sexta-feira, 28 de junho de 2024

Em belo programa, OSUSP abordou obras de Salinas e Villa-Lobos


Crítica publicada a 20 de junho de 2024 no site Notas Musicais.

Concerto 15 de junho de 2024 

Anfiteatro Camargo Guarnieri 

Victor Hugo Toro, regência 

Ludmilla Bauerfeldt, soprano 

Quase três quartos de século separam os nascimentos de Heitor Villa-Lobos (1887) e de Horácio Salinas (1951). Embora não tenham convivido, e apesar de cada um deles ter recebido influências musicais distintas, o mesmo éthos heroico preside as obras dos dois compositores abordadas pela Orquestra Sinfônica da USP no último sábado, dia 15 de junho, no Anfiteatro Camargo Guarnieri, situado na Cidade Universitária da USP São Paulo: respectivamente, as suítes Floresta do Amazonas (1958) e Patagônia (2023). A regência foi de Victor Hugo Toro e a soprano Ludmilla Bauerfeldt, convidada especial, realizou os solos da obra de Villa-Lobos. 

O programa teve início com a estreia brasileira da Suíte Patagônia, escrita por Salinas durante a pandemia e estreada no Chile em 2023. Conforme apontou o seu autor na entrevista que concedeu no início de 2022 ao programa La Voz de los que Sobran (https://www.youtube.com/watch?v=71JKWH2o558), a obra é oriunda da emoção que sentiu ao visitar a Patagônia, situada “no fim do Chile e no fim do mundo”. Influenciado fortemente pela música popular do seu país, a sua obra aborda aquele território em que a natureza vicejante prepondera à civilização, evocando as cores, solidões, os gelos milenares e o esquecimento de povos originários como os Kawéskar, exterminados no momento da colonização pelos europeus. Território que é berço e tumba, já lembrara Patricio Guzmán no arrebatador O Botão de Pérola (2015), obra que entrelaça os destinos dos indígenas aos destinos dos prisioneiros políticos da ditadura de Pinochet, ali desovados depois de serem mortos. 

É também o intuito descritivo que preside Floresta do Amazonas, de Villa-Lobos, que a OSUSP apresentou na versão para orquestra reduzida concebida por Abel Rocha em 2021. A obra teve um percurso inusitado, conforme o maestro Victor Hugo Toro lembrou ao público, num comentário curto e informativo antes do princípio da sua execução (esta contextualização, também realizada antes do início da obra de Salinas, é muito bem-vinda, pois colabora para a fruição do público): resultou de um contrato que o poderosíssimo estúdio cinematográfico MGM firmou com Villa-Lobos para que ele criasse a trilha sonora de um filme protagonizado por Anthony Perkins e, sobretudo, por Audrey Hepburn, uma das atrizes mais conhecidas e queridas do mundo naquele momento. Villa teria aceitado a incumbência, todavia, compôs a música antes de assistir ao filme, o que caminha na contracorrente do que se espera de uma trilha sonora cinematográfica. 

O nome de Villa-Lobos, com destaque, nos créditos do filme

 O contrato foi rompido, lembrou o regente, porém Green Mansions (1958), ou A Flor que não Morreu, como viria a ser conhecido no Brasil, informa em seus créditos que teria cabido ao compositor criar “música especial” para a produção – enquanto a trilha sonora e a canção Song of Green Mansions, utilizadas no filme, foram compostas por Bronislau Kaper, com letra de Paul Francis Webster. Além disso, Villa se deixou fotografar, para a publicidade do filme, com Audrey e Mel Ferrer (diretor da obra e marido dela, então). A música de Villa é o grande momento desta película irregular, em que a alva e longilínea Audrey Hepburn interpreta o papel de Rima, uma nativa venezuelana carregada para um recôndito da floresta pelo arrependido ladrão de ouro que, após destruir o vilarejo onde ela vivia quando criança, cria-a como neta. Não falta physique du rôle apenas à atriz, mas também a Sessue Hayakawa, ótimo ator japonês cuja carreira remonta ao cinema silencioso (observe-se, por exemplo, a sua atuação contida em The Cheat, de 1915, algo desusado para a época), e que aqui é escalado para interpretar o cacique da tribo (!) que acaba por invadir os domínios de Rima e matá-la. 

Cena de Green Mansions

Malgrado faça uso de muito material fílmico gravado in loco, entre as fronteiras da Venezuela, da Colômbia e da Guiana Francesa, a obra presta mais tributo ao conto de fadas que ao cinema documental, dialogando com os musicais produzidos pela MGM, o estúdio mais bem reputado para a realização desse gênero fílmico na época. Correndo de pés descalços e vestidinho de chita pelos sendeiros recriados em estúdio na Califórnia, Audrey é menos a nativa sul-americana e mais a fada que lhe havia dado um Tony em 1954 (em Ondine, de Jean Giraudoux), ou a princesa que a havia elevado ao estrelato (com direito a um Oscar) em A princesa e o plebeu (Roman Holiday, 1953). 

O único calcamento de Green Mansions na realidade em que se passa a história, a Amazônia, é dado pela música de Villa-Lobos, que é, no entanto, subutilizada no filme. Marcadamente descritiva, mas apagada neste filme que caminha em sua contracorrente, a obra Floresta do Amazonas encontra melhor expressão no espaço da sala de concerto. E, no sábado passado, ela encontrou um espaço especialmente poderoso de expressão, executada pela OSUSP, sob a batuta de Hugo Toro, e cantada pela nossa deslumbrante Ludmilla Bauerfeldt. 

A escrita de Villa-Lobos recupera não a personagem criada na versão cinematográfica de Green Mansions, mas sim no livro de que o filme é oriundo, no qual a personagem de Rima era uma força da natureza, cuja voz era entendida sobretudo pelos animais da floresta. Como lembra Hugo Toro, a obra de Villa faz usos inusitados de efeitos orquestrais já conhecidos para mimetizar os sons da floresta, dos rios e dos animais, explicitando tanto a força da natureza quanto da música popular do Brasil. 

As canções da suíte demonstram isso de forma cabal. Com poesia de Dora Vasconcellos, bebem tanto da temática quanto da melodia do cancioneiro popular, ampliando os limites do Amazonas para os grandes sertões e para as paragens ribeirinhas (“Quanta tristeza / Ondas do mar / Neste vaivém / Sem me levar / Pois sempre eu fiz / Muita atenção / Em não pisar / Teu coração / Ah!”, em Veleiros), e repisando uma melancolia que é historicamente muito própria desta produção, a qual artistas modernistas, a exemplo de Villa-Lobos, abordaram com deleite. O rol de canções que compõem a suíte já foi interpretado por cantoras relevantes, líricas ou populares, a primeira das quais foi a soprano Bidu Sayão, uma lenda do canto lírico. Tais canções são, por sua natureza, o ponto focal da Floresta do Amazonas

Ludmilla Bauerfeldt, Victor Hugo Toro e a OSUSP 

A carioca Ludmilla Bauerfeldt se revelou uma intérprete potente desta obra. Tecnicamente precisa, além de ótima atriz-cantora, deslizou com segurança e suavidade entre os vocalizes e peças notórias, como a Melodia Sentimental e a Canção do Amor – a qual ela abordou com arrebatadora calidez –, dando relevo à ambivalência da personagem em que a obra originalmente se baseia. Favorecida pela consistência do trabalho da orquestra e pela regência cuidadosa de Victor Hugo Toro, que deu relevo à musicalidade peculiar da obra sem jamais cair no maneirismo, a soprano ofereceu uma interpretação emocionante dos solos da Floresta do Amazonas, demonstrando mais uma vez porque é uma das mais destacadas cantoras brasileiras da atualidade. O público paulistano merece escutá-la por aqui com mais frequência. 

Fotos do concerto: a autora./Fotos do filme: IMDB.

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