segunda-feira, 10 de junho de 2024

O "Napoleão" de Abel Gance (1927): quando o cinema de vanguarda encontra o mito

Em 1927, quando as iniciativas em escala mais ampla e industrial voltadas ao cinema falado começavam a dar frutos, Abel Gance fez estrear o seu monumental filme silencioso Napoléon vu par Abel Gance, que ficaria mundialmente conhecido como Napoléon. 
O filme é monumental sob todos os aspectos. Vi-o pela primeira vez apenas recentemente, ao longo de alguns dias – a versão da obra restaurada pela bolonhesa Immagine Ritrovata tem uma duração pouco superior a 5 horas e meia, ao longo das quais o pesquisador da história do cinema certamente manterá a respiração suspensa. 
Trata-se de um filme extraordinário. Kevin Brownlow, um dos principais estudiosos do cinema silencioso e homem responsável por ressuscitar esta obra da poeira dos tempos, não diz sem razão que esta é a mais bela obra cinematográfica da história. 
Napoleão surpreende por vários motivos. Embora se estruture à maneira dos filmes seriados veiculados desde a década de 1910, cujos episódios eram exibidos semanal ou quinzenalmente, as quatro partes que o compreendem foram exibidas em sequência no momento de sua estreia, na Ópera de Paris, malgrado a sua longuíssima duração. 
Ademais, a obra não apresenta características comuns à narrativa folhetinesca apresentada à granel. Ao invés de os episódios provocarem a interrupção da ação em seu ponto culminante, como usualmente se dava nos filmes seriados, buscando-se provocar o interesse do público a retornar ao cinema para ver o episódio subsequente, em Napoleão cada parte funciona como um capítulo de um livro de história, apreendendo desde os primeiros anos do menino ao momento em que ele invade a Itália – a ação se interrompe antes de o líder do exército se tornar imperador porque, conta-se, faltou ao diretor a verba para dar continuidade à sua empreitada. 
A visada à história de Napoleão Bonaparte empreendida por Abel Gance tem laivos hagiográficos. Quem surge em cena não é a personagem histórica, mas o mito, que se anuncia de saída, na cena em que o menino da Córsega (Vladimir Roudenko) conduz o seu exército mirim em meio às montanhas de neve do pavilhão do internato onde vivia, patenteando-se ali a honra e a valentia que permeariam a sua existência. E, posteriormente, nos olhos enevoados do menino de oito anos que enxerga pela primeira vez a Ilha de Santa Helena – que viria a ser o seu túmulo –, durante uma aula de história, fica implícita a abnegação do homem que entrega a sua vida a uma causa. 
Napoleão espanta por unir o tradicionalismo no tratamento do tema e a modernidade de sua forma. A infância do menino probo que prenuncia os passos do homem, a desculpa revolucionária dada à invasão francesa aos países do entorno (afinal, Bonaparte apenas estaria sonhando ver o ideário de liberdade espalhado pelas demais monarquias absolutistas), o diapasão conservador a partir do qual a guerra é abordada – como se ela fosse um ato de heroísmo – são erigidos a partir de um conjunto absolutamente estonteante de enquadramentos e técnicas cinematográficas. 
Já a sequência inicial da primeira parte do filme dá a ver esta ambivalência. A cena em que o menino Napoleão conduz o seu exército à vitória é tomada por uma câmera que surpreende pela liberdade – que passeia pelos atores como se fosse feita de pluma. A ótima edição dupla de Napoleão comercializada pela Coleção Obras Primas do Cinema apresenta, como um dos extras, um documentário dirigido por Brownlow, segundo o qual certas técnicas foram inventadas especialmente para este filme. A isso soma-se a originalidade da montagem, que é dialética, antecipando (ou melhor dizendo, servindo de exemplo a) as reflexões de Eiseinstein a respeito do tema. A montagem não esconde os cortes, como fazia o cinema padrão, mas sim dá-lhes relevo. 
A câmera com que Abel Gance cria a hagiografia de Napoleão Bonaparte nunca é apenas descritiva. Ela busca fazer emergir a combustão social contemporânea ao homem, calcando-o na história. Quando criança, Napoleão, nascido em 1769, vivera sob os estertores do absolutismo. Sua juventude (a partir daí o personagem é interpretado por Albert Dieudonné) coincide com a Revolução, de que ele participou como soldado raso – fomentando-a e visionando os seus desdobramentos. Sua ascensão no exército corre em paralelo à ascensão do poderio francês, do qual, segundo o filme, ele é o arquiteto. 
Segundo esta leitura, é a câmera subjetiva que determina os enquadramentos do filme: os travellings, as panorâmicas, os primeiros planos denunciam a tensão presente. Uma tensão que desliza do futuro monarca ao seu séquito, e exemplo claro disso é a cena em que Josefina, já casada com Napoleão, descobre que ele é objeto de adoração da jovenzinha protegida dele, que vive com o casal: o plano de detalhes do altar bruxuleante que a menina erige ao seu adorado no quarto dela, o corte abrupto que flagra Josefina às costas dela, a descobri-lo, e a movimentação da câmera, a denunciar o desespero da menina, patenteiam a tensão ambiente. 
Dentre os enquadramentos originais propostos por Gance há mesmo uma panorâmica feita por três câmeras, que multiplicam o campo visual do espectador, sonhando o Cinemascope, e que discursivamente denotam a amplitude do olhar de Napoleão, que, da França, enxergava o mundo todo. 
Pelo requinte com que aborda a sétima arte, distendendo os seus limites, o Napoleão visto por Abel Gance é um banquete àqueles que se interessam pela arte. E os amantes do cinema silencioso muito devem a Kevin Brownlow, provavelmente o maior entusiasta deste filme, que por anos lutou para recuperá-lo. O documentário que aborda a obra de Gance, sobre o qual falei acima, foi rodado em 1968. Todavia, o interesse do estudioso nesta obra data ao menos de 20 anos antes – numa entrevista que David Robinson me concedeu em 2016, ele contou-me que um conhecido comum apresentou-o ao então jovenzinho, o qual amealhava rolos de Super-8 com trechos desta obra, os quais ele religiosamente assistia em seu quarto escuro, ao invés de aproveitar o verão londrino. 
Hoje o espectador pode assistir a uma versão excelente de Napoleão, restaurada pelo laboratório Immagine Ritrovata, que procura recuperar as suas cores originais – pois, além da escala de cinza, o cinema daqueles tempos também era feito de cores, graças a técnicas como o tingimento e a viragem – e escoimar a imagem dos sinais do tempo, a exemplo dos riscos ocasionados pelo desgaste da película. A versão recebe o igualmente irretocável acompanhamento musical de Carl Davis, monumental como ela, porém, sem abrir mão de alguns laivos de ironia. Talvez possamos considerar que também o filme navega nesta corrente. Porque na disrupção da linguagem cinematográfica que o estrutura se encontra, talvez, uma piscada de olhos questionadora à hagiografia que ele erige. 
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Rodrigo Vennino, meu querido amigo, amante como eu de cinema – e da história do cinema, muito obrigada por este presente!

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