terça-feira, 20 de dezembro de 2016

“Magal e os formigas” (2016)

As férias costumam trazer consigo safras de filmes pipoca de qualidade variável. Exemplo dos bons é este “Magal e os formigas”, dirigido por Newton Cannito e Michael Ruman, uma despretensiosa comédia dramática com elenco afinado e sopro nostálgico. 
Conta-se a história de João, sujeito casmurro morador de um arrabalde paulistano. Aposentado, luta para complementar a renda comercializando ferro-velho. No entanto, o dinheiro que lhe entra pela porta sai pela janela, já que ele é viciado em loteria – nem as suas mirabolantes fórmulas matemáticas fazem com que ele consiga capitalizar algo do que “investe” no jogo. 
Sua vida começa a mudar quando surge nela um insólito santo protetor: Sidney Magal. Ou melhor, um duplo de Sidney Magal. O latin lover de outrora, amado com devoção pela filha Sandra, mas repudiado pelo venerável senhor porque representava um – para ele – execrável far niente, passa a se materializar diante de si e lhe ensinar que a vida vai além da labuta incessante da formiga visando ao acúmulo material. 
A trama inverte a fábula de La Fontaine, que estabelece uma dicotomia estrita entre a cigarra folgazã, que passa o verão a cantar e deixa de lado o acúmulo de alimentos que a nutririam no inverno, e a formiga obreira, que vive exclusivamente para o trabalho e bate a porta à cara da oponente quando ela surge faminta diante de si. 
“Magal e as formigas” defende que o trabalho deve se aliar à fruição da vida – coisa que o discurso dominante está assustadoramente execrando ultimamente, ao defender o trabalho como salvação (e, portanto, fomentar as jornadas cada vez mais longas e mal remuneradas), e considerar a cultura desperdício de dinheiro. 
Se nossos sonhos são a realização de nossos desejos mais recônditos, João recebe Magal porque desde sempre tinha uma cigarra a cantar dentro de si, apenas silenciada para que ele se acomodasse ao discurso corrente. 
O filme consegue um rendimento muito bom, ao ler pela chave cômica a memória afetiva do Brasil, que no seio da repressão dos anos 70-80 fez Sidney Magal, Elvis tupiniquim, ascender como mito – a dimensão erótica do cantor exacerbava um desejo da liberdade perdida e ansiada. Sandra é um exemplar temporão das tietes que dependuravam, nas paredes dos quartos, fotografias de corpo inteiro do cantor (minha mãe que o diga...). 
Nos anos 2000, Magal foi ressuscitado pela mídia numa dimensão caricatural que limava a sua inclinação libertária. O filme vai além disso, sublinhando a dimensão brega do artista sem deixar de lado a sua importância simbólica. Consegue isso abaixando o tom do elenco, coisa desusada na comédia padrão contemporânea, e construindo o humor a partir dos contrapontos. 
Exemplo claro disso é a personagem de João (Norival Rizzo), espelho invertido de Magal, em seu esforço desajeitado para se tornar um sósia dele, com o objetivo de ajudar o filho a pagar uma dívida. Sua esposa Mary (Imara Reis) é um exemplar verossímil das senhorinhas pudicas do interior, assim como é verossímil a sua ascensão à esposa de ídolo latino substituto que se torna o seu esposo; e a filha Sandra (Mel Lisboa), que vive por uma década o desgosto de ter sido abandonada no altar – aliás, é de seus enfeites temáticos de casamento que brota o efusivo Magal, a personagem-tema da festa malograda. 
A ascensão do velhinho casmurro a ídolo ocorrerá no inferninho do bairro, para deleite da mulher, dos amigos e do público, numa sequência que revela modelarmente a química do elenco – principal e secundário (do qual faz parte, por exemplo, Zécarlos Machado, Riba Carlovich e Ester Laccava).
O “sucesso” conquistado é sobretudo de João sobre si mesmo, do otimismo sobre o ceticismo. Um esforço que nos devemos, na dobra desse ano difícil, daí o meu convite ao público (especialmente aos “biliosos”, como diria Machado de Assis”) que vejam o filme.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

“Elle” (2016)

Paul Verhoeven rodou um dos melhores – e mais polêmicos – thrillers dos últimos tempos: “Elle”. A figura a quem o título alude é Michèle Leblanc (Isabelle Huppert), executiva bem-sucedida, arrogante, inquebrantável, maneater. Antes, no entanto, de o espectador a ver desfilar qualquer desses traços de sua personalidade assertiva, ele é defrontado com uma cena de estupro de que ela é a vítima – cena mais lancinante na medida em que acontece longe das vistas do público, tolhido diante dos acontecimentos em off que ele apenas escuta, impossibilitado de qualquer controle visual sobre a cena. 
A trama opta, desde esta cena inicial, a desenhar a protagonista a partir da ambiguidade. A violência sofrida não a faz desviar-se um milímetro de sua vida de mulher controladora: findo o ato, Michèle recolhe as louças quebradas pelo invasor, banha-se, pede o jantar, recebe o filho que acabara de constituir família, discute com ele minúcias do contrato de aluguel que ela endossará, acompanha-o na visitação do imóvel a ser alugado. No outro dia, ei-la ao telefone, agendando a troca das fechaduras da casa, e no trabalho, a encabeçar com punho firme a equipe responsável pela criação de um game cuja realidade virtual dialoga demais com aquela que ela acabara de vivenciar. 
“Elle” desde o princípio é de tirar o fôlego, por desviar-se do esquema padrão do filme de suspense, ao se construir pelo acúmulo (ou choque) de acontecimentos em detrimento da opção pela narrativa clássica, baseada no esmiuçamento de causas e efeitos em direção a um desfecho que os esgote. 
Há no filme um frenesi que recupera aquele fornecido por realidades virtuais como aquela que Michèle e a sua equipe construíam, nas quais o jogador sofre (e deleita-se por sofrer) por substituição a violência de que a sua personagem é avatar, sem que sejam questionados os porquês disso – quem sabe se por quê a violência (e o gozo que ela encerra no observador) seja o ponto de chegada. 
O filme é provocador porque bota em questionamento uma característica incontornável ao cinema, que é o voyeurismo. Por meio da estratégia da myse en abyme, Verhoeven coloca sua protagonista a assistir a personagem de seu game ser violada, do mesmo modo como nos coloca a observar Michèle ser violada. 
A dimensão seguinte desse olhar, que está fora de campo no filme, mas é inferida, é a violência latente na sociedade. Refiro-me aqui especificamente ao estupro, pelo seu caráter ainda de tabu, pela atribuição – não raras vezes – à vítima da culpa do ato. Mas não só a ele. Outro índice incontornável de violência presente no filme, estarrecedor pela sua dimensão macro e seu caráter incompreensível: a carnificina cometida, décadas antes, pelo pai da protagonista – com a suposta colaboração dela. 
A dimensão voyeurista ocupa primeiro plano em “Elle”, com um viés, a meu ver, profundamente crítico. O cinema propôs historicamente – metadiscursivamente, inclusive – um “olhar para o buraco da fechadura”, para a fruição furtiva da vida privada de alguém. Atento à pulsão escópica - a libido atrelada ao ato de ver -, deixou intencionalmente de lado a dimensão patológica dessa observação. Os happy endings das tramas, a punição dos vilões e a exaltação das vítimas, a resolução dos conflitos, o caráter edificante das histórias purificam o que há de mórbido nessa fruição da intimidade alheia. 
“Elle” inverte os ponteiros. Michèle é de saída esboçada como a devoradora de homens a quem nem mesmo a mais vil das violências abala. O modo calculista com que trata seus pais, seu filho e seus conhecidos – não titubeando antes de trair a melhor amiga com o esposo dela – a coloca entre os vilões. 
O vizinho que recém se mudara para o bairro – bonito e religioso – parece uma vítima à sua altura. O jogo de sedução que ela enceta na mesa de jantar, após a oração que antecede a ceia natalina, tendo ao pé de si não só a sua família toda como a mulher dele, seria suficiente para que nós a atirássemos no fosso das destruidoras de lares. No entanto, é o repertório romântico que promove a trilha sonora para o encontro de ambos, endossando-o, quando Patrick (Laurent Lafitte) – é este o nome do vizinho – vai ajudá-la a cerrar as janelas da casa dela devido à tempestade que se anunciava, e ambos quase terminam na cama. No entanto, é ele o estuprador – o público descobrirá dias depois, tão surpreso quanto Michèle, durante uma nova violação. 
Neste olhar crítico à história da cinematografia, proposto por Paul Verhoeven, sobram-nos perguntas. Questiona-se ali, com justeza, o poder da câmera de revelar a realidade. Sua câmera dá a ver, mas não fornece coordenadas sólidas para a compreensão do que é visto. O filme se encerra com mais interrogações que resoluções. Não se sabe por que o pai – outro religioso convicto – cometera trinta e nove anos atrás o crime insensato, ou por que envolvera nele a filha, a quem tornara responsável por eliminar os despojos da violência. Tampouco por que, no flashback subjetivo, no rosto da Michèle menina parece passar um lampejo de satisfação. 
Sobretudo – e isso é especialmente polêmico – não se compreende a natureza da relação que ela, dali por diante, estabelece com o vizinho agressor, que mistura asco e prazer em doses impossíveis de se discernir, já que Huppert competentemente amolda a sua personagem pelo signo da dubiedade. 
Isto, somando-se ao crime horrendo praticado pelo pai – cujo rosto de vovozinho de sessão da tarde a câmera um par de vezes apanha – e, por fim, a reação da esposa do violador, quando seus crimes são tornados públicos, mergulha a obra em zonas de penumbra que são, ao fim e ao cabo, aquelas da própria sociedade. Ao exacerbar e desconstruir convenções, o filme coloca o público a questionar-se sobre a conivência que ele historicamente estabeleceu com a imagem cinematográfica, cobrando-lhe responsabilidade pelo seu outorgado voyeurismo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

“A luz entre oceanos” (2016): sopro trágico ao drama familiar

Outro subtítulo possível para este artigo seria: aula magna de melodrama. “A luz entre oceanos” (The light between oceans), obra dirigida e roteirizada por Derek Cianfrance a partir de romance de M. L. Stedman, realiza à excelência o gênero nascido na França pós-revolucionária. 
O núcleo central da história é ocupado pelo lúgubre Tom Sherbourne (Michael Fassbender) e a luminosa Isabel Graysmark (Alicia Vikander). Tom é um lobo solitário que servira a Primeira Grande Guerra, donde voltara com marcas fundas, nunca totalmente explicadas ao espectador, mas intuídas, considerando-se a violência inaudita dos campos de conflito. 
Suponhamos que este blog é um romance folhetinesco, no qual os capítulos têm que por bem se ligarem uns aos outros para alimentar-se a conivência com o público, e pensemos em Tom como um irmão do fazedor de bonecas que Hobart Bosworth desempenha em Behind the door: homens cujas almas foram laceradas no front
Entretanto, uma diferença fundamental subsiste entre eles. Tom é herói melodramático estrito, a aceitar – qual Jesus Cristo – passivamente os desígnios do destino. Quando Isabel cruza o seu caminho, toma-a em casamento. A princípio a moça o leva pela mão. Depois ele lhe dirá que o entorpecimento adquirido ao longo de anos de violência o havia feito supor-se infenso à felicidade. O casal ruma a uma ilha remota e desabitada no Oeste australiano, onde ele se empregara como faroleiro antes das núpcias. 
O sentido simbólico da função não se deixa escamotear. Sobre os faroleiros, diz o Evangelho de Pedro: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz.” O homem sombrio usava a luz que possuía para iluminar os caminhos alheios; suprema abnegação. A missão, que lhe dá uma breve paga de felicidade, é, no entanto, minada pelos abortos consecutivos da esposa. Até que um dia aporta na praia o barquinho onde está a pequena Lucy, acompanhada pelo pai morto. 
O gênero melodramático não trabalha com surpresas: dali por diante sabemos que o casal tomará a menina como filha, malgrado a família que ela quiçá houvesse deixado atrás de si. Sabemos igualmente que a decisão intempestiva se desdobrará num futuro encontro entre a mãe biológica e a filha, e na crise de consciência do herói, obrigado, pelas convenções do gênero (espelhadas nas convenções milenares da Igreja), a caminhar sobre seus passos pregressos, devolvendo a filha à mãe verdadeira, mesmo que isso incorresse na destruição de sua família, e num novo – e desta vez incontornável – dilaceramento seu. 
“A luz entre oceanos” depura o gênero, ao multiplicar a catarse do público. Por meio de uma dessas coincidências comuns ao melodrama, Tom encontra – ao levar sua filha à pia batismal – uma típica heroína trágica (Rachel Weisz), a lamentar, enlutada e desgrenhada, sobre a lápide da filha cujo corpo ela nunca pôde enterrar. Descobrirá ali a mãe da menina que ele tomara por filha, e carregando consigo, dali por diante, o fardo da descoberta, novamente mergulha na escuridão para iluminar as duas malfadadas mães. 
“A luz entre Oceanos” prova que a distância entre a tragédia e o melodrama repousa sobretudo no tema. A tragédia volta-se aos assuntos do Estado, o melodrama, ao núcleo familiar. Tragédia popular, tem, como o gênero no qual se espelhou, como ponto de chegada a catarse: a expiação das paixões do público por meio da contemplação dos sofrimentos do herói. A diferença com relação ao gênero erudito do qual o melodrama bebe é que, enquanto na tragédia o público contempla o sofrimento de alguém maior que ele, no melodrama ele contempla o sofrimento de um igual, o que potencializa a sua identificação com a personagem. 

Tom é o bode expiatório bíblico, papel que no Velho Testamento cabia ao animal escolhido ao sacrifício pelo povo hebraico e israelense, o qual o Novo Testamento tomou como a prefiguração do auto-sacrifício de Jesus Cristo. Impotente diante do sofrimento da esposa que acabara de perder o segundo filho, aceita as súplicas dela e acolhe como sua a criança alheia. Defrontado com a verdade, se titubeia entre a felicidade de seu lar e a obrigação moral, é a esta que finalmente se inclina. 
Esses contornos gerais da ética melodramática servem de preâmbulo para uma constatação e um questionamento. 

A constatação – óbvia – é sobre como bons atores conseguem dar credibilidade a uma história. Michael Fassbender, Alicia Vikander e Rachel Weisz estão deslumbrantes como o trio sacudido pelas mãos do destino. Fassbender é dos poucos atores que resistem ao primeiríssimo plano. Seu rosto é paisagem que as brisas ligeiras ondeiam e a tempestade encrespa. Olhá-lo amoldar uma personagem – qualquer personagem – é tão deleitante e misterioso como ver a ação dos fenômenos naturais sobre as coisas. 
Vikander, ótima desde ao menos O Amante da Rainha (2012), adiciona ao seu frescor costumeiro um sofrimento pungente. E Weisz é Hécuba a chorar a perda da filha, é Medeia a clamar por vingança – ao perder a filha ela perdera também o marido, alemão que escolhera a Austrália por pátria, e que devido à Guerra fora perseguido pelos habitantes da cidade, num furor que, conforme vimos em Behind the door, derivara das Nações aos indivíduos. Ambas são mães, plenamente desculpáveis pelo público que com elas chora. História tão rasgada, desempenhada com tanta sinceridade, coloca o melodrama no status que ele sempre almejou: o de grande arte, apesar das suas raízes populares. 
Por fim, o questionamento: qual a função de um filme como esse nos dias de hoje? Para além da bela factura fílmica, sobretudo a fotografia grandiosa, a utilizar os elementos naturais como reflexos dos sentimentos humanos, qual a função de um filme que segue a risca a ótica melodramática; a ética cristã? Tal função pode, talvez, ser atrelada à relevância indelével que o gênero atribui ao núcleo familiar enquanto espaço primeiro de conformação do indivíduo, visando-se à criação de uma sociedade pautada pela integridade – malgrado os sacrifícios individuais que a integridade obriga.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Hobart Bosworth, “Behind the door” e o herói partido ao meio

O cinema clássico teve um poderoso aliado no Melodrama, gênero que perfazia o ideal de sanidade de corpo e espírito clamado pelas ligas de moralidade do redor do mundo. Sua ética, embora secular, mimetiza a cristã: como no cristianismo o percurso pedregoso da vida prepara o corpo para a bem-aventurança eterna, na estética melodramática a aceitação humilde dos revezes do destino conduz à ascensão, não apenas celestial, mas moral – e, em não raros casos, social. “Senhor, dê maturidade à minha alma, antes de ela desencarnar”, ouve-se da boca do padre da Carruagem Fantasma (de 1921). Victor Seastrom, o ator e protagonista da obra-prima sueca, dá de ombros ao dito bíblico, recebendo como paga por uma vida de esbórnia a árdua missão de conduzir as almas dos mortos ao longo de todo um ano. O cinema standard era uma religião sisuda: punia severamente aqueles que se distanciavam de seus ditames. 
Por isso, a rodagem de um filme como o norte-americano Behind the door (de Irvin Willat), no recuado ano de 1919, é algo que se anotar. A obra conta a história de Oscar Krug, americano de meia-idade, de rosto severo e ascendência alemã que, por amor da jovem e primaveril Alice Morse, deixa o ofício na marinha e passa a tocar uma loja de brinquedos, nas redondezas de onde ela vive. Vemo-lo debruçado, a sonhar, ao balcão de seu hospital de brinquedos; a curar, com suavidade, a bonequinha que acabara de ser atropelada... Apenas esses contornos anunciam matizes desusados à produção cinematográfica da época. Os Estados Unidos recém-saídos da Primeira Grande Guerra devolviam, neste filme, o status de humanidade ao povo alemão – lembremo-nos que, neste mesmo 1919, o seriado The Perils of Pauline é remontado pela Pathé europeia e o seu vilão rebatizado com um nome germânico. Mais ainda, misturavam-no simbolicamente com a sua carne, construindo um protagonista que, embora oriundo de família alemã, recebe explicitamente o rótulo de “norte-americano”. 
A trama comandada por Irvin Willat entrelaça duas temporalidades: o ano de 1917 e “cinco anos mais tarde”. Ao mesmo tempo em que remete ao momento em que os EUA aderiram ao conflito, acena para um futuro que supera o momento histórico do filme. O passado pinta em tons pastéis o idílio amoroso do casal, malgrado a rejeição do pai da jovem, que quer o homem maduro fora da cidade. Willat conduz uma firme crítica à xenofobia – que avultara durante a Guerra, mas ainda se fazia sentir. Para provar-se um verdadeiro “americano” e, enfim, poder servir a pátria que seus ascendentes escolheram para si, Krug precisa meter-se em duelo com os cidadãos locais. O conflito em microcosmo não apenas prenuncia a envergadura física e moral do personagem – que, sozinho, vence um grupo numeroso – como os contornos mais negros de sua alma, e do filme como um todo. Os oponentes reconhecem-no logo um igual e o abraçam. Mas, o sangue no qual ele está banhado sujará o lencinho alvo da bela Alice (Jane Novak, que tem o tipo físico de Pearl White). Efetivamente, tampouco o destino da moça se revelará suave. 
Ambos se casam e Krug recebe como atribuição o comando de um navio de guerra da frota norte-americana. Expulsa de casa, a jovem irá ter com o marido. Impedida, por força das regras, de estar no navio, esconde-se, até que um torpedo inimigo lança-a ao mar junto do marido e de toda a equipagem. Behind the door atrás da porta – abre de forma lúgubre, com um amaríssimo Krug chegando do mar rumo à sua loja de brinquedos, encontrando-a em ruínas e, depois de pôr os olhos no lenço ensanguentado da amada Alice – espólio daquele dia de litígio –, rememorando os fatos que haviam sucedido ao longo daqueles anos. Quando vê Kate ao mar, o público sabe, portanto, que algo de muito ruim lhe acontecerá. Todavia, nada – nenhuma narrativa anterior, ao menos que eu tenha notícia – prepara o espectador para o teor dos acontecimentos que se desdobrarão. A jovem acaba tornando-se, com o marido, a única sobrevivente do naufrágio, apenas para terminar, sozinha, nas mãos da tripulação de um submarino alemão. Seu destino apenas será conhecido nos desdobramentos finais da trama, quando o marido, que jurou vingança, está prostrado diante do algoz da jovem – o qual desta vez ele resgatara do mar. 
É fundamental, agora, que eu fale de Hobart Bosworth – um ilustre desconhecido para mim até a Giornate del Cinema Muto deste ano, quando o vi, e vi esta obra magistral, pela primeira vez. Ao vê-lo, pensei numa versão muda do James Stewart de Vertigo, embora a semelhança talvez esteja menos nos dois homens que nas duas tramas, ambas a rescenderem a mais dolorosa desolação, malgrado – ou, talvez, justamente por isso – mergulhem de olhos fechados no mais desabrido amor-romântico. É um misto de ódio e desespero o rosto de Hobart Bosworth, ao perceber que o submarino que encontrara o casal pertencia ao inimigo. Sua contenção ao se encontrar novamente com o algoz, e falsear para descobrir a verdade, caminha na contracorrente da tipificação do cinema clássico. 
Temos aí uma personagem que revela, na superfície, uma alma cheia de densidade. Ao descobrir, com o público, o que ocorreu à jovem – ela fora violentada por toda a tripulação e depois, morta, atirada ao mar –, torna-se um moderno Orestes, cometendo a mais lúgubre das vinganças distante dos olhos do público; “atrás da porta” que dá título ao filme. Behind the door despede-se do Melodrama para enveredar pelo Drama Romântico – tormentoso, avesso à ética cristã – ou pela Tragédia. A vingança parece ser, ali, clamor dos deuses, como na Electra de Eurípedes. Tanto que o perecimento final do protagonista – sobre o balcão da loja de brinquedos, onde ele fora tão feliz – o leva ao encontro da esposa, rumo a um céu que não é nem o do Melodrama, nem o do cinema clássico; daí talvez o porquê de o filme ter ficado no limbo por quase cem anos, até ressurgir glorioso em Pordenone.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

“45 anos” (2015): a perpetuação do passado e a finitude da vida

Andrew Haigh rodou o filme mais melancólico, desesperançado – realista, portanto – a respeito daquilo que outrora chamávamos de “o inverno da vida”, e hoje recebe o rótulo eufemístico de “a melhor idade”. 
“45 anos” flagra a semana que antecede o advento das bodas do casal Kate e Geoff Mercer  os maravilhosos Charlotte Rampling e Tom Courtenay. Aos preparativos da festa, realizados pela mulher com uma praticidade britânica, soma-se um evento inusitado, cuja relevância acabará por se revelar aos poucos: a polícia alemã encontra, intacto, o corpo da antiga namorada de Geoff, enterrada havia décadas sob o gelo dos Alpes. 
À decodificação da carta, escrita num alemão já incompreensível ao velho que fora um desbravador na mocidade, segue-se o paulatino desvendamento de um passado há muito enterrado, porém, pujante como se sempre houvesse estado presente. A manutenção da integridade do corpo de Katia metaforiza a perpetuidade de sua presença na vida do homem, recordação que ganha corporeidade quando a jovem surge rediviva, devido ao súbito descongelamento da geleira que a abrigava. 
O filme é artificioso; obriga uma fruição mais cerebral que afetiva. Traça quase que palpavelmente, entre o casal, duas retas que apontam para direções diametralmente opostas: à medida que a festa das bodas – renovação simbólica dos laços matrimoniais – vai se aproximando, mais Geoff se afasta da história que construíra com Kate, mais se achega à sua história pregressa que o destino irônico novamente trazia à baila. 
O instinto guia-o até o sótão, à arqueologia do passado guardado entre os diários da vida aventureira do jovem casal e as fotografias de Katia, dispostas numa centena de slides. Katia pulsara entre aquelas linhas e fotografias, as quais adquiririam valor de incontornável presença uma vez que seu corpo ressurgira agora, passadas quase cinco décadas, intacto às vicissitudes do tempo. 
Haigh conduz a dupla de atores com um distanciamento prescrutador que faz toda a diferença à trama. É partidário dos silêncios, dos travellings às paisagens invernais – que se transformam em personagens, ao mesmo tempo em que revelam as psicologias do casal protagonista, dos fora de campo – as tomadas do vazio, as personagens mal-enquadradas –, que deixam o espectador à deriva. 
Não o fizesse, correria o risco de transformar sua obra num meloso drama familiar, repleto de discursos e, enfim, de lágrimas catárticas que têm a pretensão de solucionar o insolucionável. “45 anos” é um respiro em meio ao amontoado de tramas tolas a tematizarem o envelhecimento, que aparam as suas arestas, enquadrando os casais da terceira idade no rol dos pombinhos das comédias românticas, como sem nem corpo, nem espírito os separasse. 
Andrew Haigh dá ao tema o enquadramento trágico que ele merece. A finitude é o seu tema. A decrepitude do corpo e da mente surge como forma e fundo, no filme: o andar vacilante de Geoff, a falência sexual, os vazios, a introspecção, a meia-luz, e, enfim, a volta mental ao passado, e ao mundo de caminhos que ele abria. E o catalizador deste retorno ao passado é, sub-repticiamente, o cinema: o corpo congelado de Katia, infenso ao galgar dos anos, é metáfora da mumificação do passado, tornada possível pelo daguerreótipo, pela fotografia e, enfim, pelo cinema – onde o passado torna-se, segundo Bazin, “múmia em mutação”. O retorno empírico do corpo da mulher amada – e do filho nunca nascido de ambos, que ela esperava – supera, claro, o caráter indicial da imagem cinematográfica de que fala o teórico francês, mas acena para ele. 
A história da recepção das imagens oriundas de dispositivos tecnológicos está coalhada de registros ora deleitantes, ora assustadores, desse passado em conserva. Numa crônica ainda dos tempos do kinetoscópio, 1894, Olavo Bilac chamaria Edison sardonicamente de “Jack – o estripador – da fantasia”: “E imagina que horror: o gesto amoroso repetido ao infinito, durante uma, durante cem horas, cem semanas, cem anos!”. 
Duas décadas e meia mais tarde, Mário de Alencar seria mais doce, não sem deixar de registrar tudo o que de terror há nesta exegese. O conto é Coração de Velho, uma obra-prima que, escrita em 1920, recupera o pensamento cientificista do XIX: morta a esposa doente e casmurra, o velho Salles – a quem o passamento da consorte fora um alívio – tromba com um daguerreótipo da mulher quando ainda era uma jovem noiva. Tal e qual Geoff, vê o passado irromper em trambolhão: 
Em torno dele tinha-se desvanecido a atualidade. Não via os filhos, parecia não ter a consciência da sua própria condição presente. O espírito remontava um passado de quarenta anos, e recapitulava os meses, e os dias, e impressões, e imagens apagadas, desfeitas no decurso do tempo. As que tinham prevalecido, nos anos recentes, apagavam-se agora; moléstias, vexames, incompatibilidade de gostos, irritações, a mesma figura da enferma, nada lhe ficava mais na retina e na lembrança, preocupadas totalmente por aquele daguerreótipo em que os seus olhos pareciam espelhar-se e configurar a vida. Achou assim e recompôs a sua verdadeira realidade, da qual os últimos anos, como um parêntesis importuno, eram de súbito riscados. 
O desfecho de Salles prenuncia o de Geoff – deixado em aberto pelo filme, porém anunciado, naquela soberba sequência final do salão de festas que, embora repleto e festivo, nem por isso deixa de patentear vaziez e solidão: termina imerso em passado, escrevendo poesias à jovem do daguerreótipo – vivíssima em espírito, embora desaparecida em corpo. Uma vida puramente imaginativa. 
Como Geoff, cujos últimos 45 anos foram erigidos obedecendo a uma linha de continuidade com a história que lhe fora usurpada, a esposa presente ocupando o lugar de substituta da falecida. No plano final da Kate de Charlotte Rampling, que ao som de Smoke gets in your eyes percebe que fora obnubilada durante toda a vida, emerge uma aridez que, apesar de pertencer à personagem, igualmente aponta para uma questão universal: o envelhecimento – e todas as escolhas referentes ao nosso passado com as quais temos de arcar – e, enfim, a finitude, ponto de chegada incontornável da vida, malgrado tentemos voltar-lhe as costas.
*
Os interessados no conto de Mário de Alencar podem lê-lo por aqui.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

“Aquarius” (2016): a persistência da memória

O novo longa de Kleber Mendonça Filho jamais poderá ser dissociado do nosso atual momento histórico. Estreou em Cannes em maio, quando nossa presidenta era recém-afastada para dar-se início ao processo de impeachment, ecoando ali porque, para além de sua qualidade empírica, ele protagonizou uma campanha que deu visibilidade externa ao atribulado contexto político nacional. E pré-estreou em São Paulo durante os estertores do tal processo de afastamento, entre o Espaço Cinearte do Conjunto Nacional e o Cinesesc da Rua Augusta, a dois passos da Avenida Paulista – palco onde se desenrolava, concomitantemente, uma severa repressão policial. Sem trazer a política para primeiro plano, Aquarius nasce clássico por simbolicamente enunciá-la, a partir de uma das protagonistas femininas mais bem roteirizadas e desempenhadas na cinematografia dos últimos tempos – pela nossa bravíssima Sonia Braga. 
Braga é Clara, mulher madura que passa os dias entre vinis – era jornalista especializada em música –, no apartamento aos pés da praia de Boa Viagem, no Recife, cenário que se lhe abre da janela da sala como cartão postal. A relação de consubstancialidade que ela estabelece com o seu meio é tecida logo de saída na trama, numa brilhante reconstrução de época que, ao evocar uma festa de família ocorrida na aurora dos anos 80, tece os liames entre o passado e o presente, prenunciando, na resiliência da Clara de outrora, a envergadura moral da Clara de hoje. Os antepassados mortos estão todos ali, dentro daquelas paredes que os acolheu entre a fortuna e os reveses. O passado evocado explicitamente como flashback mistura-se àquele que irrompe inesperado: quer emergindo dos recônditos da memória até se impor incontornável no presente, calando-o; quer saltando das amareladas fotos de família para dentro dos pesadelos. 
O presente é o espaço da tensão. São tempos de especulação imobiliária – de apagamento do passado em prol de uma “novidade” que é, como sempre, anunciada com espalhafato, como se o novo apenas trouxesse benesses. Clara vê-se coagida a vender o apartamento pela construtora que comprara todas as demais unidades do prédio, visando destruí-las para subir ali um edifício moderno. Trata-se tão somente de um apartamento, que valeria ouro se capitalizado – diz a filha à Clara. Porém, muito pelo contrário; toda a primeira parte da trama estabelece a memória afetiva circunscrita dentro daquelas paredes, dando verossimilhança ao esforço da protagonista de se manter senhora do local. 
Eu não quero estragar a graça do público, entregando detalhes de um enredo que, flertando com o thriller, depende em razoável medida do segredo para construir a surpresa junto ao espectador. Cumpre-me, no entanto, assinalar a maestria com que a câmera de Kleber Mendonça Filho constrói a narrativa, agarrando o público pelo pulso e (des)encaminhando-o por seus meandros, ao seu bel-prazer. É raro vermos, na cinematografia atual, tal domínio no enfrentamento de um gênero codificado como o suspense - que lhe propõe novos caminhos, aderindo-se a ele, sem, no entanto, deixar de exacerbar um estranhamento; característica cara ao diretor, como se vê no igualmente ótimo O Som ao Redor (2013). Ao ser assim torcido, um dos mais caros gêneros do cinema clássico ganha em potência crítica. 
Na obra de Kleber Mendonça Filho, o suspense emerge do fundo de desconfiança que os homens têm naqueles que lhe são estranhos (sobretudo se esses “outros” pertencem a uma classe desfavorecida economicamente), resquício de nossa herança colonial, que construiu uma pátina de cordialidade a encobrir históricos e intransponíveis abismos sociais – os quais hoje, findo o circo político-midiático, aparecem, como nunca, sublinhados. A conclusão daí oriunda extrapola as dicotomias, assinalando, de modo complexo, o que de suave e de vil há nos homens, sejam eles pobres ou ricos. 
A narrativa cola o seu ponto de vista ao de Clara, protagonista incontornável da trama. Sonia Braga deve agradecer aos deuses pela sorte que a bafejou com uma personagem tão consistente, repleta, ademais, de tanta dignidade e luz – personagem que ela encarna com uma matreira sem-cerimônia, como se com ela brincasse. Acariciada por uma câmera amorosa, que a conduz melodicamente pela trama, Braga emana poesia. Aliás, para além do ritmo da montagem, Aquarius faz um uso tremendamente sagaz da música, que comparece na trama como forma e conteúdo. 
A música que é ofício da protagonista alimenta igualmente não só sua alma, como a alma do cinema, arte à qual ela se associa desde muito cedo, ajudando-lhe a construir seus sentidos. Das canções do filme, basta que citemos o leitmotiv da personagem, a belíssima Hoje, de Taiguara, retrato de uma trama na qual o passado deixa marcas indeléveis – amargas ou doces – no presente: “Hoje/ Trago em meu corpo as marcas do meu tempo/ Meu desespero, a vida num momento/ A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo...”. Estreando hoje, data simbólica, a relevância que Aquarius atribui à memória acaba por coser a história de Clara à História do país...

domingo, 31 de julho de 2016

Mãe só há uma (2016)

Há filmes que vão nos ganhando aos poucos. “Mãe só há uma” (Anna Muylaert, 2016) é um exemplo. A história tem traços do caso policial que veio à baila anos atrás, da mulher que sequestrou um bebê e criou-o como filho até ser descoberta pelas autoridades, década e meia mais tarde. Do caso a que a imprensa deu foros de novelão das oito, lembro-me de um detalhe: do menino de semblante plácido que pedira, por favor, para voltar a viver com a sua sequestradora, a única mãe que ele jamais conhecera. 
O sequestro serve a Anna Muylaert como pano de fundo, ao qual sobrepõem-se as subjetividades das personagens e as relações interpessoais – apreendidas por meio de uma câmera que multiplica os pontos de vista. O motor da trama é a personagem de Pierre (Naomi Nero), colhido pela tragédia naquele momento sensível da vida, que é o de formação da personalidade. 
Vemo-lo nas festas, a experimentar relações amorosas com ambos os sexos. Na escola. No ensaio da banda de rock. Diante do espelho do banheiro, testando, a portas fechadas, a sua sexualidade. Ou seguido furtivamente por um veículo enquanto ele desembesta, de bicicleta, pelas ruas do bairro. O contorno surpreendentemente detetivesco que a história recebe logo se justifica: obrigado judicialmente ao teste de DNA, Pierre descobrirá o crime que concerne à mãe. 
Se a câmera de Muylaert estranhará ao espectador de “Que horas ela volta?” (2015), sugiro que ele firme as vistas. As tomadas da casa a partir do exterior, tendo a voz off das personagens em surdina, ou a urgência da câmera na mão, a perseguir a mãe que se vê descoberta e precisa dar as últimas recomendações à cuidadora das crianças, antes de ser levada presa, servem para a pontuação de uma tensão que chega aí ao seu limite. 
A câmera é, aí, um sucedâneo do olhar de Pierre à vida. Cria-se, então, uma conivência incontornável entre o menino e o público. Os mimos que os pais verdadeiros, ricos, lhe dão, não compensam a unidade familiar destroçada – apreendida com poesia pela diretora, nas tomadas da casa agora vazia da família que ele aprendera a reconhecer como sua. Algumas sequências explicitam eximiamente a ambivalência, a exemplo daquela em que Pierre – agora Felipe, malgrado o seu desejo – recebe, numa rigidez respeitosa, os afagos da numerosa e efusiva família que o festeja. 
No entanto, o olhar de Muylaert é polissêmico como a vida. Ao ponto de vista do menino se somará mais tarde aquele da família biológica, sobretudo a dos pais e do irmão. Colocam-se em primeiro plano os anseios destes, especialmente dos pais (ótimos Matheus Nachtergaele e Dani Nefussy). Do mais superficial – de inserir o menino a fórceps na casta privilegiada à qual pertencem, obrigando-o a assumir o papel de macho-alfa –, até o anseio profundo de se verem finalmente aceitos. 
Não se economiza nas tintas do drama emocional, que chega ao paroxismo na sequência catártica do jogo do boliche, mas se deslinda com mais suavidade no nascente companheirismo entre os irmãos – construído à custa do esforço do mais novo de pôr de lado preconceitos inerentes ao seu grupo de amigos; metáfora da construção paulatina da personalidade. 
A câmera coloca-se a serviço das subjetividades várias, por vezes se demorando nos planos. Por meio deste expediente, ações aparentemente prosaicas vão se somando num crescendo até culminarem num emocionante desfecho agridoce. 
“Mãe só há uma” é um filme imperdível. Longe de ser popular como “Que horas ela volta?” consegue, pelas escolhas estilísticas da diretora, atingir uma carga de humanidade ainda superior – talvez porque se encerra abrindo-se às tensões da vida, para as quais não há respostas prontas ou conclusões fechadas.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

“Julieta” (2016): tratado sobre incomunicabilidade nas relações contemporâneas?

Almodóvar fez um filme que me aprouve pouco, e sobre o qual possivelmente eu não falaria, não fosse a minha companheira de cinema – Imara Reis – ter me provocado, por horas a fio, a desvelá-lo. Dedico a ela esta resenha, já que muitas das conclusões aqui explicitadas são obras suas. 
Julieta é uma estranha no ninho almodovariano. Almodóvar opta, aqui, por reler o gênero melodramático pela chave da metalinguagem. Produz uma obra cuja frieza passa a léguas de distância de Fale com ela (2002) ou Volver (2011), repletas de uma calidez que, se se deve nalguma medida à cor local – às touradas, aos sóis de Sevilha, aos ventos propícios de La Mancha; a convidarem ao mistério, mas também ao cio, à procriação –, deve-se, sobretudo, a algo que vou chamar, na falta de palavra melhor, de um “calor espiritual”. 
Fale com ela (2002)
Almodóvar depõe a pena de analista passional das relações humanas, tomando uma desusada distância de seus sujeitos. 
Há em Julieta cortes secos pouco afeitos ao realismo pedido pelo melodrama; primeiríssimos planos a inquirirem apressados as personagens, cujas feições demonstram uma mal à l’aise que, no final das contas, é a característica dominante da obra toda. Não é o caso aqui de se perguntar se este pouco à vontade é o efeito intentado pelo filme ou se é fruto da inabilidade do diretor no tratamento do tema. Levemos Almodóvar a sério. 
Dir-se-á que Almodóvar toma como objeto de questionamento, em Julieta, o justo melodrama do qual ele se serviu largamente para erigir o seu cinema. Sua protagonista caminha todo o tempo por um terreno movediço incompatível ao gênero de cores fortes, bem delimitadas. 
Principiamos a conhecer Julieta no apartamento da faceta modernosa de Madri, preparando-se para a viagem que a afastaria incontornavelmente da Espanha. A ponta de indecisão que mal se insinua no encontro com seu companheiro emergirá, todavia, de forma aguda, quando ela revê a melhor amiga da filha, e descobre que as jovens recentemente se tinham encontrado. 
A obra está repleta dessas coincidências, que são característica fundamental do Melodrama. No entanto, Almodóvar apaga qualquer dimensão metafísica de “Destino” historicamente atrelada a este gênero. Fundamentais para a carpintaria da trama, por deflagrarem a ação, os encontros ganham, todavia, uma dimensão de fortuidade que pode ser lida, numa análise interessada desta obra, como metáforas da gratuidade da vivência no mundo contemporâneo, mais especificamente, do esfacelamento das relações humanas, enfim, da incomunicabilidade – traço dominante nas atuais relações interpessoais. 
Volver (2011)
Julieta teve uma filha – descobrirá o espectador enquanto ela redige à agora mulher feita em que a menina se transformara, uma carta cuja dimensão de testemunho vai se revelando aos poucos. Reconta sua história desde os instantes que antecedem à concepção da filha – até então não mencionada –, como se sua vida só então principiasse a ter sentido. A mãe não tinha notícias da filha havia uma década. A carta que jamais poderia ser enviada testemunha o trauma da ruptura inesperada de ambas. 
O filme constrói-se desses fragmentos de memórias marcados pela ausência de fidelidade a uma dimensão “realista”, pela mistura de afetos. Estranhezas do enredo – a demasiada juventude impregnada no rosto da menina que lidara com tanta maturidade com a perda do pai; ou, em contrapartida, seu rápido envelhecimento, não muitos anos mais tarde – podem se justificar pela subjetividade daquela a partir da qual as memórias visuais se constroem: a perturbada Julieta, tão distante da filha em corpo quanto desde sempre estivera em espírito. 
A verossimilhança tantas vezes (aparentemente) fraturada – o olhar de alternado desdém e amor da velha empregada, por exemplo – explica-se pelo caráter errático das memórias. Campanella fez isso com graça em O Segredo dos seus Olhos (2009), ao entremear a dolorosa despedida dos apaixonados na estação de trem de Buenos Aires, intencionalmente melodramática, e a escritura do arremedo de trama novelesca, por parte de um protagonista ao mesmo tempo passional e autocrítico. 
Mas estruturalmente ambos os filmes diferem-se bastante. Almodóvar não objetiva coser todos os fios; não visa à trama policialesca, cuja intriga culmina na resolução do conflito. Em Julieta, o melodrama comparece numa dimensão crítica mesmo no desenlace, que posterga o encontro entre mãe e filha – tableau que historicamente fecha o gênero – para depois do fade out; para além das vistas do espectador, portanto. 
O amante minguante, filme-dentro-do-filme em Fale com ela
Tal parcimônia coloca toda a obra do diretor em perspectiva. A cinefilia de Almodóvar, que nunca se negou a percorrer as zonas de penumbra – prova disso é a perturbadora sequência silenciosa de Fale com ela em que o apaixonado, minúsculo, penetra a mulher gigante (metáfora do close e da imersão do espectador no espetáculo cinematográfico?) –, inclina-se aqui a Jean-Luc Godard e a Ingmar Bergman, cineastas que questionam o enquadramento mainstream, e colocam os filmes a serviço da discussão de relações interpessoais que muito os extravazam, por irresolúveis. 
Se Almodóvar não chega aqui às alturas de Bergman, aponta, no entanto, para uma direção original, ao diluir em melancolia o colorido espanhol – característica forte de sua obra. A nossa sensação de desconforto toca um tanto nas imperfeições do exercício, mas muito, também, na percepção de que a incomunicabilidade que ele faz emergir em sua obra também nos circunda e nos afoga.

sábado, 18 de junho de 2016

“O Botão de Nácar”: domínio, colonização, resistência

Diz-se que a verdadeira obra de arte é universal e mantém a sua atualidade, independente de haver sido escrita há um, dez ou 1000 anos. Tomemos “Antígona”. Sófocles escreveu-a 2500 anos atrás, mas ela poderia ter sido tracejada anteontem, a partir da observação da nossa sociedade por parte de algum analista arguto. 
Antígona, filha de Édipo, oscila entre o amor que nutre pelo irmão e o respeito que deve ao Estado: como irmã, tinha o dever de enterrar Polinice; missão que lhe fora obstada pelo rei, já que o jovem havia se unido ao exército contrário à Tebas, na guerra descabida que esta lhe travara. 
Dividida entre obrigações de pesos análogos, Antígona inclina-se àquilo que estava mais próximo de si: à casa paterna, aos laços fraternais. Sobretudo, à “mediania”, elemento tão caro aos gregos. Presta ao irmão as honras fúnebres, e é por isso, levada à morte por Creonte, monarca cujo poder demasiado acaba por conduzi-lo à tirania. 
“O Botão de Nácar” (El botón de nácar, 2015), o mais recente documentário de Patricio Guzmán, carrega com a obra de Sófocles uma proximidade espiritual. Quem sabe se porque é banhado pelo mesmo mar que circunda o país de onde saiu Édipo e a sua malfadada prole – mar onde o filme vê inscrita toda a história da humanidade, pregressa e futura. Quem sabe se porque esta que vos fala assistiu às duas obras em sequência, vendo-as, ambas, espelhadas no teatro da vida. Os gregos enxergam o mundo como um grande palco. Os homens são títeres dos deuses – hábeis ventríloquos que têm a humanidade presa por mal-escamoteados cordões, conduzindo-a a seu bel prazer. 
A fria letra da lei distancia-se não raro da consciência, do respeito à integridade humana. Por vezes, se é preciso tomar distância do Estado para exercer a humanidade. Antígona percebe isso de saída. Ela e Creonte são feitos de substâncias diferentes: “Você foi feito para o ódio. Eu fui feita para o amor”, ela lhe diz. Sabe que o descumprimento das ordens do tio lhe significará a perdição, mas toma este rumo porque é justamente o abandono dos liames terrenos que lhe dará sobrevida ao espírito. 
Conduzida de Tebas às reentrâncias do deserto, onde é enterrada viva, tendo o noivo ao pé de si, Antígona protagoniza um dos primeiros exemplos de integridade humana da tradição ocidental. Na concepção exacerbada por Patricio Guzmán no “Botão de nácar”, de um mar imemorial, microcosmo do espaço sideral, a guardar as vozes dos deuses e dos homens todos, a jovem é, quiçá, uma ascendente do povo chileno, martirizado por colonizadores e “salvadores” vários, ao longo de sua história. 
Guzmán oscila entre a realidade e a poesia para tecer a história do Chile, dos povos pré-colombianos até a ditadura de Augusto Pinochet. As relações que estabelece entre a inédita explosão de uma estrela, registrada pelos telescópios chilenos do deserto do Atacama – para onde não muito mais tarde seriam encaminhados os perseguidos da ditadura –, e a queda de Salvador Allende, refere-se menos ao tempo da história que ao tempo do mito. Allende é, porque não, Antígona, a pegar os colarinhos do inimigo não porque pensava poder vencê-lo, mas porque, ao fazê-lo, endossava uma humanidade latente, perpetuando-a. 
A história do Chile ganha, assim, contornos de tragédia clássica. Um mapa do país, esticado verticalmente, constrói o cenário da ação. Banhado de alto a baixo pelo Pacífico, estabeleceu com ele uma relação ambivalente. O Oceano abre demasiadamente o país aos povos invasores. Em contrapartida, seus inúmeros veios e reentrâncias serviram de rotas aos povos autóctones – povos aquáticos, cujos descendentes até hoje "caminham pela água”, malgrado o Estado ainda insista em lhes sustar os passos. 
A narrativa constrói-se aristotelicamente. Um botão de nácar serve de leitmotiv à ação. Produzido a partir de substância calcária extraída do mar, é ele que, no século XIX, convence o primeiro indígena a zarpar com os europeus para o além-mar, onde o jovem, qual herói medieval cantado pelos românticos, é transformado em nobre para depois ser novamente abandonado entre os seus. Guzmán lê o ato simbolicamente – a aculturação deste homem abriria o flanco do país aos inimigos, determinando a contaminação moral e física dos povos indígenas, e o seu extermínio em nome da “religião” e da “salvação” impingidas unilateralmente. E é outro botão de nácar, retirado do mar - único resto aparente de um simpatizante de Salvador Allende -, que dá o testemunho da sangrenta ditadura chilena. 
Ao longo do filme, o oceano dos chilenos terá os seus sentidos burilados. O constante resvalar de suas águas na costa imensa a impregna da história do país, dos povos milenares que pacificamente o habitaram até serem massacrados, aos mortos da ditadura, enterrados covardemente em seu seio. O oceano ainda encerra miasmas – as águas que banham o Chile imprimem em si as marcas do esquecimento forçado e da morte. 
A lembrança é uma forma de perenização, um funeral simbólico desses mortos todos, os quais os algozes desejaram legar ao esquecimento. Ao dar novamente voz aos grupos historicamente perseguidos, “O Botão de Nácar” exerce um belíssimo gesto de resistência, fundamental, agora, nesta nova guinada conservadora que se observa na América Latina.