Falei dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani – diretores deste Maravilhoso Boccaccio (Maraviglioso Boccaccio) – em fins de 2012, após ver o brilhante César deve morrer (Cesare deve morire, 2012), premiado documentário metalinguístico (ganhou o Leão de Ouro no Festival de Berlim) a respeito dos ensaios e encenação do drama de Shakespeare Julio César, na prisão de Rebbibia, em Roma.
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A obra de Boccaccio tem relevância fundamental para a literatura italiana. É narrativa fundacional, a exemplo dos Lusíadas, escrita em dialeto toscano (entre 1348 e 1353) quando a língua de cultura ainda era o latim. E promove uma revolução não só na forma como no conteúdo, advogando, nas portas do Renascimento, em favor de um mundo das sensações, de entrega aos prazeres terrenos, em contraposição ao amor espiritual valorado na Idade Média.
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A obra é luminosa, aprazendo muito, ainda, o leitor contemporâneo. E proporciona, àqueles que desejam adaptá-la, possibilidades várias de recorte – anos atrás, uma das turmas de teatro da UNICAMP adaptou ao palco, com fortes vieses carnavalescos (e grande rendimento cênico), apenas os contos eróticos do livro.
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O que de jeito nenhum é uma crítica ao filme.
Faz-se ali uma leitura linear da obra adaptada. Maravilhoso Boccaccio principia na cidade de Florença infestada pela peste. Há um distanciamento contemplativo na apreensão que os irmãos fazem da melancolia daqueles que morrem e daqueles que veem os seus morrerem. Cortes secos impedem que o público atinja o cerne de certos eventos tabus, que desde tanto tempo viraram espetáculo: o suicídio do homem doente, que despenca do alto do Campanile; ou do pai de duas crianças colhidas pela doença, que escolhe deixar-se enterrar com elas a abandoná-las na vala comum.
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Ao fim e ao cabo, Maravilhoso Boccaccio não se afasta tanto assim de César deve morrer: entremeia, ele também, vida e arte, ambas instâncias consubstanciais. A literatura de Boccaccio presentificava as histórias narradas, tomando os âmbitos da ficção e da ficção-dentro-da-ficção como fios de um mesmo tear.
A peste tão próxima, que visita a História como a história em microcosmo que o livro tece, aproxima uma e outra, dando a tudo foros de verdade. A fotografia dos Taviani trata as duas instâncias com o mesmo fulgor, recusando-se igualmente a separá-las, impondo-as ao espectador com uma mesma incontornável presença. Presença potencializada pela música rediviva de Rossini, Verdi e Puccini – distantes temporalmente centenas de anos do texto de Boccaccio, no entanto eternas como ele.
Há que se dizer um mundo sobre o papel afetivo desempenhado pela música desses três senhores, nesses nossos corações latinos tão eivados da pieguice importada d’além-mar. Além do valor histórico das óperas italianas, fundadoras de um imaginário de pátria – assim como a literatura de Boccaccio fundara uma língua – está o poder de comoção desta trilha que embalou a travessia de tantos dos nossos ascendentes pelos descaminhos da vida. As lágrimas apenas não chegarão aos olhos do espectador cujo coração for feito de pedra...