Dobradinha de nasty women no sexto dia da Giornate. “Nasty Women”, programa que o festival vem apresentando nos últimos anos, é um de seus mais bem-sucedidos – tanto que uma seleção sua será em breve lançada em blu-ray, o que, considerando o reduzido mercado consumidor do cinema silencioso, não é pouca coisa. Organizam-no duas professoras/pesquisadoras da área, Maggie Hennefeld e Laura Horak, e as suas seleções e apresentações sempre primam pela agudeza e pelo bom-humor.
Duas obras fizeram parte do streaming de ontem, o curta-metragem francês “Le Ménage Dranem” (1912) e o longa norte-americano “Phil-For-short” (Oscar Apfel, 1919).
O curta é protagonizado pelo ator/personagem de Dranem, responsável por uma série cômica de sucesso da Pathé dos últimos anos do primeiro cinema. Em cena, uma inversão de papéis tão comum ao cinema daqueles tempos de revolução dos costumes. Dranem é o marido tiranizado pela esposa feminista, a qual o filme observa com invulgar acidez, demonstrando a má vontade com que os pressupostos deste movimento eram tomados pelo senso comum.
Os cenários da casa burguesa retratada, que somam objetos reais e objetos pintados, bidimensionais, ratificam que a obra toma por molde a farsa teatral. A proximidade da câmera com relação às personagens – sobretudo a esposa – apenas fazem sublinhar seus trejeitos exagerados, ressaltando o que haveria de ridículo em sua atitude de deixar o filho bebê com o marido enquanto ela, de gravata e jupe-culote (a tal “saia-calção” causava alvoroço mundial nesse momento, tendo engendrado, no Rio de Janeiro, por exemplo, canções e mesmo obras cinematográficas), bebe uma cerveja enorme num boteco, fuma cachimbo ou joga carteado – e briga – com as amigas.
O filme estabelece uma dicotomia estrita entre afazeres masculinos e femininos e, por meio da inversão, num só tempo ironiza o marido transformado em empregada doméstica e a esposa transformada em homem. Emerge da obra, todavia, repúdio sobretudo pela personagem da mulher. Enquanto a câmera demonstra simpatia pelo homem que faz o que pode num lugar que claramente não lhe caberia, a mulher é talhada segundo as piores características masculinas – desdenha da prole, é ébria e jogadora compulsiva.
Esses traços grossos procuram convencer o público da reviravolta que logo se operará. Ao chegar em casa, o marido a agride fisicamente, devolvendo-lhe a vassoura e a criança. A cena final mostra o casal risonho cercado de filhos, no que seria um quadro de harmonia familiar apenas possível porque o homem colocou a mulher em seu devido lugar. Incompreendido, o feminismo era então posto à bulha de forma farsesca para ser terminantemente rejeitado.
O próximo filme, “Phil-For-short”, da World Film Corporation, é uma pequena obra-prima de comédia. Traduzida livremente por “Phil para encurtar”, o título faz referência ao nome da personagem da mocinha que está tão longe das heroínas românticas típicas quanto das mulheres desagradáveis/sórdidas/maldosas que surgem às dúzias nos programas organizados por Hennefeld e Horak (o rótulo “nasty” com que as organizadoras batizam o programa é certamente irônico, pois hoje nós nos deleitamos com essas figuras femininas que tomam seus destinos nas mãos tanto quanto seus contemporâneos se apavoravam com elas). Phil é Damophilia Illington, jovem batizada segundo certa personagem de Sapho (que é, sabemos, a autora grega oriunda da ilha da ilha de Lesbos, donde se origina o substantivo “lésbica”).
Filha de um velho acadêmico voltado aos estudos do grego arcaico, Damophilia é tão erudita quanto espevitada. Evelyn Greeley, sua intérprete, lhe dá carisma e frescor. Num momento em que calças compridas num corpo feminino eram um atentado à moral, a jovem surge pela primeira vez em cena de macacão, alimentando os cavalos do sítio de seu velho pai. O homem, no entanto, morre inesperadamente, deixando-a à mercê de um rico comerciante da cidade, que se incumbe de tutorá-la porque quer desposá-la. Para lhe fugir, ela se veste em travesti e deixa os domínios do pai junto de um velho funcionário dele – tocador de violino que fornece a música para as incursões da moça pelas danças clássicas gregas. Damophilia despoja-se de si para viver um destino diferente do que aquele que cabia historicamente às mulheres, como antes fizera a Rosalinda de Shakespeare e, como ela, encontrará o seu Orlando após embrenhar-se na floresta situada nos limites da cidade.
O tal jovem é John Alden (Hugh Thompson), um solteirão contumaz que vitupera as mulheres. Traduzindo um suposto texto grego, ele dirá que “O homem que tenta pegar uma enguia pela cauda ou tomar uma mulher por sua palavra logo se descobrirá de mãos vazias”. Professor de grego arcaico, John faz tanto sucesso entre as suas alunas quanto Indiana Jones fazia entre as dele. O personagem enceta relações com a versão masculina da mocinha – o “Phil” que ela usa como apelido combina consigo como nunca –, que, para fugir de seu perseguidor, decide procurar trabalho junto à universidade onde o rapaz leciona. Ela, a essa altura já interessada por ele, surge ali como mulher. A partir de então a veremos – o que é algo revolucionário quando pensamos no cinema clássico da época – atuando em pé de igualdade junto dele, na cátedra de grego clássico.
Repleto de argúcia, o filme faz uso de um vocabulário bélico para exacerbar a tensão sexual que então passa a imperar: na sala dividida milimetricamente ao meio, com duas mesas aos mestres e dois róis de cadeiras aos estudantes (as mulheres se sentam diante da professora e os rapazes, do professor), acontece um “fogo cruzado”, segundo o intertítulo, já que as moças flertam com o professor enquanto Damophilia flerta com todos os rapazes. Já na sala do diretor acontece uma “Revolução Ática”: tal e qual um ateniense moderno, John Alden se digladia frente a uma situação que ele não controla. Tudo em vão. A jovem Phil, uma das personagens mais interessantes do cinema desses tempos, tem larga vantagem sobre ele. Estrategista, elaborará um plano para que o jovem se case consigo e, assim, ela se veja livre do sórdido comerciante que a persegue. A música do querido José María Serralde Ruiz é conivente com a mocinha, antecipando ao público as ações da adorável Evelyn Greeley.
Esse filme, como o anterior, toma a farsa como modelo. Ambos, todavia, têm entre si uma diferença espiritual. Aqui, o risível é John Alden, cujo repúdio ao gênero feminino é vingado com o casamento com uma mulher de caráter muito mais firme que o dele. Ao conhecer Damophilia, John lhe dera como conselho casar-se com um homem forte que a corrigisse. Contudo, quem acaba corrigido é ele, por essa mesma razão. O travesti, que é tópica no cinema da época, materializa, neste filme a inversão dos costumes que ele apregoa – daí as censuras que a obra sofreu quando estreou, segundo as autoras do programa. Não por acaso, seu roteiro teve dedo feminino – Clara Beranger escreve-o juntamente com Forrest Halsey. Não é demais destacar ainda uma vez a importância do gesto da Giornate de apresentar obras cujos roteiros foram escritos por mulheres. Visadas positivas ao gênero feminino partem invariavelmente delas.
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