Assumo aqui a tarefa ousada de inaugurar, este ano, este blog que já se tornou bissexto, falando sobre algo que não seja cinema silencioso, coisa que há anos me assombra. Falando, mais especificamente, sobre os filmes indicados ao Oscar 2023, e sobre os vitoriosos; assunto que já gerou muito choro e ranger de dentes dentre meus amigos, colegas e conhecidos.
Revisitei en passant meus (vários) textos sobre o Oscar, escritos de forma passional desde que inaugurei o Filmes, filmes, filmes, em 2010. Textos longos e ponderados, o oposto do que me proponho a fazer aqui, nessas notas que não passarão de pitacos – como aponta o título – sobre a solenidade deste ano, e as obras e deidades que ela colocou em seu panteão. Concentro-me aqui nos filmes concorrentes ao prêmio de Melhor Filme.
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Os Fabelmans |
Vi-me em fevereiro assistindo, numa sanha louca, a praticamente todos os indicados do ano. Se não completei o álbum de figurinhas, estive muito perto: Nada de Novo no Front eu não vi anunciado nos cinemas; outras obras, como Elvis e Top Gun, já não estavam em cartaz; outras, como Avatar, preferi fingir que não estivessem – enquanto o primeiro filme da franquia surpreendeu pelo uso de tirar o fôlego da tecnologia em 3D (a trama, malgrado a sua visada socioambiental, era pífia), não consegui ver, no trailer ou no poster do segundo, elemento que transcendesse o primeiro do ponto de vista técnico ou narrativo.
A relativa facilidade em passar pelas obras indicadas revela uma característica nefasta do Oscar – ou da Academia de Artes Cinematográficas, que o atribui: o fato de apenas uma dúzia de obras intercambiarem-se em nos quesitos de premiação. Fiz uma checagem rápida e encontrei, num artigo publicado pela Cláudia em 2019, a referência aos cerca de oito mil membros pertencentes aos quadros da Academia, que podem decidir quem devem indicar e, a partir daí, quem se sagrará vencedor (os meandros disso podem ser conferidos aqui).
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Tár |
Daí, por exemplo a raridade que é vermos a indicação a Melhor Filme de uma obra que não tenha o inglês como idioma principal. Uma das honrosas exceções, o leitor se lembrará, é o sul-coreano Parasita (2019), cujo feito inédito foi conquistar os prêmios de Melhor Filme e de Melhor Filme Estrangeiro em 2020 – mas, neste caso, a exceção vem marcada pelo exagero, já que, embora a obra tenha boa cinematografia, bloca de forma escolar os opostos, descambando, no âmbito do roteiro, para o artificioso/inverossímil.
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Discutir o Oscar não é propriamente discutir cinema, mas sim os arranjos tramados na principal indústria de cinema do mundo, estabelecida numa das principais potências mundiais. A partir deste lugar, surpreende que alguns trabalhos dignos de nota sejam galardoados com a indicação ao prêmio. Vamos a eles – ou a alguns deles, a partir do lugar desta que vos fala.
Comecemos pela obra mais premiada. Tudo em todos os lugares ao mesmo tempo, codirigida por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, arrebatou, além dos prêmios de melhor atriz e de atriz e ator coadjuvantes, as láureas de roteiro original, montagem, diretor e filme.
Sou, como cristã não praticante e comunista de coração, a favor de dividirem-se as benesses. Não sou do time cujos dentes rangeram com esta vitória – ao contrário, este, junto do Triângulo da Tristeza, foram os meus favoritos desta edição da premiação. Se roteiro e sobretudo montagem são os grandes trunfos desta obra, não seria de mau alvitre premiar-se o diretor Ruben Östlund, pela visada ácida – e tão verossímil – que lança às relações humanas em Triângulo da tristeza, ou mesmo Martin McDonagh, pelo pulso com que conduz esta obra quase que teatral que é Os Banshees de Inisherin.
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Criticou-se a pieguice de fundo da obra – já que, ao fim e ao cabo, a mãe viaja pelos universos paralelos para salvar a filha desgarrada transformada em arquivilã. Eu prefiro lê-la pelo viés do humor que tudo destrói: as tramas melodramáticas, a narrativa linear, as pretensiosas sagas que tematizam os meta/multiversos, etc. Os prêmios inéditos aos dois artistas orientais que participaram da produção é outro elemento que depõe a favor das escolhas – do rol de intérpretes vencedores, não saiu dos quadros de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo apenas Brendan Fraser, deslumbrante em A Baleia.
Algumas palavras, agora, sobre as demais obras indicadas – saliento, que eu vi:
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Os Fabelmans (Steven Spielberg) é uma exegese bela, mas algo longa e arrastada, das memórias de seu diretor, desde que pela primeira vez ele coloca as mãos numa câmera cinematográfica, nos Estados Unidos dos anos de 1960. Michelle Williams, indicada ao Oscar de melhor atriz, é a mãe do menino – mulher típica da época, presa aos liames da maternidade e do casamento. Os amantes de cinema se identificarão com o menino que sonha em ser cineasta: sua primeira fascinação pela sala de exibição, sua formação como cinéfilo e realizador, a primeira vez que vê o seu ídolo diretor. No entanto, atravessa a obra um tom grandiloquente que me incomodou.
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Amado e odiado, o Oscar segue há quase 100 anos o prêmio mais relevante da indústria do cinema. Apesar das controvérsias que gera, que ele siga fomentando a frequentação das salas de exibição – que decai a olhos vistos frente ao streaming –, e retirando do ostracismo gente que o merece, a exemplo de Brendan Fraser.