segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia II


Dia 2: domingo, 3 de outubro de 2021

Programa duplo na Giornate deste domingo: o longa australiano “The man from Kangaroo” (The Better Man, Wilfred Lucas, 1920) e cinco curtas oriundos da Cineteca del Friuli, “Corti della Cineteca/Shorts from the Cineteca del Friuli”. Caminhemos por essas obras, que de saída surpreendem pela diversidade. 
“The man from Kangaroo” é o primeiro filme silencioso australiano que, pelo que me lembro, eu vi. Segundo as notas que o festival faz publicar sobre ele, trata-se do terceiro de cinco longas metragens protagonizados por Snowy Baker, produzidos na Austrália entre 1918 e 1920. 
Baker era atleta, produtor de esportes e ator naquele país, segundo a Wikipedia. Embora fosse ator de parcos méritos, possuía destreza física de sobra. Era uma espécie de Douglas Fairbanks australiano, observamos tão logo passamos os olhos pelo filme, que faz o esforço de arrolar os dotes musculares desse pastor evangélico (!) enviado ao outback australiano devido a, aparentemente, uma falta cometida – o intertítulo não dá mais detalhes. 
O desportista/ator/pastor desfila um rol de saltos ornamentais cujos nomes técnicos os intertítulos ressaltam, diante dos moleques da cidadezinha que lhe assistem embasbacados – como nós. Aqui, a ação dramática dá lugar ao display do número exibicionista – característica do cinema de atrações que perdura ainda em 1920. Antes e depois, flagramos o rapaz ora ensinando luta livre a dois moleques de seis anos que brigavam, para que eles se possam esmurrar com técnica, ora partindo no encalço de uma dupla de meliantes que rouba a carteira de um pedestre – subindo morros, saltando muros, trepando do alto de pontes por sobre carruagens em movimento, numa azáfama que deixa o público com taquicardia. 
Tão digno Snowy Baker é de Douglas Fairbanks, e este enredo é daqueles rodados na capital do cinema, que logo pensamos nas influências estadunidenses na trama. Efetivamente, segundo ainda as notas de Pordenone, a companhia produtora australiana importou dos Estados Unidos o diretor, sua mulher Bess Meredyth (roteirista importante no período) e a atriz Brownie Vemon – na história, Muriel, a mocinha. Há aqui, portanto, um esforço de se introduzir aquele rincão no coração da cinematografia internacional. 
O enredo, que já apontei em linhas gerais, tem umas proximidades inesquecíveis com o best seller australiano Pássaros Feridos (de Colleen McCullough, escrito no fim dos anos 70, transformado em seriado televisivo nos anos 80) – dentre as quais, por certo, não está a beleza estonteante de seu ator protagonista. Se Snowy Baker tem physique du rôle de sobra para as façanhas ginásticas, não convence como o par romântico da jovenzinha Brownie Vemon, cujo tutor quer em casamento uma vez que ele dilapidara o seu patrimônio, e “uma esposa não pode depor contra o seu marido”. Baker, que na história é John Harland, decide abandonar a batina tão logo percebe que a sua personalidade não se inclina à máxima cristã de “dar a outra face”. Impossibilitado de escalpelar o grupo de trogloditas que impede que ele realize um culto, decide se tornar vaqueiro e moralizar o outback. Ganha terreno, a essas alturas, o farwest cinematográfico norte-americano, que se beneficia aqui de umas cenas documentais de amplos espaços, de corridas de cavalos e marcação de gado. 
No entanto, o “Homem de Canguru” é, antes de tudo, um romântico. E aí, o roteiro esforça-se para encontrar um espaço para meter o amor entre a testosterona e deus. Cupidos multiplicam-se nos intertítulos, que são um dos pontos altos do filme (à certa altura, enquanto o tutor da moça finge sofrimento, vemos a ilustração de um crocodilo em lágrimas). É maio – a Springtime da canção de Jeanette MacDonald e Nelson Eddy –, as árvores estão em flor, os periquitos cantam, etc. O par romântico funciona, no entanto, melhor quando a mocinha, depois de ambos serem bruscamente separados, se muda casualmente para o ambiente inóspito que John Harland tenta moralizar, e passa a desempenhar um papel assertivo no rompimento com o seu tutor – a diferença que faz quando o roteiro é escrito por uma mulher... 
O filme é uma colcha de retalhos e o seu interesse está, eu acho, exatamente nisso. 

Agora, os curtas. 
São, como já disse, oriundos da Cineteca del Friuli, situada em Udine, na mesma macrorregião de Pordenone e de Veneza, porém, quase que na divisa com a Eslovênia. As obras foram recentemente restauradas – uma delas, “Bigorno fume l’opium”, foi mesmo identificada recentemente – e datam de 1911 a 1914. Estamos, portanto, nos domínios do primeiro cinema. 

A primeira, “Le Bolle di Sapone” (Air Bubbles, Giovanni Vitrotti, 1911), da companhia italiana Ambrosio, soma um conto moralizante (nos moldes de Cuore, de Edmondo de Amicis, lembra Paolo Cherchi Usai, que os apresenta brevemente) e efeitos especiais. Principia com a agressão impingida a certa senhora por um garotinho (bem penteado e milimetricamente vestido de marinheiro, malgrado a sua mãe viva num quarto de cômodo e costure para fora, como tantas sofredoras de melodrama (o intuito aqui é menos a verossimilhança que a moral/a beleza da cena). 
Ele dá de ombros quando o policial o entrega à sua pobre mãe, que chora. Sai de casa, rouba o brinquedo de um menino de sua idade e, ao soprar as bolas de sabão que saem de dentro dele, enxerga no interior delas o sofrimento da mãe. Volta para a casa abatido e consegue o perdão. 
O entrecho é menos interessante que o lilás que tinge o negativo, que o talento da atriz mirim Maria Bay, no papel do pirralho e, enfim, que a transformação das bolas de sabão, tomadas em close, noutras pequenas narrativas. 

O segundo é outra obra da Ambrosio, “Cenerentola” (Modern Cinderella, Eleuterio Rodolfi, 1913). Temos apenas uma fração deste filme que procura apresentar os bastidores das produções cinematográficas ao público ávido – a sua totalidade lamentavelmente se perdeu. Conta-se a história de Silvietta, pobre órfã levada aos estúdios cinematográficos da Ambrosio pela estrela Jenny Smart, que ela conhece nós não sabemos como. No trecho que restou da obra, observamos desde o encantamento do diretor pela moça, o teste que ela realiza e a sua contratação para desempenhar o papel, claro, de Cinderela – glosando o esforço de atrelamento entre a pessoa e a personagem intentado então pela indústria do cinema. O melhor aqui também não é o entrecho, mas o papel de time machine – como bem aponta Cherchi Usai – que este filme desempenha, apresentando-nos a magia daquele tempo e espaço tão recuados. Destaco sobretudo a inequívoca preocupação existente nesta produção com a profundidade de cena, já que vemos diversos gêneros sendo rodados de forma concomitante nos planos posteriores àquele em que se encontra a jovenzinha e os artistas dialogando (há um fragmento aqui, para os interessados).

“Bigorno fume l’opium” (Roméo Bosetti, 1914), da Pathé Comica, traz uma dessas figuras cômicas seriadas, o ator René Lantini (Bigorno), como o apatetado tipo que recebe a visita do tio recém-chegado da China. Entre os itens exóticos trazidos na bagagem, que então atraíam a atenção do redor do mundo, o homem retira os apetrechos para o fumo do ópio. Após apresentar a Bigorno como ele deve utilizar a droga com descrição, deixa-o só. Ele, como imaginamos, mergulha de cabeça nos delírios opioides, e nós com ele. 

“La mosca e il ragno” (1913), da Milano Films, é um lindíssimo exemplar de animação realizado nos primórdios do cinema. Novamente, um menino vestido de marinheiro surge em cena, porém, de modo coadjuvante. É ele quem nota o inseto pela primeira vez, retira as suas asas (que vemos num close de suas mãos) e, instado pela serviçal (estamos agora num ambiente burguês), termina a tarefa de escola, que o inseto interrompera. Tão logo se retira, surgem as verdadeiras protagonistas da cena, a mosca e a aranha, que encetam uma perseguição graças ao expediente do stop-motion (que eu não imaginava assim antigo): destruindo frutos, montando armadilhas e içando uma tirolesa num cuco. 

E, enfim, o filme mais longo do programa, tomando meia hora de seus 75 minutos, “Il Giglio Nero” (The Black Lily Gang, 1913), da Cines Italiana, um dos primeiros exemplares de filmes tematizando gangues criminosas os quais vicejam primeiro na Europa (por exemplo, “Fantômas”) e depois, nos Estados Unidos – são incontáveis os paralelos observados entre ele e um seriado como “The Exploits of Elaine” (1914), da Pathé norte-americana. 
A gangue em questão rouba os endinheirados (menos mal) da Itália. O público conhece detalhes sobre o grupo em paralelo à visita que um velhinho de aspecto bondoso realiza a uma família da alta goma. Descobriremos só no desfecho que este velho é o líder do grupo – na verdade, um jovem disfarçado. O sucesso da empreitada se deve ao detetive Sereni (Attilio D’Anversa) – o embate entre a justiça e o crime é outro elemento fundamental dessas histórias, vencendo sempre a primeira, mesmo que sejam necessários vinte episódios de vilania até o desfecho. 
O ponto alto da obra é a agilidade das perseguições e o requinte de detalhes na construção dos cenários, repletos de alçapões e portas invisíveis, apesar de algumas paredes de papelão ainda sacudirem frente à pressão dos corpos – ainda se buscava, então, um realismo específico à cena cinematográfica, para além da verossimilhança teatral, da qual esses filmes usualmente bebiam. 

A domani.

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