Já podemos escolher um filme preferido da edição online da 40ª Giornate de Pordenone? Se sim, seria este “Fool’s Paradise” (1921), obra produzida pela Famous Players-Lasky, dirigida por Cecil B. de Mille e roteirizada por Beulah Marie Dixe e Sada Cowan – outras duas mulheres roteiristas, o que ressalta o esforço desta edição do evento de apresentar trabalhos de destacada participação feminina.
O filme tem elementos para agradar variadas faixas de público, algo costumeiro nas grandes produções da já principal indústria do cinema do mundo: há o drama lacrimoso do antigo combatente da Grande Guerra que é ferido nas vistas por estilhaços de uma bomba, apaixonando-se por uma famosa bailarina francesa quando ela vai animar os doentes de certo hospital de campanha do país; há um triângulo amoroso entre ele, ela e uma deliciosa cantora de cabaré texana; há a comédia, que emerge sobretudo das relações que essa figura feminina –elemento central da trama – estabelece com os frequentadores da espelunca de El Paso, onde se passa a ação; há exotismo e fantasia, os quais aproximam esta obra das peças fantásticas amadas pelos públicos teatrais nas últimas décadas do século XIX, das quais o cinema se torna o natural continuador.
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Porém, o triângulo vai se configurar quando Rosa surge em El Paso – cidadezinha do Texas que vicejava devido à exploração do petróleo – para dar algumas récitas. Poll, chistosa, não aceita calada a rejeição de Arthur, presenteando-o com um charuto explosivo que ele apenas ascenderá para comemorar o seu encontro bem-sucedido com a bailarina famosa – na verdade, o coitado apenas carrega a diva para que ela não enlameie os pés na entrada do teatro, e regozija quando ela se lembra dele. O chiste, no entanto, se transforma em tragédia, pois o charuto cega o homem cujas vistas já periclitavam, e aí acompanhamos, respaldados pelos longuíssimos e chorosos intertítulos, o seu percurso da luz à escuridão, que se efetiva quando a cortina do espetáculo de Rosa se fecha. Poll assiste a tudo, e acompanhamos num só tempo, doravante, o seu sofrimento com o destino do moço e a sua ironia com a paixonite dele pela bailarina – explicitada com imenso talento por Dorothy Dalton, de quem já virei tiete, à medida que ela parodia a performance da rival, diante dos frequentadores da espelunca mexicana onde ela trabalha, os quais têm por si um respeito e um encantamento imensos (também pudera).
Tantos spoilers para explicitar a vocação melodramática da trama, que costura as lágrimas e o riso dando um invulgar primeiro plano ao tratamento dos caracteres. Poll é sem dúvida a melhor personagem da trama, repleta de profundidade. Mesmo enamorada de Arthur, consegue observar a ação de fora – momento magistral, que dialoga com o público nosso contemporâneo, é quando Poll aplaude justamente a cena da peça de Rosa em que a personagem da bailarina, a fada de coração gelado, é abandonada pelo homem que encantara. No entanto, a ironia com que ela trata a rival, colando mesmo a imagem de uma vaca sobre a foto de Rosa quando se casa com o cego Arthur, não a impede de nutrir pelo rapaz um amor abnegado, que a fará curá-lo mesmo sabendo que ele a abandonaria depois.
Quando Arthur recobra a visão, a história se desdobra no enriquecimento do rapaz, cuja mina encontra petróleo, e numa insólita viagem sua ao Sião, em busca de Rosa, seu suposto grande amor – a qual, a essa altura, nós vemos que duplica, na vida real, o papel de fada de coração gelado que desempenhava nos palcos.
O interregno siamês praticamente interrompe a ação dramática, e pode apenas ser compreendido no contexto da sedução que o exotismo oriental inspirava, então, no público ocidental, bem como no encantamento gerado pelas peças teatrais de cunho fantástico – em “Fool’s Paradise”, o tapete mágico da peça desempenhada por Rosa desdobra-se nos dançarinos típicos de Sião, nos rituais religiosos que nos fazem lembrar dos “Caçadores da arca perdida”, nas vias aquáticas que transformam a cidade num sucedâneo de Veneza – enfim, ficção e realidade resvalam-se, como então era costume na Meca do cinema.
Aqui Cecil B. De Mille é bem-sucedido como nunca. Se “Fool’s Paradise” é uma grande produção como “Why change your wife” (1920) ou “Don’t change your husband” (1919), esta obra apresenta muitos mais atrativos ao público nosso contemporâneo porque coloca a moralização, grande preocupação deste diretor, em segundo plano. Prova disso é a profundidade impressa na personagem da deslumbrante Poll, e o happy ending que De Mille a faz merecer, malgrado a vida pregressa da moça, tão questionável para os padrões da época - happy ending exacerbado pela música maravilhosa que o meu adorado Neil Brand compôs para a trama, cujo tema delicado vai se desdobrando até atingir, com a última cartela, o paroxismo.
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