Dia 3, 7 de outubro, segunda
William Hart novamente em destaque, em médias metragens rodados em meados dos anos de 1910.
Em “In the Sage Brush Country” (1914), ele segue sendo o tipo ambíguo, ladrão atravessado por laivos de honradez ao proteger das investidas de um mexicano a moçoila responsável por fazer a guarda dos pagamentos dos trabalhadores da lonjura onde viviam – pagamentos que ele próprio tivera a intenção de roubar... Ladrão reformado por amor, Jim Brandon – este é o seu nome – recuperará a jovem sequestrada pelo bandido, deixando-a livre para cumprir a sua missão.
Em “In the Sage Brush Country” (1914), ele segue sendo o tipo ambíguo, ladrão atravessado por laivos de honradez ao proteger das investidas de um mexicano a moçoila responsável por fazer a guarda dos pagamentos dos trabalhadores da lonjura onde viviam – pagamentos que ele próprio tivera a intenção de roubar... Ladrão reformado por amor, Jim Brandon – este é o seu nome – recuperará a jovem sequestrada pelo bandido, deixando-a livre para cumprir a sua missão.
Há maus e maus nessas histórias, como vemos, os mexicanos atingindo os píncaros da ruindade (José María Serralde Ruiz, grande e querido pianista mexicano que acompanha a ambos os filmes da Giornate, lembrou-me que o cinema estadunidense chegou a ser proibido no México, devido ao modo detrator como os mexicanos eram tomados), e o nosso louro explorador demonstrando que é um rebelde apenas porque fora moldado pelo ambiente hostil.
O próximo filme potencializa o preconceito – e a nossa aflição.
Trata-se de “The Aryan” e procura, sem meias palavras, apresentar uma explicitação da doutrina de superioridade ariana. A entrada do catálogo da Giornate a ele dedicada – corri a lê-la, terminada a sessão, incrédula com aquilo que eu acabara de ver – refere-se ao esforço de Hart no intuito de estabelecer nexos de causalidade que justifiquem as ações de Steve Denton, a personagem que ele interpreta.
Trata-se de “The Aryan” e procura, sem meias palavras, apresentar uma explicitação da doutrina de superioridade ariana. A entrada do catálogo da Giornate a ele dedicada – corri a lê-la, terminada a sessão, incrédula com aquilo que eu acabara de ver – refere-se ao esforço de Hart no intuito de estabelecer nexos de causalidade que justifiquem as ações de Steve Denton, a personagem que ele interpreta.
Denton chega do Oeste profundo, onde fizera fortuna, até a comunidade na qual vive Trixie, cognominada “a mariposa”, criaturinha de vida airada que se veste de mocinha (veste-se literalmente, envergando o vestido branco comum a essas personagens, que ela deixava no fundo da mala para misteres do tipo) para roubá-lo. Nesse ínterim, chega à cidade um telegrama comunicando a doença da mãe de Denton. Trixie intercepta-o, e, mancomunada com os tipos do local, fá-lo perder o seu dinheiro no jogo. No outro dia, após nova notícia de casa informá-lo que já é tarde para alcançar a sua mãe viva, o iludido cowboy torna-se um misantropo doentio, que sequestra Trixie e passa a semear terror pelos locais por onde passa.
A narrativa adquire, então, impressionante realismo graças sobretudo ao trabalho de Louise Glaum (Trixie) e de Hart – ela, desgrenhada de corpo e alma pela penúria à qual Denton a submete; ele, amargo e seco (que bela fisionomia angulosa tinha esse homem, perfeita para a explicitação das dores da alma). Não obstante, o supracitado nexo de causalidade – que Hart buscou de um fato real, já que também ele não pôde presenciar a agonia da mãe, mas porque estava estreando uma nova peça em NYC... – é, senão frágil, ao menos besta; alguma psicanálise faria com que Hart nos poupasse dele.
Mas falta “O Ariano” do título entrar em ação. Eis que chega à história a delicada Bessie Love, em sua estreia cinematográfica, como a jovenzinha responsável por amolecer tal coração de pedra. A família dela pena pelo deserto, ela pede-lhe pão e ele, em troca, convoca os seus comparsas para um estupro coletivo – a trama não economiza nas tintas (a essa altura, temos de lidar com a falta de um rolo, que ocasiona na ação uma síncope). Quando o fato está em vias de ser consumado, a jovem, tal e qual Ave Maria, toca esse homem com a tese do arianismo. Como ele, um branco, poderia permitir que os seus comparsas, inferiores (embora o intertítulo não explicite, nós percebemos, pela tez dos homens, que se tratam de mexicanos), toquem-nas? No desfecho, cabe ao ariano conduzir a família da desconhecida – os seus iguais, já que uns e outros são arianos – pelo deserto árido.
Essa sessão obrigou-me a uma bebida...
Essa sessão obrigou-me a uma bebida...
Ao meio dia, depois de convencida de que a nossa sociedade pregressa, como a presente, não tem mais salvação, meti-me numa sessão de Slapstick Comedy. Tratava-se do programa “The Nasty Women”, organizado por duas jovens professoras universitárias, e graças a ele pude conhecer, dentre uma série de mulheres danadas e tenebrosas que exigiam o seu lugar ao sol naqueles anos de 1910-1920, as senhoras do curta “La greve des bonnes” (1906), que procurei em vão meses atrás, enquanto escrevia a respeito da greve abordada pelo primeiro cinema. Aqui, por meio da forma do slapstick, as domésticas grevistas ora agridem, ora são agredidas, na busca pelos seus direitos. Já em “Léontine, enfant terrible”, é a jovem do título que anarquiza as cercanias burguesas que habita, reagindo contra o status quo.
A tarde se inicia com os “Weimar shorts” – filmes que tranquilamente poderiam se passar pelas vistas rodadas pelos irmãos Lumière nos primórdios do cinematógrafo, não fossem longas (de 7, 10, 15 minutos) e não dessem indiscutível primazia à paisagem. A câmera estática – a qual por vezes move-se apenas para acompanhar o marulho das ondas que movimentam o barco sobre o qual ela está colocada – dá tempo ao tempo: capta o serpentear das nuvens de Maloja em meio às montanhas (“The Cloud Phenomenon of Maloja”, 1924), filme exibido no interior do recente “Acima das Nuvens”; a alma das plantas (“The Soul of the Plant, 1922); a viagem do vapor alemão ao Polo Ártico (“Artic Journey 1925 on the steamer ‘Munich’ Norddeutscher Lloyd Bremen”) – este último filme, composto por 15 minutos ininterruptos de água/pessoas na água, fez com que apelidássemos carinhosamente o programa de “Programa Aquático” (para o qual José María Serralde Ruiz improvisou um acompanhamento musical à altura da “Música Aquática” do colega George Frideric Handel).
A programação noturna foi composta por uma pequena obra-prima, o chinês “Fen Dou” (1932), dirigido por Dongshan Shi. A invasão japonesa na China é o pano de fundo deste melodrama patriótico cujo valor repousa na eficácia das atuações. Narra-se ali a história de dois colegas de quarto que compartilham do amor por uma mesma mulher, Swallow (Chen Yanyan, de uma delicadeza de boneca de porcelana) – explorada pelo tutor que deseja vendê-la a um velho comerciante. A gata borralheira acaba fugindo com o mais brioso dos jovens, Yuan, para desespero do rival, que os segue com intenções assassinas.
Prestes a cometer o crime capital, a polícia intervém e um quiproquó os atira a ambos atrás das grades. Ali ouvem o grito de guerra dos chineses espoliados: o mocinho brioso convence o colega lasso a se juntar às hostes libertadoras da China; o patriotismo os une. Daí por diante há um intermédio na felicidade do jovem casal Swallow e Zheng. O leão despede-se de sua delicada andorinha – a esta altura, e graças à doce firmeza com que a pianista Maud Nelissen (grande artista) acompanhava os quadros, poucos olhos permaneciam secos –, a qual enverga com dignidade o doloroso papel de mulher de soldado. Até a volta dele, sem o amigo que morreu em seus braços, acompanhamos os usos e costumes da China do princípio do século XX, recriados por Dongshan Shi e redescoberto graças ao recente achamento deste filme. “Fen Dou” atesta a globalização do gênero melodramático, ao mesmo tempo em que demonstra as suas especificidades nacionais.
A sessão das 22:15 traz como clou o argentino “El Último Malón”, obra-prima Argentina, impressionante porque, num momento em que a América Latina virava repositório de vilães para a cinematografia norte-americana, propõe-se a narrar o massacre de uma população indígena local a partir do ponto de vista dos índios. A história ficcionaliza sobre um fato real: quinze anos antes, os índios Mocoví se rebelaram contra uma repressão de décadas; o que resultou no massacre.
A obra de Alcides Greca traz para o primeiro plano os usos e costumes dos indígenas. O elenco é sobretudo amador, composto pelos índios sobreviventes do massacre – mesmo o indígena que disputa a mulher branca (uma das únicas atrizes profissionais do filme) no drama amoroso obrigatório à cinematografia do período era um cacique Mocoví. Trata-se de um documentário que faz uso da mesma estratégia narrativa de “Nanook”, antecedendo-o em quatro anos. Aproxima-se da obra de Flaherty pelo cuidado com que preserva em película usos e costumes de populações autóctones e, no caso dos Mocoví, em vias de extinção. E dá aos indígenas um indiscutível protagonismo, colocando diante das câmeras de forma naturalista a penúria em que viviam, o esforço de sustentarem suas tradições e a luta pela vida.
A programação noturna foi composta por uma pequena obra-prima, o chinês “Fen Dou” (1932), dirigido por Dongshan Shi. A invasão japonesa na China é o pano de fundo deste melodrama patriótico cujo valor repousa na eficácia das atuações. Narra-se ali a história de dois colegas de quarto que compartilham do amor por uma mesma mulher, Swallow (Chen Yanyan, de uma delicadeza de boneca de porcelana) – explorada pelo tutor que deseja vendê-la a um velho comerciante. A gata borralheira acaba fugindo com o mais brioso dos jovens, Yuan, para desespero do rival, que os segue com intenções assassinas.
Prestes a cometer o crime capital, a polícia intervém e um quiproquó os atira a ambos atrás das grades. Ali ouvem o grito de guerra dos chineses espoliados: o mocinho brioso convence o colega lasso a se juntar às hostes libertadoras da China; o patriotismo os une. Daí por diante há um intermédio na felicidade do jovem casal Swallow e Zheng. O leão despede-se de sua delicada andorinha – a esta altura, e graças à doce firmeza com que a pianista Maud Nelissen (grande artista) acompanhava os quadros, poucos olhos permaneciam secos –, a qual enverga com dignidade o doloroso papel de mulher de soldado. Até a volta dele, sem o amigo que morreu em seus braços, acompanhamos os usos e costumes da China do princípio do século XX, recriados por Dongshan Shi e redescoberto graças ao recente achamento deste filme. “Fen Dou” atesta a globalização do gênero melodramático, ao mesmo tempo em que demonstra as suas especificidades nacionais.
A sessão das 22:15 traz como clou o argentino “El Último Malón”, obra-prima Argentina, impressionante porque, num momento em que a América Latina virava repositório de vilães para a cinematografia norte-americana, propõe-se a narrar o massacre de uma população indígena local a partir do ponto de vista dos índios. A história ficcionaliza sobre um fato real: quinze anos antes, os índios Mocoví se rebelaram contra uma repressão de décadas; o que resultou no massacre.
A obra de Alcides Greca traz para o primeiro plano os usos e costumes dos indígenas. O elenco é sobretudo amador, composto pelos índios sobreviventes do massacre – mesmo o indígena que disputa a mulher branca (uma das únicas atrizes profissionais do filme) no drama amoroso obrigatório à cinematografia do período era um cacique Mocoví. Trata-se de um documentário que faz uso da mesma estratégia narrativa de “Nanook”, antecedendo-o em quatro anos. Aproxima-se da obra de Flaherty pelo cuidado com que preserva em película usos e costumes de populações autóctones e, no caso dos Mocoví, em vias de extinção. E dá aos indígenas um indiscutível protagonismo, colocando diante das câmeras de forma naturalista a penúria em que viviam, o esforço de sustentarem suas tradições e a luta pela vida.