A relação de afeto que tenho com o cinema por vezes se superpõe ao meu lugar de analista. Por exemplo: demorei quatro anos para conseguir assistir à versão norte-americana de "El secreto de sus ojos" (2009), filme que tem para mim uma importância simbólica, já que me descortinou o cinema argentino; e que tanto amo ao ponto de tê-lo abordado aqui duas vezes, exceção absoluta no que toca ao blog.
Uma versão de um filme invariavelmente carrega o ônus do original. Se ela recupera uma obra-prima, torna-se de saída uma empreitada temerária, dado o risco de não conseguir ombreá-la. É o caso aqui. Guillermo Francella (o deliciosamente irônico Pablo Sandoval da obra original) já antecipara que a versão se tratava de obra anódina. Longe de ser ruim – trata-se de uma produção decente, com um elenco estelar, dez vezes mais cara que a original ($19.500 milhões contra os $2.000 milhões) –, a obra padece daquilo que em inglês se classifica como: “to miss the point”.
Exemplo mais cabal disso é a subutilização daquilo que é mote do thriller de Campanella: os olhos que se traem; num só tempo referência literal aos amantes malogrados, que lidam de diferentes modos com a desilusão amorosa, e metáfora do olho da câmera, que oferece ao espectador uma janela para o mundo – janela ambivalente, trucada, feita de retalhos, conforme a insistente escritura e reescritura da história, realizada por Benjamín no fio da obra, não deixam mentir; quando não, o olho fetichista da câmera, a transformar o visto em objeto de culto.
Os contornos do thriller são decalcados segundo a obra original (a versão dá os créditos do roteiro a Juan José Campanella, o roteirista/diretor do filme original, e ao autor da obra literária da qual este filme foi depreendido, Eduardo Sacheri): há um caso sórdido de estupro seguido de morte, que assombra os envolvidos por um carrada de anos. Eliminada a metáfora do olhar, com todas as suas ricas imbricações, a versão norte-americana oferece-se como um thriller comezinho. O corpo da obra de Campanella jaz, assim, sem alma – por isso é acertado o título em português, “Olhos da Justiça”, em detrimento da tradução literal do título da obra em espanhol, utilizada na versão norte-americana.
Todavia, mais produtivo que elencar os defeitos da versão seria, penso eu, entendê-la no contexto em que foi feita, a que questões ela responde e que artifícios utiliza para tal.
A obra é dirigida por Billy Ray, que é diretor bissexto, mas escritor de carreira mais extensa, responsável pelos roteiros de thrillers de cepas diversas: da obra baseada em fatos reais “Capitão Phillips” (Paul Greengrass, 2013), à distopia adolescente “Jogos Vorazes”, ao suspense psicológico “Plano de voo” (Robert Schwentke, 2005).
Ray constrói um roteiro funcional, apoiado intensamente no páthos – abre-se pouco espaço para os respiros cômicos que são a alma de “El secreto de sus ojos”, esta obra em que o riso e a dor sublimemente se misturam.
Uma modificação fundamental na trama, responsável por sua incontornável melancolia, é a introdução da vítima no núcleo central do protagonista. A Liliana Coloto de Campanella é uma personagem fantasmática, olhada pelo filtro de Benjamín, criado, por sua vez, a partir da narração idílica de Ricardo Morales, o marido desolado da vítima. A ficcionalização e o distanciamento transformam Liliana na substância etérea na qual Benjamín projetará Irene, o seu amor recalcado. Irene e Liliana se misturam, assim como se misturam, na montagem, os olhos do criminoso e do homem apaixonado – toda a dimensão fetichizante do olhar e do olho da câmera presentes nesta construção.
“Olhos de Justiça” despe-se das metáforas em prol da literalização mais sórdida. O homem estranho que perde a esposa, no thriller de Campanella, torna-se Jessica Cobb (Julia Roberts), a policial colega do protagonista Ray Kasten (Chiwetel Ejiofor), e a esposa recém-casada é transformada na virginal filha de Jessica, estuprada nas vésperas de partir para a universidade.
Situada numa “América” imediatamente posterior aos ataques terroristas de 2001, “Olhos de Justiça” suplanta a ditadura argentina pela ameaça árabe. Compõe, portanto, a seara de filmes rodados desde antes do episódio, calcados no terrorismo, a exemplo de “Nova Iorque Sitiada” (Edward Zwick, 1998). O "outro" é desde sempre olhado pelos States como inimigo. Malgrado o distanciamento temporal do “11 de Setembro”, a obra de Billy Ray não consegue lançar ao episódio uma visada perspectiva, seguindo a atribuir a culpa do crime estritamente aos árabes.
Embora beire o inverossímil, a trama procura se explicar em detalhes: o estuprador é um árabe informante da polícia, frequentador da mesquita que é célula de uma organização terrorista; acobertado por um policial da organização de Ray Kasten – o qual queima provas no intuito de eliminar suspeitas sobre o estuprador, em nome de uma causa maior: a libertação dos EUA da “ameaça árabe” (hélas...). Estamos aqui, como se vê, mais próximos de “Duro de Matar” e tramas policialescas dicotômicas do tipo do que de “El secreto de sus ojos”.
Sem ter conseguido se tornar um blockbuster, “Olhos de Justiça” reproduz o modus operandi de thrillers do tipo. Tem dificuldade, no entanto, de criar o par romântico que é parte da sustentação do gênero. A eliminação da metáfora do olhar denota um problema estrutural da trama, que é a completa falta de química entre Ray Kasten e Claire Sloane (Nicole Kidman). Há uma insistência verbal num amor que perpassa uma década, mas o público não enxerga qualquer faísca. Por isso, quem sabe, o filme não se fecha na promessa de um enlace entre ambos, como a obra original, mas sim numa despedida - Clair novamente retornando à casa e ao marido seguro, embora não o ame. Porém, lamentavelmente não faz diferença ao público; o casal não convence.
A obra é toda banhada por uma melancolia imensa, que não abre espaço para qualquer sopro de luz. Uma ótima Julia Roberts – de longe quem se sai melhor no drama – sofre uma incontornável culpa por ter imposto à filha a ida ao evento do escritório no qual a menina acaba por conhecer o rapaz que viria a persegui-la, a estuprá-la e a matá-la. Flashbacks nos mostram a jovem cheia de vida, a anunciar à mãe incrédula que ela “acabara de encontrar alguém”; a nutrir com a mãe uma relação umbilical que beira a patologia. Se a polícia é corrupta, a única chance de punição passa pela violência, imposta pelas próprias mãos desta mater dolorosa – patenteada, na trama, por uma surpreendente sequência final que se passa longe das vistas do público.
A que questões prementes dos Estados Unidos "Olhos da Justiça" responde? Ao seguir voltando olhos suspeitosos aos árabes – o eterno “outro” –, ao articular as questões a partir da dicotomia lar seguro/ rua perigosa, este thriller reinsere na pauta a cultura do medo, aderindo, à maneira de "Nascimento da Nação" (Griffith, 1915), aos cânones do melodrama clássico, âmbito do “Home is where the heart is”* (que, aliás, é tema de um ótimo livro sobre o melodrama no cinema norte-americano). A “casa” sendo, neste contexto, entendida como o lar de Jessica Cobb – quando não o seu ventre... –, o único espaço de proteção de sua filha; e, num sentido lato, tomada como metáfora dos Estados Unidos, em sua luta recorrente para se ver livre daquele que é diferente, classificado de saída como o “outro” invasor. Dois anos antes de Trump, “Olhos da Justiça” prenuncia-o.
*"Home is where the heart is”, studies in melodrama and the woman’s film. Edited by Christine Gledhill. London: BFI Publishing, 1987.