Maria Callas (1923-1977) revive em “Maria by Callas: la exposition” (organizada por Tom Volf), apresentada no Grand Salon da jovem La Seine Musicale – belo conjunto de edifícios voltados à música popular e erudita, inaugurado em abril deste ano. Situada em Boulogne-Billancourt, às portas da cidade e às margens do Senna (metrô Porte des Sèvres), a portentosa construção em formato de navio parece prestes a despregar-se da terra e sair em passeio pelo rio, como um dos Bateaux Mouches tão populares na cidade. Inserida nesses domínios, a “Maria” de Callas – a persona privada em detrimento da pública – convida-nos a uma viagem afetiva.
Partituras, fotografias e autógrafo de Callas |
Os 800 m2 do Grand Salon estão repletos de suas fotos, de suas entrevistas e performances gravadas em áudio e vídeo, de seus vestidos, sapatos, óculos, cartas, amuletos; memorabília que galvaniza o público fetichista o qual lota o salão como se pudesse depreender desses pedaços de recordações uma porção da diva, como se ela estivesse impregnada nos objetos que a tocaram ou que ela tocou.
Quem foi Maria Callas? A exposição é capciosa desde o título, deixando claro que, ali, a pessoa privada passará pelo crivo da pública: quem coloca Maria diante do público é Callas, tornada mítica ainda em vida – mitologia perpetuada graças à morte prematura, que a embalsamou jovem e linda, infensa ao esmaecimento do talento e da beleza física. Desaparecido o corpo, restam as imagens, as lembranças e a voz que dão à mulher a perenidade da estatuária grega.
Maria Callas cantou desde criança – é o que, por meio da artista, a expo nos conta –, trocando a infância pelos concursos de talentos infantis nos quais a matriculara a mãe, com a quem ela teve desde logo uma relação de amor e ódio. A jovem tocada pelo gênio parece ter se tornado a tábua de salvação da família empobrecida. Chegou à adolescência com poucos amigos e sólida formação no canto lírico, conquistada em parte considerável na Grécia de seus ascendentes (nasceu María Kekilía Sofía Kalogerópulu, em New York, retornando com os pais à Grécia dez anos mais tarde).
A Madonna presente do marido e os grossos óculos de acetato para correção da alta miopia (com os quais tanto se identificou a blogueira...) |
Malgrado os inícios precoces, a carreira demora a decolar. Uma Callas ponderada – e poliglota – explica em francês a necessidade de se escolher bem os papéis a representar, de se saber preparada antes de se aventurar num projeto, sob o risco de perder os favores da crítica. O sangue frio, curioso em alguém com tanta intensidade dramática, parece justificado: Callas narra o repúdio sofrido depois que fora reprovada num teste no Scala de Milão – o Coliseu dos teatros de ópera da Itália.
A artista deixava para derramar em cena a sua personalidade reputadamente inflamada, fazendo o pragmatismo reger os contratos que firmava.
A carreira italiana começa aos 24 anos, em 1947, na Arena de Verona. Uma obra do bel canto, “La Gioconda”, de Ponchielli. Outra viria um ano mais tarde, em Florença: “Norma”, de Bellini. E em 1949, um tour de force, a alternância das “Valquírias”, de Wagner, e de “I Puritani”, de Bellini, que ela aprendera num par de dias para substituir a cantora originalmente contratada para o papel. Das mais inefáveis frases musicais feitas para coloratura à potência vocal e dramática requerida ao drama wagneriano; a dois anos da estreia, Maria Callas comprovava ter a rara extensão vocal da soprano absoluta.
Cena e figurino de "Medeia", de Pasolini |
É notório o esforço da artista de se assemelhar à Audrey Hepburn da “Bonequinha de Luxo” (1961), que a levou a desaparecer das vistas do público, para o qual retornaria pouco tempo – e trinta quilos mais magra – depois. No entanto, a sua personalidade dramática aproxima-a menos da radiância de Audrey e mais da densidade de uma Anna Magnani, atriz cujo corpo, solidamente pregado à terra, dava forma a todas as dores do mundo. A “Medeia” de Pasolini (de 1969) é uma boa prova disso. Callas é ali a antidiva lírica. Praticamente muda, transmite pelos olhos todo o torvelinho da rainha preterida, todo o horror trágico da mãe que se vê obrigada a sacrificar a prole – esforço notável, já que a magnificente “Medeia” de Cherubini era um de seus cavalos de batalha.
Callas era antes atriz que cantora. Uma vez tendo rareado a sua voz (o que se deu em fins dos anos 60), trocou as óperas pela docência. Suas reflexões sobre as gêneses de suas personagens formuladas nesse contexto são atravessadas pelos postulados de Stanislavski, modernos então mesmo no campo do teatro:
O mundo da personagem é um mundo que está em nossa alma, que nós devemos criar com a ajuda da música. (...) Sobre isso se trabalham os detalhes, os traços. Enfim, pergunto: se eu fosse esta mulher, como eu reagiria, que atitudes tomaria? Quem é ela? Uma rainha, uma mulher da alta-sociedade, uma mulher comum? Como ela se comporta, como se move, como enverga as roupas? E então, pouco a pouco a sua silhueta toma forma.
Maria Callas estendeu o star system cinematográfico para o campo operístico: desfraldando ao público, junto com seu talento, a sua vida pessoal conturbada, os amores malogrados, as traições, as perdas de várias ordens. Sua relevância, todavia, caminha para além do âmbito capitalista do estrelismo, da comercialização ad nauseam da imagem da celebridade enquanto objeto simbólico. Coube-lhe o papel enorme de injetar densidade psicológica nas personagens que representava, atualizando o tradicional gênero operístico, transformando-o numa arte do seu tempo.
Se a eletricidade que a sua presença fantasmática gera ainda hoje deve-se à eficiência com que ela construiu a sua imagem de estrela num mercado já amoldado ao consumo das celebridades, deve-se tanto mais à comunicação visceral que ela estabelece com o público. Uma só nota de sua Gioconda, renascida em retalho em certo concerto no Japão, nos anos de 1970, demonstra que a personalidade, a emoção e a dimensão pessoal da mulher são tão potentes quanto o aparelho fonador ou a técnica para a tessitura das vozes líricas. Como os travos do destino a haviam macerado, Callas nunca fora mais divina do que ali, quando se mostrava tão humana.
Ao rememorar a artista desaparecida aos 54 anos, a exposição escolhe o caminho que ela tão bem teceu, o do mito. Nada se diz sobre o ataque cardíaco que a levou, morte demasidamente comezinha para a diva que tantas vezes se aproximou das personagens trágicas que representava. O imenso cortejo que acompanha o féretro, o qual fecha a exposição, retoma a dimensão de performance que ela procurou dar à sua arte e vida. Callas desaparece numa morte operística porque só assim pode, como as suas heroínas, ressurgir para além dos séculos, em jornadas sentimentais como esta organizada pela Seine Musicale.