Domingo foi dia de outro programa duplo, composto por obras alemãs: o primeiro dedicado ao diretor e astro Harry Piel, centrado nos filmes “Das abenteuer eines journalisten” (“The adventure of a journalist”, 1914) e “Das Rollende hotel” (algo como “O hotel sobre rodas”, 1918), ambos dirigidos por ele, com acompanhamento musical de José María Serralde Ruiz. Já o segundo programa centrou-se no longa-metragem “Der Berg des Schicksals” (“Mountain of Destiny”, Arnold Fanck, 1924), com acompanhamento musical de Mauro Colombis.
Piel é para mim uma das descobertas desta Giornate. Embora Jay Weissberg comente que certo jornal recifense apontou o artista como um dos preferidos do público, eu não me lembro de ter passado por ele em minhas pesquisas. Atualização em 15/10 graças à pesquisa de Luciana Araújo: a 16 de abril de 1922, o Jornal do Recife publica uma pesquisa sobre as preferências dos espectadores, segundo a qual Piel constava na lista dos mais simpáticos:
Este é o primeiro de dois programas centrados no artista, a serem exibidos na versão online da Giornate. Nesses filmes, embora ele desempenhe o papel exclusivo de diretor, observam-se características semelhantes àquelas presentes nas obras que ele protagoniza. São filmes de aventura, no estilo dos seriados protagonizados por Pearl White, apesar de mais longos (cada um tem cerca de 50’ de duração).
O primeiro deles foi lançado, segundo o programa da Giornate, pouco mais de uma semana antes do assassinato do arquiduque Franz Ferdinand em Sarajevo, fato que desencadeou a Primeira Grande Guerra. Foi, ademais, vendido como uma obra que tematizava o desenvolvimento técnico, sejam os carros velozes, seja a explosão remota de minas submarinas – pouco depois, a violência vendida como produto da indústria do entretenimento desdobrar-se-ia real naqueles mesmos sítios.
O contexto aqui não é de reflexão sobre os abismos em que nos lança a técnica. Em voga está o deleite do público que acompanha a história do jornalista Harrison (Ludwig Trautmann), e sua impossibilidade de viver a paixão que nutre pela filha de um importante cientista, pois o homem julga-o um ocioso, impossibilitado, portanto, de sustentá-la.
O entrecho amoroso serve de desculpa para o desenvolvimento da trama. O pai da mocinha tinha um rival, também cientista, o qual, para ter tempo hábil de apresentar ao governo o seu dispositivo remoto de explosão, sequestra-o. Para salvar o sogro e, enfim, provar-se merecedor da mão da mocinha, Harrison protagoniza uma perseguição ferrenha dos comparsas do cientista, e enfrentará mil perigos (como, por exemplo, um salto de paraquedas).
Há frenesi no cinema de Piel. Veja-se, neste sentido, a cena de perseguição no (impressionante) metrô suspenso de Schwebebahn: os cortes rápidos e os primeiros planos angustiantes imprimem uma visada à modernidade que não é só de flerte, também é de temor.
Já “Das Rollende hotel” é um road movie centrado na impossibilidade de a jovenzinha casadoira Addy (a adorável Kâthe Haack) se unir com o rapaz que ela ama, pois seu tutor deseja casá-la com um velhote a quem ele deve dinheiro tão logo ela complete a maioridade. Malgrado seja o provocador da trama, o rapaz é um mero coadjuvante dela. No centro da história estão, além de Addy, o amigo dele, Joe Deebs (o elegantíssimo Heinrich Schroth) – o responsável por salvar a jovem do destino sombrio que a esperava, abrigando-a, nos dias derradeiros antes de sua maioridade, no tal hotel sobre rodas do título. Há ainda o impagável Alfred Delbosq, no papel do detetive Sharf, que a todo custo tenta recuperar a jovem para devolvê-la ao tutor.
O enredo rocambolesco serve de desculpa para um passeio turístico pelos sítios os mais diversos, dos Alpes bávaros – onde o galante cicerone de Addy mostrará sua destreza, salvando-a ao carregá-la temerariamente por sobre os fios do teleférico que ainda estava para ser instalado – aos hotéis frequentados pela alta goma europeia. O cinema é, neste filme, uma viagem sem sair do lugar, em que o espectador é passageiro que viaja em primeira classe. E para estender tal viagem, à medida que seguem, Deebs vai deixando pistas ao detetive, até que o homem vai finalmente flagrar o casal no vagão de um trem, enquanto os pombinhos se casam.
“Mountain of Destiny”, o longa apresentado no segundo programa do dia, também persegue esta faceta histórica do cinema, de exploração dos cantos mais recônditos do mundo. A obra impressiona pela ousadia com que o seu diretor (também o fotógrafo, roteiriza, editor e produtor, segundo o programa da Giornate), desincumbe-se da tarefa de filmar as Dolomitas, cadeia montanhosa nos Alpes orientais, no norte da Itália.
O espaço exerce presença preponderante na obra baseada na história de Carlo Garbari, que pereceu ao tentar escalar a Guglia di Brenta, uma dessas montanhas. Um conjunto de imagens do espaço portentoso abre o filme, e elas serão repisadas como leitmotiv, denotando a pequenez humana frente à majestade da natureza.
A fotografia é um dos pontos altos de “Mountain of Destiny”. A obra divide-se entre mostrar (longamente, mas com um firme pulso dramático) os esforços de “Carbarie” para vencer a “Guglia”, em vão, e a recusa do filho dele de encarar a montanha que ceifara a vida do pai. O contraponto do pai e do filho aventureiros são a esposa dele (e mãe do menino), a excelente e contida Erna Morena, e a mãe dele, Frida Richard.
Uma palpitante montagem paralela toma o filho pequeno escalando a chaminé da casa enquanto o pai tenta, em vão, vencer a montanha. É a mulher dele que, trêmula, terá a sensação de sua morte. Décadas mais tarde, caberá ao filho dobrar a até então inexpugnável Guglia, casualmente, já que a escala para salvar a namorada, que tenta escalá-la depois de acusá-lo de covardia (passemos ao largo da portentosa cena final, da jovem ajoelhada humildemente aos pés do moço, num plano geral tendo ao fundo a imensidão branca, pois ela é fruto de seu tempo...).
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