Dia 7: terça, 8 de outubro de 2021
A Giornate está em seus estertores. Agora, provavelmente os participantes da edição in person do evento devem estar metidos numa noite de bota-fora mais inolvidável do que aquela que houve em 2019, devido ao interregno a que foram obrigados no ano passado. Enquanto isso, os participantes do evento online devem estar se preparando para assistir aos últimos dois programas do ano, disponíveis até a tarde de amanhã. Antes de nos juntarmos a eles, passemos em revista “Moral” (1928), filme alemão rodado por Willi Wolff e protagonizado por Ellen Richter.
A atriz – segundo nos informa Jay Weissberg, diretor do festival, na curta apresentação que faz do filme –, era estrela de primeira grandeza no cinema dos anos de 1920, tendo rodado dezenas de filmes que não sobreviveram ao tempo porque ela não fora regida pelos célebres Lubitsch ou Murnau.
Efetivamente, “Moral” chega aos nossos tempos incompleto, e graças ao esforço de um conjunto de arquivos europeus, que o restauraram partindo do negativo da obra, do qual, no entanto, falta cerca de um rolo e meio. Visando à completude do material perdido, foi utilizado para o restauro igualmente uma tiragem de primeira geração realizada para a exibição da obra na Espanha, enquanto que takes e cenas perdidas foram reconstruídos com a ajuda de fotografias, e intertítulos perdidos foram recuperados graças aos arquivos de censura de República Tcheca – ao menos para fornecer documentos ao pesquisador serve a censura... Anotei entre os envolvidos na viabilização do restauro o Deutsches Filminstitut & Filmmuseum, a Filmoteca Valenciana, a University of Applied Sciences de Berlim, o National Archives of the Czech Republic e a ARRI Media. Como se pode observar, tal trabalho não é de pouca monta.
Porém, felizmente agora temos “Moral” em versão bem próxima àquela que sonhou Willi Wolff, e podemos espiar pelo buraco da fechadura a república de Weimar poucos anos antes do terror nazista; ou, melhor dizendo, podemos observar a Alemanha das diversões noturnas e dos costumes livres cujo pitoresco invadiria a cinematografia nas décadas vindouras, nas mais diversas chaves.
Wolff fora letrista dos teatros de variedades alemães antes de ingressar na cinematografia, então o filme traz uma visada nostálgica nos bastidores desse mundo, colocando em cena trechos de espetáculos teatrais efetivamente exibidos então, sem saber que documentava uma Era que logo seria reduzida a cinzas. Sua comparsa na empreitada é Ellen Richter, que além de sua mulher era sua sócia e sua estrela. Em “Moral”, ela é Therese Hochstetter (a.k.a. Ninon d’Hauteville), a protagonista de uma revista de ano berlinense que viaja com sua companhia à província para apresentar o seu espetáculo.
Ninon surge em cena de cabelos cortados à la garçon e trajando calças compridas de cetim aderentes ao corpo e longos peignoirs emplumados – “a senhora não pode vestir algo mais decente?”, lhe dirá a polícia antes de levá-la prestar esclarecimentos na delegacia –, fazendo emergir a femme fatale que a virada dos anos de 1920 revisitava, a qual porejava ironia e senso crítico. Cabe a ela bater-se contra os velhotes bastiões da moral e dos bons costumes da localidade interiorana em que aporta a companhia, os quais desejam impedir a sua estreia. É desnecessário dizer que os tipos são obviamente hipócritas, tanto que o principal representante esconde a aliança e assedia Ninon – sem reconhecê-la – no trem que os conduzia à cidade.
Segundo Oliver Hanley, que tece algumas considerações sobre a obra no site da Giornate, “Moral” baseou-se frouxamente na peça homônima de grande sucesso escrita por Ludwig Thoma em 1908; que chegou a ser representada por Richter em 1909. Dada a distância entre a obra teatral e a cinematográfica, compreende-se porque esta resvala à pedagogia, explicitando ad nauseam os caracteres putrefatos daqueles que desejavam impor regras de conduta aos demais. Libertária na aurora do século XX, a crítica soa ultrapassada vinte anos mais tarde.
Todavia, o filme tem algumas sequências impagáveis, a exemplo daquelas que concernem à instalação, pela moça, de uma câmera oculta no quarto contíguo ao seu, para que ela possa filmar os questionáveis agentes da moralidade em atos reprováveis. O dispositivo fílmico, devido à suposta objetividade da imagem que capta, comparece em várias peças de teatro de fins do XIX e inícios do XX, com o objetivo de denunciar infratores. A sua presença em cena praticamente na dobra dos anos de 1930 aponta as continuidades vividas pelo cinema.
Mas, sobretudo, o filme vale à pena pelo sorriso debochado com que Ellen Richter, realmente uma estrela, paulatinamente se desembaraça dos tipos que desejam impedi-la de subir à cena. Lamentavelmente, a vida tantas vezes não imita a arte. Uma vez que Hitler sobe ao poder, a atriz e o marido imigram aos Estados Unidos, porém, interrompem a sua contribuição ao cinema. Legada ao ostracismo por tantas décadas, esperamos que esse reaparecimento de Ellen Richter em “Moral” seja o princípio da sua redescoberta pelas novas gerações.
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