quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Giornate Del Cinema Muto de Pordenone 2021: Dia IV


Dia 4: terça, 5 de outubro de 2021
 
Já podemos escolher um filme preferido da edição online da 40ª Giornate de Pordenone? Se sim, seria este “Fool’s Paradise” (1921), obra produzida pela Famous Players-Lasky, dirigida por Cecil B. de Mille e roteirizada por Beulah Marie Dixe e Sada Cowan – outras duas mulheres roteiristas, o que ressalta o esforço desta edição do evento de apresentar trabalhos de destacada participação feminina. 
O filme tem elementos para agradar variadas faixas de público, algo costumeiro nas grandes produções da já principal indústria do cinema do mundo: há o drama lacrimoso do antigo combatente da Grande Guerra que é ferido nas vistas por estilhaços de uma bomba, apaixonando-se por uma famosa bailarina francesa quando ela vai animar os doentes de certo hospital de campanha do país; há um triângulo amoroso entre ele, ela e uma deliciosa cantora de cabaré texana; há a comédia, que emerge sobretudo das relações que essa figura feminina –elemento central da trama – estabelece com os frequentadores da espelunca de El Paso, onde se passa a ação; há exotismo e fantasia, os quais aproximam esta obra das peças fantásticas amadas pelos públicos teatrais nas últimas décadas do século XIX, das quais o cinema se torna o natural continuador. 
Dorothy Dalton – de quem eu muito já ouvira, porém, nunca havia visto atuar – é aqui Poll Patchouli. Se houvesse nascido nos anos de 1910, seria naturalmente uma vamp. Na aurora dos anos 20, é uma vamp reformada, no esforço dos estúdios de impregnarem as suas personagens de realismo. É a dançarina espanholada do cassino do mexicano John Roderiguez (Theodore Kosloff), mulher cheia de talento, verve e, ao mesmo tempo, coração, que já principia a história salvando uma pobre mocinha de cair nas garras de um aliciador local. Em fuga da espelunca de Roderiguez, já que se imiscuíra nos negócios do patrão, Poll vai dar na casa de Arthur Phelps (Conrad Nagel), poeta de talento duvidoso e paixão inequívoca pela dançarina francesa Rosa Duchene (Mildred Harris), que ele conhecera enquanto convalescia no tal hospital francês. É uma paixão platônica e algo risível, já que o apaixonado é sobretudo um tiete, que espalha pela casa fotos e lembranças da amada como faziam, então, os espectadores cinematográficos com suas estrelas favoritas. Poll ironiza-o, mas se identifica com a sua fragilidade e se apaixona por ele. 
Porém, o triângulo vai se configurar quando Rosa surge em El Paso – cidadezinha do Texas que vicejava devido à exploração do petróleo – para dar algumas récitas. Poll, chistosa, não aceita calada a rejeição de Arthur, presenteando-o com um charuto explosivo que ele apenas ascenderá para comemorar o seu encontro bem-sucedido com a bailarina famosa – na verdade, o coitado apenas carrega a diva para que ela não enlameie os pés na entrada do teatro, e regozija quando ela se lembra dele. O chiste, no entanto, se transforma em tragédia, pois o charuto cega o homem cujas vistas já periclitavam, e aí acompanhamos, respaldados pelos longuíssimos e chorosos intertítulos, o seu percurso da luz à escuridão, que se efetiva quando a cortina do espetáculo de Rosa se fecha. Poll assiste a tudo, e acompanhamos num só tempo, doravante, o seu sofrimento com o destino do moço e a sua ironia com a paixonite dele pela bailarina – explicitada com imenso talento por Dorothy Dalton, de quem já virei tiete, à medida que ela parodia a performance da rival, diante dos frequentadores da espelunca mexicana onde ela trabalha, os quais têm por si um respeito e um encantamento imensos (também pudera). 

Poll se aproveita da cegueira de Arthur Phelps para se casar consigo com a conivência da cidade, encantando-se com aquele
paraíso de tolos – na opinião de seu patrão Roderiguez, também apaixonado por si – que é o seu papel de dona de casa, chefe de família cuidadora do marido enfermo. 
Tantos spoilers para explicitar a vocação melodramática da trama, que costura as lágrimas e o riso dando um invulgar primeiro plano ao tratamento dos caracteres. Poll é sem dúvida a melhor personagem da trama, repleta de profundidade. Mesmo enamorada de Arthur, consegue observar a ação de fora – momento magistral, que dialoga com o público nosso contemporâneo, é quando Poll aplaude justamente a cena da peça de Rosa em que a personagem da bailarina, a fada de coração gelado, é abandonada pelo homem que encantara. No entanto, a ironia com que ela trata a rival, colando mesmo a imagem de uma vaca sobre a foto de Rosa quando se casa com o cego Arthur, não a impede de nutrir pelo rapaz um amor abnegado, que a fará curá-lo mesmo sabendo que ele a abandonaria depois. 
Quando Arthur recobra a visão, a história se desdobra no enriquecimento do rapaz, cuja mina encontra petróleo, e numa insólita viagem sua ao Sião, em busca de Rosa, seu suposto grande amor – a qual, a essa altura, nós vemos que duplica, na vida real, o papel de fada de coração gelado que desempenhava nos palcos. 
O interregno siamês praticamente interrompe a ação dramática, e pode apenas ser compreendido no contexto da sedução que o exotismo oriental inspirava, então, no público ocidental, bem como no encantamento gerado pelas peças teatrais de cunho fantástico – em “Fool’s Paradise”, o tapete mágico da peça desempenhada por Rosa desdobra-se nos dançarinos típicos de Sião, nos rituais religiosos que nos fazem lembrar dos “Caçadores da arca perdida”, nas vias aquáticas que transformam a cidade num sucedâneo de Veneza – enfim, ficção e realidade resvalam-se, como então era costume na Meca do cinema. 
Aqui Cecil B. De Mille é bem-sucedido como nunca. Se “Fool’s Paradise” é uma grande produção como “Why change your wife” (1920) ou “Don’t change your husband” (1919), esta obra apresenta muitos mais atrativos ao público nosso contemporâneo porque coloca a moralização, grande preocupação deste diretor, em segundo plano. Prova disso é a profundidade impressa na personagem da deslumbrante Poll, e o happy ending que De Mille a faz merecer, malgrado a vida pregressa da moça, tão questionável para os padrões da época - happy ending exacerbado pela música maravilhosa que o meu adorado Neil Brand compôs para a trama, cujo tema delicado vai se desdobrando até atingir, com a última cartela, o paroxismo.

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