, 1967) surge como modelo ao filme, tanto pela leitura despida de moralismos que faz do assunto quanto pelo cuidado com que deslinda a personalidade da personagem feminina. 
“Jovem e bela” difere-se, no entanto, da obra de Buñuel, porque não ensaia o mergulho na psique de Isabelle. De modo análogo a como fizera no ótimo “Dentro de Casa”, Ozon prefere observar a jovem a partir do que ela deixa transparecer à flor da pele. Metáfora curiosa desta visada voyerística é composta logo ao princípio do filme, quando Isabelle desdobra-se em observadora de seu primeiro ato sexual, juntando-se aos espectadores da película. 
O desgosto ocasionado pela experiência estampa-se em seu rosto. À partida das férias e da cidade ensolarada rumo à Paris outonal segue-se um lapso temporal, e então reencontraremos a jovem já envolvida na vida dupla de estudos e de prostituição. A ruptura funciona narrativamente: “Jovem e bela” não procura apresentar causas e consequências de forma organizada e dialética, no intuito de apontar quais foram os fatores determinantes para a guinada na vida de sua protagonista. Retem-se em fragmentos de atitudes e gestos, reproduzindo no público a exasperação vivida pela família da jovem: Por que ela decide se prostituir? Não pode ser pelo dinheiro, diz a mãe, uma vez que a garota sempre tivera tudo o que queria. Para se sentir a figura ativa na relação, então? Pela aventura? Por tudo e por nada disso, talvez. 
Ozon, sempre elegante e sardônico, toca a amoralidade na tessitura desta obra que estabelece com nossa época um diálogo muito mais vivo do que uma porção de produções recentes, as quais se debruçam chorosamente sobre as famílias cindidas, a pobreza e outras mazelas responsáveis por enveredar o sexo feminino na prostituição. 
Obviamente não é o caso de negarmos problemas tais. É o caso, sim, de trazer à baila um assunto ainda tabu: por extensão de sentido, prostituição continua a significar “aviltamento, desonra, rebaixamento”, diz o Houaiss. Ao mergulhar na psique da personagem de Catherine Deneuve, Buñuel explicita ao público o vulcão que a jovem senhora da sociedade escondia sob a pátina de “respeitabilidade” ostentada. Para aplacá-lo, somam-se ao marido os homens desconhecidos que a visitarão às tardes, no prostítulo reles. Entre o casamento morno e os transes sadomasoquistas, a “bela da tarde” encontra a felicidade. A solução parece estar no entremeio da santidade e da depravação, para Buñuel como para Ozon; daí a vida dupla alimentada com afinco. 

Polêmico é também “Azul é a cor mais quente”, título disparatado para “La vie d'Adèle”, um dos filmes mais notáveis dos últimos tempos. A obra vencedora da Palma de Ouro (também venceram as atrizes protagonistas do longa, fato inédito na história da Palma) levantou celeuma desde que foi exibida em première na Croisette. O motivo: as cenas de sexo explícito protagonizadas por Adèle Exarchopoulos - jovem de admirável domínio do métier, apesar de estreante -, e por Emma (Léa Seydoux). 
A intensidade do desempenho das atrizes, sobretudo da que dá título à obra, pode ser em parte explicada por suas declarações acerca do trabalho do diretor. Após o propalado desconforto do público frente ao realismo das cenas de sexo, raramente igualado no cinema, as atrizes esmiuçaram à imprensa o quão violadas se sentiram pela assertividade da câmera de Kechiche, a persegui-las todo o tempo, captando suas imagens mesmo fora do set de gravação. O mal estar deste quiproquó de primeira hora fez com que qualquer qualidade cinematografia da obra fosse obnubilada. Felizmente, porém, o fato não a impediu de ser justamente agraciada com o prêmio maior em Cannes, ou de a jovem Adèle ser alçada ao posto de atriz de mérito invulgar. 
“La vie d'Adèle” compra a polêmica logo de saída, ao identificar o nome da protagonista ao da atriz, e assim, acenar para um realismo documental – como se as imagens correspondessem fielmente à vida, sem mediação. A escolha estende-se para uma mise-en-scène que paradoxalmente recusa a representação, investindo num jogo pautado pela sutileza. Como no filme de Ozon, a câmera recusa os manejos grandiloquentes para se demorar nos olhares, gestos e sentimentos das personagens. Faz isso com uma liberdade, segurança e delicadeza estonteantes, colocando em questionamento os limites atinentes não só à ficção e à realidade, mas aqueles que se referem aos gêneros cinematográficos (é documentário? é ficção? é drama? é filme erótico?). 
Que é ficção, não há dúvida. Não li, até agora, uma resenha do filme que não tenha aludido às cenas de sexo, preparando o público para o que o aguardava. Tolice, já que a censura claramente realiza a restrição e, uma vez que tenha 18 anos, espera-se que o espectador esteja suficientemente crescido para não se chocar com algo tão prosaico. Cumpre assinalar aqui a atmosfera de intimidade criada nestas cenas, devido não apenas a uma decupagem requintada, que transforma corpos em grandiosas paisagens (materializando a ideia do amor como uma força da natureza); como à química entre as atrizes, raramente alcançada neste nível no cinema. 
Tais cenas são uma das chaves para que se compreenda o amadurecimento de Adèle, deslindado sempre no duplo viés pessoal e profissional. A câmera segue paulatinamente o percurso da jovem do Liceu ao ambiente de trabalho, das tímidas relações amorosas até a plenitude afetiva e sexual (e o sofrimento dela inerente). Ambas as dimensões seguem pari passu, a profissional servindo de metáfora da pessoal, à qual é dada a primazia: os tempos de estudante de Adèle, e depois, seu emprego de professora no jardim de infância e nas classes de alfabetização, correspondem à descoberta do amor, à sua vivência puramente intuitiva, à leitura e interpretação do que viveu – portanto, ao seu amadurecimento. 
Curioso é que vida pessoal e escola se complementam, neste filme como em “Jovem e bela”. Embora os ensinamentos da “escola da vida” acabem por preponderar, a educação formal ocupa papel relevante nesta fase do desenvolvimento das jovens. As aulas de literatura, sobretudo. Nas duas películas, as protagonistas leem, com a sala, textos canônicos franceses: Rimbaud em “Jovem e bela”, “La vie de Marianne” em “La vie d'Adèle”. E em ambas, as leituras costuram-se às vidas das personagens. Isabelle tem a sede do poeta adolescente para quem “nada é muito sério quando se tem 17 anos”. A saga de Adèle em busca de si não é construída sem luta e amargor, como na obra de Marivaux. A arte nasce da arte, mostram estas duas obras. E daí forja-se a vida.

Em tempo: bastante provavelmente teremos Adèle Exarchopoulos, Cate Blanchett e Sandra Bullock concorrendo a uma estatueta do Oscar no ano que vem. Torço pela última por uma questão puramente afetiva, pois quaisquer das três merecem-no muito.

6 comentários:

Marcelo Castro Moraes disse...

Postei agora pouco sobre o que eu achei da HQ que deu origem a Azul é a cor mais quente. Vá lá.

Maira disse...

OI, Danielle
Hoje eu estava com muita vontade de ir ao cinema, e vi que estavam passando os 2 filmes acima, além de alguns outros Confesso que não tive curiosidade de assistir nenhum e voltei pra casa. Porém, achei mto interessante a sua percepção acerca dos filmes! Gostaria de assistir Jeune et Jolie bjoss

Edison Eduarddo disse...

Danielle, assisti o "Azul" essa semana e tb a um outro filme q é o oposto (com meninos) que é o "Além da fronteira".

Os dois filmes são muito parecidos sendo que o dos meninos há uma questão política pois se passa em Israel, um dos garotos é palestino.

O Azul é sem dúvida um dos melhores filmes do ano, as meninas arrebentam! E são lindas! As duas!

Não rola uma listinha do top 10 de 2013? Bjão!

Edison Eduarddo

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Obrigada, Maira! Fico feliz em saber que te empolguei a ver os filmes. Depois diga sua opinião sobre eles.

Edison, prometo que faço a listinha! Não vi esse filme sobre o qual você fala. Quero vê-lo e também "Um estranho no lago", que também retrata personagens homossexuais. Gosto de "Azul" porque a orientação sexual não é assunto preponderante. Importam as relações humanas, o processo de amadurecimento. É uma exceção dentre os filmes que enfocam na dificuldade de aceitação da família, a grande maioria no que toca ao tema.

Bjão pra vcs também!

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Marcelo, não sabia dessa HQ! Vou dar uma olhada.

Até mais!

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Lá vai, Edison!

1- Vocês ainda não viram nada (“Vous n’avez encore rien vu”, Alan Resnais, França)
2- Gravidade (Gravity, Alfonso Cuarón, EUA)
3- Blancanieves (Pablo Berger, Espanha)
4- Azul é a cor mais quente (La vie d’Adèle, França)
5- O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, Brasil)
6- Dentro de casa (“Dans La Maison”, François Ozon, França)
7- O estranho caso de Angélica (Manoel de Oliveira, Portugal)
8- O amante da rainha ("En kongelig affære”, Nikolaj Arcel, Dinamarca)
9- Django livre (Django Unchained, Quentin Tarantino, EUA)
10- Frances Ha (Noah Baumbach, EUA)