As férias costumam trazer consigo safras de filmes pipoca de qualidade variável. Exemplo dos bons é este “Magal e os formigas”, dirigido por Newton Cannito e Michael Ruman, uma despretensiosa comédia dramática com elenco afinado e sopro nostálgico.
Conta-se a história de João, sujeito casmurro morador de um arrabalde paulistano. Aposentado, luta para complementar a renda comercializando ferro-velho. No entanto, o dinheiro que lhe entra pela porta sai pela janela, já que ele é viciado em loteria – nem as suas mirabolantes fórmulas matemáticas fazem com que ele consiga capitalizar algo do que “investe” no jogo.
Sua vida começa a mudar quando surge nela um insólito santo protetor: Sidney Magal. Ou melhor, um duplo de Sidney Magal. O latin lover de outrora, amado com devoção pela filha Sandra, mas repudiado pelo venerável senhor porque representava um – para ele – execrável far niente, passa a se materializar diante de si e lhe ensinar que a vida vai além da labuta incessante da formiga visando ao acúmulo material.
A trama inverte a fábula de La Fontaine, que estabelece uma dicotomia estrita entre a cigarra folgazã, que passa o verão a cantar e deixa de lado o acúmulo de alimentos que a nutririam no inverno, e a formiga obreira, que vive exclusivamente para o trabalho e bate a porta à cara da oponente quando ela surge faminta diante de si.
“Magal e as formigas” defende que o trabalho deve se aliar à fruição da vida – coisa que o discurso dominante está assustadoramente execrando ultimamente, ao defender o trabalho como salvação (e, portanto, fomentar as jornadas cada vez mais longas e mal remuneradas), e considerar a cultura desperdício de dinheiro.
Se nossos sonhos são a realização de nossos desejos mais recônditos, João recebe Magal porque desde sempre tinha uma cigarra a cantar dentro de si, apenas silenciada para que ele se acomodasse ao discurso corrente.
O filme consegue um rendimento muito bom, ao ler pela chave cômica a memória afetiva do Brasil, que no seio da repressão dos anos 70-80 fez Sidney Magal, Elvis tupiniquim, ascender como mito – a dimensão erótica do cantor exacerbava um desejo da liberdade perdida e ansiada. Sandra é um exemplar temporão das tietes que dependuravam, nas paredes dos quartos, fotografias de corpo inteiro do cantor (minha mãe que o diga...).
Nos anos 2000, Magal foi ressuscitado pela mídia numa dimensão caricatural que limava a sua inclinação libertária. O filme vai além disso, sublinhando a dimensão brega do artista sem deixar de lado a sua importância simbólica. Consegue isso abaixando o tom do elenco, coisa desusada na comédia padrão contemporânea, e construindo o humor a partir dos contrapontos.
Exemplo claro disso é a personagem de João (Norival Rizzo), espelho invertido de Magal, em seu esforço desajeitado para se tornar um sósia dele, com o objetivo de ajudar o filho a pagar uma dívida. Sua esposa Mary (Imara Reis) é um exemplar verossímil das senhorinhas pudicas do interior, assim como é verossímil a sua ascensão à esposa de ídolo latino substituto que se torna o seu esposo; e a filha Sandra (Mel Lisboa), que vive por uma década o desgosto de ter sido abandonada no altar – aliás, é de seus enfeites temáticos de casamento que brota o efusivo Magal, a personagem-tema da festa malograda.
A ascensão do velhinho casmurro a ídolo ocorrerá no inferninho do bairro, para deleite da mulher, dos amigos e do público, numa sequência que revela modelarmente a química do elenco – principal e secundário (do qual faz parte, por exemplo, Zécarlos Machado, Riba Carlovich e Ester Laccava).
O “sucesso” conquistado é sobretudo de João sobre si mesmo, do otimismo sobre o ceticismo. Um esforço que nos devemos, na dobra desse ano difícil, daí o meu convite ao público (especialmente aos “biliosos”, como diria Machado de Assis”) que vejam o filme.