sábado, 14 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 4


Dia 4, terça, 10 de outubro 


O programa do quarto dia da Giornate é exclusivamente por “Rivalen” (“The Miracle of Tomorrow”, Harry Piel, 1923), com acompanhamento musical de Gabriel Thibaudeau. 

Segure-se, público, para conhecer Harry Piel agora de corpo e espírito, já que ele não apenas dirige, mas protagoniza o estonteante longa alemão “Rivalen”, segundo de uma trilogia. Aqui, as aventuras das duas primeiras obras apresentadas no primeiro programa voltado ao artista, dois dias atrás, multiplicam-se e ganham estofo simbólico. 

Os contornos da trama são enformados pelo gênero filme de aventura. Aqui, no entanto, o entrecho romântico ganha urgência. Piel mal esconde a associação entre a sua persona cinematográfica e o personagem que desempenha: ele faz o papel de si mesmo, do homem belo, forte e esbelto por quem a arfante jovenzinha Evelyn Evans (Inge Helgard) apaixona-se perdidamente. O pai dela é contra o relacionamento, considerá-lo (vejam-se as semelhanças com “The adventure of a journalist”) um desocupado. Ela, no entanto, o faz entrar furtivamente num baile à fantasia que organizava na residência da família. 

O baile, no qual o filme se centra, é antológico. Um grande salão tem esculpida em seu fundo uma criatura das trevas cujos olhos são duas janelas, e cujas pálpebras são toldos que se abrem e fecham à medida que seus frequentadores querem privacidade. Pelo salão desfilarão convivas vestidos de diabos e demais seres sombrios. Um frenesi preside a filmagem do baile, desde a chegada dos convidados até a entrada de Piel e do Rival do título: cientista inescrupuloso que tenta de tudo para se casar com Evelyn. Um crescendo dramático sucede-se ao deboche inicial, quando o lugar se assemelhava a uma sucursal da Babilônia. 

A ânsia recupera o epíteto de “anos loucos” atribuídos aos anos de 1920. Pouco depois de Piel exibir seus dotes acrobáticos e pedir a mocinha em casamento, um robô – o primeiro jamais presente num longa-metragem, segundo Jay Weissberg, diretor da Giornate – adentrará pela bocarra da criatura esculpida nos fundos do salão de festas e submeterá o pai da mocinha. Neste meio tempo, um dos pouquíssimos exemplos de sororidade que jamais vi no cinema desta época aparece na pele de Julieta Carnera (Maria Wefers), amante do “Rival”, que principia adentrando a festa para persegui-lo e acaba ajudando Evelyn a se safar. O nome e o tipo hispânico da jovem são mimetizados, pelo compositor Gabriel Thibaudeau, por um tango, no primeiro momento em que ela surge em cena, num trem, no princípio da obra – esse contorno meio étnico, meio cômico presidirá as suas entradas, que tanto darão leveza à história quanto sublinharão o caráter assertivo da jovem. 

Julieta troca de lugar com Evelyn, e é sequestrada pelo próprio amante. Sem se dar conta da troca, Piel segue-os. Os signos da técnica, que visitaram os filmes rodados por ele uma década antes, multiplicam-se aqui, dentre os quais a cápsula de vidro onde ele ficará preso pelos criminosos, a qual será mergulhada no mar (a cena em que os comparsas do vilão param de bombear oxigênio para dentro da cápsula, e o ar vai rareando, são efetivamente agônicas). 

 Nessas alturas, Evelyn já viera de descobrir o destino do amado, e já aceitara casar-se com o “Rival” para salvá-lo. Uma montagem paralela ilustra, de um lado, o esforço de Piel para resgatá-la, depois de se desvencilhar da arapuca, e do outro, o sofrimento dela pelo destino que a esperava. Há um equilíbrio muito bom, aqui, entre a ânsia e o sofrimento, os fortes e os pianos, que se alternam para um final surpreendentemente infeliz, considerando-se a cinematografia da época e especialmente este gênero de filmes: Piel chega a salvar a jovem, mas não impede o casamento – o desfecho da história o público, já então cativado pelas personagens, não conhecerá, já que ele se desenrolará apenas na terceira e última obra da trilogia.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 3


Dia 3, segunda, 9 de outubro 


Os programas nos dias de semana, na versão online da Giornate, são únicos. O exibido neste terceiro dia do evento é composto por “La Madre” (Giuseppe Sterni, IT, 1917), com pouco menos de uma hora de duração. Precedem-no uma joia rara, o trecho de “La vita e la morte” (Mario Caserini, IT, 1917), protagonizado pela diva italiana Leda Gys, e pelo curta promocional “Italia Vitaliani visita il regista Giuseppe Sterni per discutere del suo ruolo in la madre” (IT, 1917). O acompanhamento musical é de Stephen Horne. 

A primeira obra do programa é o que sobrou de “La vita e la morte”. Sempre que flagro esses pedaços de passado que se salvaram da ruína vem-me à boca um gosto agridoce. Este é um clássico filme de diva daquela época. Gys é a etérea Leda de Belleville, dama que, casada com um magistrado, vive um affair com outro homem. Ao ir encontrá-lo, durante uma viagem de barco, ela acidenta-se. É colhida por um casal de pescadores inescrupulosos, que se aproveitam do fato de ela ter ficado desmemoriada. Nessas alturas, o piano plangente de Stephen Horne é substituído pela gaita e pela flauta, que dão sabor popular e bucólico às cenas no reduto dos pescadores. 

Neste meio tempo, o marido, que sofre, descobre a traição. A mulher deixa uma filha pequenina, que dolorosamente vai deitar flores no túmulo da mãe, o oceano. O programa da Giornate narra o que se perdeu da obra: a dama envolve-se nas atividades criminosas do casal que a resgata, fato que o marido descobre ao presidir o júri no julgamento do grupo – literalmente morrendo de susto ao se dar conta de que a mulher que ele julgava morta ainda vivia. Um enredo escalafobético que, como tantos daqueles tempos, vale menos pelo que conta do que pela forma como constrói essas personas que são maiores que a vida. A obra está preservada pelo Eye Filmmuseum, onde também se encontram as demais do programa. 

O próximo filme, cuja tradução literal livre é “Italia Vitaliani visita o diretor Giuseppe Sterni para discutir seu papel em La Madre, faz jus ao título; é uma peça de divulgação do filme. Apesar de procurar se vender como um filme de atualidade, não engana que é posado – Vitaliani, a protagonista de “La Madre”, abre a cortina teatral que vai dar na sala do diretor, cuja cadeira está colocada num conveniente enquadramento frontal. Ela faz volteios e senta-se dramaticamente enquanto Sterni supostamente lhe apresenta o papel que ela desempenhará. 

A canastrice do conjunto mal nos prepara para “La Madre”, em que Vitaliani deixa clara a sua estirpe: ela era prima de Eleonora Duse, atriz teatral idolatrada por um dramaturgo exigente como George Bernard Shaw pela naturalidade que imprimia ao repertório (sobretudo realista) que representava. Como Duse (que para o cinema lamentavelmente apenas fez um filme, “Cenere”, de 1916), Vitaliani é adepta dessa aproximação despida e moderna aos papéis que representa. Nesta obra, ela, que então contava com cerca de 50 anos, não se incomoda de se parecer 20 anos mais velha para representar o papel-título. Ela é a mãe do pintor Emanuele (Giuseppe Sterne, também o diretor da obra). 

O rapaz é construído como um meninão. É um pintor com muito talento e pouco tutano. Caberá à mãe salvá-lo de uma femme fatale típica quando ele viaja do vilarejo onde moram até a capital, para aprimorar a sua técnica. A mãe torna-se a sua fonte primordial de inspiração, já que ele tem o seu talento descoberto por meio de um quadro que a tematiza. É nos braços dela que ele se joga depois que a cidade que o viu partir como um anônimo recebe-o como herói. Ela, que esconde uma doença grave, morrerá pouco depois. A cena que fecha a obra flagra o jovem ajoelhado diante do anjo, encomendando a alma da progenitora. 

A mãe não tem nome, funciona como símbolo. Esta obra recupera um cânone do gênero melodramático: a associação da personagem materna com a virgem Maria, a Mater Dolorosa, ao mesmo tempo em que a jovem que procura desencaminhar o jovem é uma espécie de Dalila. O cinema atrelava, então, a mítica do estrelismo aos mitos ocidentais. Se a narrativa é convencional, vale sobretudo pelo trabalho sólido desempenhado por Italia Vitaliani, uma bela atriz que eu acabo de conhecer. 

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 2


Dia 2, domingo, 8 de outubro 


Domingo foi dia de outro programa duplo, composto por obras alemãs: o primeiro dedicado ao diretor e astro Harry Piel, centrado nos filmes “Das abenteuer eines journalisten” (“The adventure of a journalist”, 1914) e “Das Rollende hotel” (algo como “O hotel sobre rodas”, 1918), ambos dirigidos por ele, com acompanhamento musical de José María Serralde Ruiz. Já o segundo programa centrou-se no longa-metragem “Der Berg des Schicksals” (“Mountain of Destiny”, Arnold Fanck, 1924), com acompanhamento musical de Mauro Colombis. 

Piel é para mim uma das descobertas desta Giornate. Embora Jay Weissberg comente que certo jornal recifense apontou o artista como um dos preferidos do público, eu não me lembro de ter passado por ele em minhas pesquisas. Atualização em 15/10 graças à pesquisa de Luciana Araújo: a 16 de abril de 1922, o Jornal do Recife publica uma pesquisa sobre as preferências dos espectadores, segundo a qual Piel constava na lista dos mais simpáticos:

Este é o primeiro de dois programas centrados no artista, a serem exibidos na versão online da Giornate. Nesses filmes, embora ele desempenhe o papel exclusivo de diretor, observam-se características semelhantes àquelas presentes nas obras que ele protagoniza. São filmes de aventura, no estilo dos seriados protagonizados por Pearl White, apesar de mais longos (cada um tem cerca de 50’ de duração). 

O primeiro deles foi lançado, segundo o programa da Giornate, pouco mais de uma semana antes do assassinato do arquiduque Franz Ferdinand em Sarajevo, fato que desencadeou a Primeira Grande Guerra. Foi, ademais, vendido como uma obra que tematizava o desenvolvimento técnico, sejam os carros velozes, seja a explosão remota de minas submarinas – pouco depois, a violência vendida como produto da indústria do entretenimento desdobrar-se-ia real naqueles mesmos sítios. 

O contexto aqui não é de reflexão sobre os abismos em que nos lança a técnica. Em voga está o deleite do público que acompanha a história do jornalista Harrison (Ludwig Trautmann), e sua impossibilidade de viver a paixão que nutre pela filha de um importante cientista, pois o homem julga-o um ocioso, impossibilitado, portanto, de sustentá-la. 

O entrecho amoroso serve de desculpa para o desenvolvimento da trama. O pai da mocinha tinha um rival, também cientista, o qual, para ter tempo hábil de apresentar ao governo o seu dispositivo remoto de explosão, sequestra-o. Para salvar o sogro e, enfim, provar-se merecedor da mão da mocinha, Harrison protagoniza uma perseguição ferrenha dos comparsas do cientista, e enfrentará mil perigos (como, por exemplo, um salto de paraquedas). 

Há frenesi no cinema de Piel. Veja-se, neste sentido, a cena de perseguição no (impressionante) metrô suspenso de Schwebebahn: os cortes rápidos e os primeiros planos angustiantes imprimem uma visada à modernidade que não é só de flerte, também é de temor. 

Já “Das Rollende hotel” é um road movie centrado na impossibilidade de a jovenzinha casadoira Addy (a adorável Kâthe Haack) se unir com o rapaz que ela ama, pois seu tutor deseja casá-la com um velhote a quem ele deve dinheiro tão logo ela complete a maioridade. Malgrado seja o provocador da trama, o rapaz é um mero coadjuvante dela. No centro da história estão, além de Addy, o amigo dele, Joe Deebs (o elegantíssimo Heinrich Schroth) – o responsável por salvar a jovem do destino sombrio que a esperava, abrigando-a, nos dias derradeiros antes de sua maioridade, no tal hotel sobre rodas do título. Há ainda o impagável Alfred Delbosq, no papel do detetive Sharf, que a todo custo tenta recuperar a jovem para devolvê-la ao tutor. 

O enredo rocambolesco serve de desculpa para um passeio turístico pelos sítios os mais diversos, dos Alpes bávaros – onde o galante cicerone de Addy mostrará sua destreza, salvando-a ao carregá-la temerariamente por sobre os fios do teleférico que ainda estava para ser instalado – aos hotéis frequentados pela alta goma europeia. O cinema é, neste filme, uma viagem sem sair do lugar, em que o espectador é passageiro que viaja em primeira classe. E para estender tal viagem, à medida que seguem, Deebs vai deixando pistas ao detetive, até que o homem vai finalmente flagrar o casal no vagão de um trem, enquanto os pombinhos se casam. 

“Mountain of Destiny”, o longa apresentado no segundo programa do dia, também persegue esta faceta histórica do cinema, de exploração dos cantos mais recônditos do mundo. A obra impressiona pela ousadia com que o seu diretor (também o fotógrafo, roteiriza, editor e produtor, segundo o programa da Giornate), desincumbe-se da tarefa de filmar as Dolomitas, cadeia montanhosa nos Alpes orientais, no norte da Itália. 

O espaço exerce presença preponderante na obra baseada na história de Carlo Garbari, que pereceu ao tentar escalar a Guglia di Brenta, uma dessas montanhas. Um conjunto de imagens do espaço portentoso abre o filme, e elas serão repisadas como leitmotiv, denotando a pequenez humana frente à majestade da natureza. 

A fotografia é um dos pontos altos de “Mountain of Destiny”. A obra divide-se entre mostrar (longamente, mas com um firme pulso dramático) os esforços de “Carbarie” para vencer a “Guglia”, em vão, e a recusa do filho dele de encarar a montanha que ceifara a vida do pai. O contraponto do pai e do filho aventureiros são a esposa dele (e mãe do menino), a excelente e contida Erna Morena, e a mãe dele, Frida Richard. 

Uma palpitante montagem paralela toma o filho pequeno escalando a chaminé da casa enquanto o pai tenta, em vão, vencer a montanha. É a mulher dele que, trêmula, terá a sensação de sua morte. Décadas mais tarde, caberá ao filho dobrar a até então inexpugnável Guglia, casualmente, já que a escala para salvar a namorada, que tenta escalá-la depois de acusá-lo de covardia (passemos ao largo da portentosa cena final, da jovem ajoelhada humildemente aos pés do moço, num plano geral tendo ao fundo a imensidão branca, pois ela é fruto de seu tempo...).

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 - Dia 1

Dia 1, sábado, 7 de outubro

Ao menos uma vez por ano ressuscito este blog para comentar a Giornate del Cinema Muto, amor maior desde que nela estive em 2015 (o leitor de primeira viagem pode encontrar por aqui textos sobre várias de suas edições). Em 2020, com a pandemia, o evento tornou-se online. Desde 2021, tornou-se novamente presencial, exibindo, no entanto, uma seleta de filmes em sua edição online, ao longo dos mesmos oito dias em que se ocorre a sua versão oficial – os deuses do cinema não abandonam os seus duros e atribulados amantes. 
Meus sentimentos quando acompanho o evento são sempre agridoces. Pessoalmente, repiso a cidade lembrando-me de quando a descobri pela primeira vez. Em casa e diante do computador, fecho os olhos e viajo sentimentalmente por ela; sinto os cheiros da feira, o gosto do inesquecível chocolate quente da Peratoner, com o qual me encontrava entre uma sessão e outra... 
Mas vamos aos filmes. 

Sábado foi dia de uma sessão dupla: seis curtas que compõem o programa “Slapstick Shorts: Transatlantic Echoes”, rodados entre os Estados Unidos e a Europa de 1909 a 1920, e o western “The Fox”, de Robert Thornby (EUA, 1921). 
Jay Weissberg, diretor da Giornate, destaca, no vídeo de apresentação da seleta de curtas, as influências conjuntas estabelecidas entre filmes europeus e norte-americanos, no que diz respeito à linguagem e ao tema. Tomando o recorte temporal – que atravessa, grosso modo, do primeiro cinema ao cinema clássico –, é interessante observarmos o burilamento desses elementos. 
“Le torchon brûle ou une querelle de ménage” (Roméo Bosetti, FR, 1911), é um desses filmes do primeiro cinema que daria trabalho à “máquina de fazer barulho” vendida pelos Ferrez no Brasil na primeira década de 1900, tal a necessidade de sons incidentais que ele demanda (o admirável acompanhamento musical deste programa foi de Daan Van Den Hurk). Encena a briga de um casal, que se inicia no apartamento onde moram e se estende pelas suas escadarias e pelas ruas da cidade – por onde eles rolam enquanto se destroçam, desafiando até mesmo as leis da gravidade, já que chegam a rolar pelo chão mesmo escada acima... Esse looping nada deve aos brinquedos exibidos e comercializados no pré-cinema, como o zootrópio e o praxinoscópio – memento do primeiro cinema aos aparatos que o sonharam. 
“At Coney Island” (US, Mack Sennett, 1912) traz como entrecho a traição. Uma jovenzinha disputada por dois homens acaba por escolher um pai de família, que, para segui-la, abandona ao deus dará, no parque, a esposa e os filhos pequenos. A tópica é cara ao cinema e ao teatro da época: os parques de diversão são espaços abertos ao mascaramento, à fuga da realidade. É ali que o burguês rotundo (ele e todos os demais são personagens-tipo) encontrará escape do casamento insosso e dos filhos aborrecidos. No desfecho da história, a partida é sinalizada com o abandono da máscara – a jovem volta à dupla de rapazes que a disputa e o marido, à família. 
“Cretinetti che bello!” (algo como “Bonito, hein!”, IT, 1909) é protagonizado por uma estrela de cinema na primeira década de 1900, André Deed, personagem de uma série de filmes da Itala que fariam invulgar sucesso pelo mundo – no Brasil, “Cretinetti” tem um apelido mais carinhoso que na Itália, é “Did”. A disrupção, presente em porção considerável do cinema de atrações, e que é tópica também no destrutivo “Le torchon brûle ou une querelle de ménage”, preside esta história. “Cretinetti” – fraque e sapatos pontudos, um pré-Chaplin, não fosse pela cara de tolo – recebe um convite de casamento. Ele se traja, maquia-se com laudas quantidades de pó-de-arroz e, ato contínuo, vemo-lo pelas ruas da cidade, perseguido por todas as mulheres com quem cruza, as quais acabam por literalmente destroçá-lo. Graças a uma trucagem cinematográfica, no entanto, o seu corpo lacerado ganha novamente vida. 
“Rudi Sportman” (Emil Artur Longen, Império Austro-Húngaro, 1911) tem como protagonista um Peeping Tom, ou um futriqueiro, criatura que visita o cinema desde os seus primórdios – já que o cinema é, ele mesmo, um olhar pelo buraco da fechadura, um espreitar da intimidade alheia. A gramática do filme de perseguição preside esta história. Rudi segue no encalço da jovem por quem ele se enamora até que a encontrará numa piscina pública, disfarçando-se de mulher para se aproximar dela. Será descoberto, pagando pela curiosidade. 
“En Sølvbryllupsdag” (Lau Lauritzen, “The Silver Weeding”, DK, 1920) flagra um casal cujo idílio amoroso de comemoração dos 25 anos de casamento dura apenas até o primeiro beijo matutino. As reprimendas começam a ser cuspidas na cama. Ela parte pouco antes da chegada do advogado que dará ao casal uma grossa soma de dinheiro, contanto que ambos demonstrassem ser uma família verdadeiramente feliz. Ele a segue por toda a cidade, deixando o advogado com uma garrafa de bebida que o homem, a princípio resistente, terminará por secar – e se transformará em outro tipo ao fazê-lo. O casal acaba por se reencontrar no pé da escada, reconciliando-se em detrimento de qualquer herança – como devem ter feito incontáveis vezes, para que resistissem 25 anos casados. Para além da boa concepção de tipos, a comédia é preciosa – para mim ao menos – porque flagra o uso de duas camas contíguas de solteiro no quarto do casal, que se transformaria em praxe no cinema norte-americano a partir dos anos de 1930, por outro motivo (como comentei num dos primeiros artigos deste blog, quase 15 anos atrás). 
Por fim, uma obra-prima: “From hand to mouth” (Alfred Goulding, EUA 1919), protagonizada por Harold Lloyd, Mildren Davis e pela adorável atriz-mirim Peggy Cartwright. A história é singela: o “moço” sem nome tem fome, assim como a garotinha; a “moça” também sem nome está prestes a perder uma herança para um advogado corrupto. São dois tipos sociais cujos destinos se cruzarão. 
Antes disso, no entanto, algumas das cenas mais graciosas jamais compostas pela arte do silêncio se desenrolarão. Ele para diante de um restaurante, dependura um guardanapo no colarinho e chupa com fineza o osso que tira do bolso do paletó. Pouco depois, junta-se a ele a pequena Peggy Cartwright e seu cachorro manco, que mimetiza cada passo e gesto dela. O filme abre-se tanto aos sorrisos de canto de boca quanto às gargalhadas, já que casualmente o rapaz torna-se membro da gangue que sequestrará a jovem. Perseguindo-os, ajuntará a polícia por meio do expediente o mais amalucado que se pode imaginar – a história é uma screwball comedy avant la lettre, imperdível, que aconselho os leitores a procurar (lamentavelmente a programação da Giornate fica disponível por apenas 48 horas depois de lançada).
 
O segundo programa de sábado é “The Fox” (1921), western da Universal dirigido por Robert Thornby e protagonizado por Harry Carey, com acompanhamento musical de Philip Carli. Carey é Santa Fe, “homem misterioso”, como diz o letreiro, que chega maltrapilho numa cidadezinha perdida no Oeste norte-americano. Na cidade a lei claudica, pouco podendo o velho xerife George Nichols contra a gangue dos “Painted Cliffs”, que a aterroriza. 
Santa Fe, homem de meia-idade, passa desapercebido ao chegar. Preso em meio a uma briga, confunde certo menininho espoliado por um comerciante local com a sua trouxa de roupas, carregando-o dali. O garoto – George Cooper – é uma versão masculina da adorável garotinha de “From hand to mouth”, também abandonado e maltrapilho. Santa Fe o adota, carregando-o consigo mesmo para a cadeia, onde acaba preso envolvido casualmente noutro litígio. Uma das filhas do xerife cai de amores por ele. Por obra do homem, Santa Fe acaba indo trabalhar no banco do povoado, contratado como funcionário. 
Pego bisbilhotando, é expulso do local. A essas alturas, o público já se deu conta de que o maltrapilho misterioso não era quem aparentava ser. Efetivamente, ele trabalhava no Tesouro Nacional, ofício sem poesia, não fosse ele também um cowboy proverbial, à la John Wayne, que se embrenha na aridez montanhosa no meio de um vendaval para salvar o xerife, o filho de uma viúva desprovida e, enfim, para encontrar o esconderijo da gangue dos “Painted Cliffs” e desmascarar o seu chefe – que era não outro senão o dono do banco (como corresponde...). 
Tiros, correrias, poeira. Todos os elementos que dão textura ao western daqueles tempos estão aí dispostos, com direito até a um idílio romântico entre o cowboy nem-tão-durão-assim e a filha do xerife – aliás, o primeiro encontro de ambos, com o gesto tímido de Santa Fe de limpar a mão na roupa antes de tocar a mão da jovem, é de uma contenção plenamente sustentada ainda hoje, passado mais de 100 anos da rodagem da película.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

O talento de Isabel Leonard passou por São Paulo


O cancelamento da letã Elīna Garanča, programada como o primeiro espetáculo vocal da temporada do Mozarteum deste ano, nos ofereceu a oportunidade de conhecer o trabalho da mezzo-soprano norte-americana Isabel Leonard, que em março deste ano apresentou-se pela primeira vez no Brasil em Curitiba, num espetáculo em comemoração ao aniversário da cidade. 

Menos conhecida das plateias brasileiras que a colega, Leonard tem uma carreira respeitável nos palcos da América do Norte e da Europa, nos quais ela interpretou papéis notórios do repertório de mezzo-soprano sobretudo leggero, que tão bem se encaixam à sua voz e ao seu físico lépido, a exemplo da Rosina, de “Il Barbieri di Siviglia” (de Gioachino Rossini), e de Cherubino, de “Le Nozze di Figaro” (de Wolfgang Amadeus Mozart). Trata-se, no entanto, de uma artista versátil, já que coube a ela dar corpo, no MET, à perturbada Marnie, na estreia mundial da ópera homônima com música de Nico Muhly e libreto de Nicholas Wright, baseada no romance de Winston Graham (o mesmo que originou o clássico de Hitchcock, de 1964) – e ela o fez otimamente bem, tanto do ponto de vista vocal quanto cênico. Trata-se, portanto, de uma artista que merecia ser conhecida pelo público paulistano. 

Para o concerto programado na Sala São Paulo em 27 de junho, Isabel Leonard escolheu um repertório que passeou pela sua carreira: de Rossini e Mozart a Bizet (“Carmen”) e Massenet (a Charlotte de “Werther”). Passou também pelo espanhol Manuel de Falla (“Sete canções populares espanholas”) e pelo mexicano (“Granada”). 

Acompanhando-a estava a Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileira, conduzida com um misto de energia e finesse pelo maestro norte-americano Constantine Orbelian. A orquestra teve a sua melhor performance dos últimos anos, julgo eu – sublinhamos, trata-se de uma orquestra acadêmica, composta por uma parcela de estudantes, além dos cachezistas profissionais, daí a ser destacável que ela tenha conseguido verdadeiramente protagonizar nalguns momentos puramente orquestrais, como o “Bacchanale” de Camille Saint-Saëns e “La Boda de Luis Alonso”, de Gerónimo Giménez. 

Os temas orquestrais foram escolhidos considerando-se o repertório que seria apresentado por Garanča, daí o descompasso existente nalguns momentos entre ele e os números cantados. O próprio “Bacchanale”, por exemplo, introduziria as árias de “Sansom et Dalila” que seriam cantadas pela mezzo letã. Mantido neste concerto, provavelmente devido às dificuldades da orquestra de ensaiar outro tema, serviram de introdução estranha da dramática “Air des lettres”, tour de force da ópera “Werther” cantado deslumbrantemente bem por Leonard, num dos pontos altos da noite. ´

O espetáculo ocorreu em curva ascendente. Leonard começou a se adonar do público da Sala São Paulo ao longo das árias de Mozart, dominando-o ao abordar, com penetração, graça e dicção perfeita (o que foi, aliás, uma constante nos números em espanhol, francês e italiano que cantou), as “Sete canções populares espanholas” de Falla. 

A segunda parte do programa foi especialmente interessante. Além da já mencionada ária de Charlotte, desta obra-prima de Massenet que é “Werther”, a mezzo abordou dois temas de “Carmen”, repertório par excellence de mezzo-sopranos: a “Habanera” e a “Seguidilla”. 

Como “Sansão e Dalila”, “Carmen” é uma ópera complicada: escritas ambas num período em que o tipo da femme fatale estava consolidado, apresentam duas mulheres astutas, que manipulam os homens que as amam – culpa da moral machista da época. “Carmen”, além de tudo, é sexualmente livre, o que era motivo de terror por parte dos homens pregressos – ainda hoje o é. Embora o texto dessas óperas flerte com o contexto histórico em que nasceram, a sua música maravilhosa o transcende. Portanto, como interpretar esses papéis hoje? Isabel Leonard escolheu uma forma comedida, procurando escoimar a interpretação vocal e cênica dos lastros vampirescos – e, portanto, dos laivos machistas – que deram origem ao papel. Fez um trabalho bastante bonito, sobretudo com a “Seguidilla”, ária que traz um tanto da lepidez que já é própria da cantora. 

O concerto foi fechado por dois bises, “Somewhere”, de “West Side Story” (de Leonard Bernstein) e “Tu n’est pas beau”, a ária da bêbada da ópera bufa de Jacques Offenbach “La Perichole”, que ela fez com uma graça ímpar. Foi um belo concerto. Que venham outros, para que possamos conhecer melhor esta artista tão talentosa.