Ao menos uma vez por ano ressuscito este blog para comentar a Giornate del Cinema Muto, amor maior desde que nela estive em 2015 (o leitor de primeira viagem pode encontrar por aqui textos sobre várias de suas edições). Em 2020, com a pandemia, o evento tornou-se online. Desde 2021, tornou-se novamente presencial, exibindo, no entanto, uma seleta de filmes em sua edição online, ao longo dos mesmos oito dias em que se ocorre a sua versão oficial – os deuses do cinema não abandonam os seus duros e atribulados amantes.
Meus sentimentos quando acompanho o evento são sempre agridoces. Pessoalmente, repiso a cidade lembrando-me de quando a descobri pela primeira vez. Em casa e diante do computador, fecho os olhos e viajo sentimentalmente por ela; sinto os cheiros da feira, o gosto do inesquecível chocolate quente da Peratoner, com o qual me encontrava entre uma sessão e outra...
Mas vamos aos filmes.
Sábado foi dia de uma sessão dupla: seis curtas que compõem o programa “Slapstick Shorts: Transatlantic Echoes”, rodados entre os Estados Unidos e a Europa de 1909 a 1920, e o western “The Fox”, de Robert Thornby (EUA, 1921).
Jay Weissberg, diretor da Giornate, destaca, no vídeo de apresentação da seleta de curtas, as influências conjuntas estabelecidas entre filmes europeus e norte-americanos, no que diz respeito à linguagem e ao tema. Tomando o recorte temporal – que atravessa, grosso modo, do primeiro cinema ao cinema clássico –, é interessante observarmos o burilamento desses elementos.
“Le torchon brûle ou une querelle de ménage” (Roméo Bosetti, FR, 1911), é um desses filmes do primeiro cinema que daria trabalho à “máquina de fazer barulho” vendida pelos Ferrez no Brasil na primeira década de 1900, tal a necessidade de sons incidentais que ele demanda (o admirável acompanhamento musical deste programa foi de Daan Van Den Hurk). Encena a briga de um casal, que se inicia no apartamento onde moram e se estende pelas suas escadarias e pelas ruas da cidade – por onde eles rolam enquanto se destroçam, desafiando até mesmo as leis da gravidade, já que chegam a rolar pelo chão mesmo escada acima... Esse looping nada deve aos brinquedos exibidos e comercializados no pré-cinema, como o zootrópio e o praxinoscópio – memento do primeiro cinema aos aparatos que o sonharam.
“At Coney Island” (US, Mack Sennett, 1912) traz como entrecho a traição. Uma jovenzinha disputada por dois homens acaba por escolher um pai de família, que, para segui-la, abandona ao deus dará, no parque, a esposa e os filhos pequenos. A tópica é cara ao cinema e ao teatro da época: os parques de diversão são espaços abertos ao mascaramento, à fuga da realidade. É ali que o burguês rotundo (ele e todos os demais são personagens-tipo) encontrará escape do casamento insosso e dos filhos aborrecidos. No desfecho da história, a partida é sinalizada com o abandono da máscara – a jovem volta à dupla de rapazes que a disputa e o marido, à família.
“Cretinetti che bello!” (algo como “Bonito, hein!”, IT, 1909) é protagonizado por uma estrela de cinema na primeira década de 1900, André Deed, personagem de uma série de filmes da Itala que fariam invulgar sucesso pelo mundo – no Brasil, “Cretinetti” tem um apelido mais carinhoso que na Itália, é “Did”. A disrupção, presente em porção considerável do cinema de atrações, e que é tópica também no destrutivo “Le torchon brûle ou une querelle de ménage”, preside esta história. “Cretinetti” – fraque e sapatos pontudos, um pré-Chaplin, não fosse pela cara de tolo – recebe um convite de casamento. Ele se traja, maquia-se com laudas quantidades de pó-de-arroz e, ato contínuo, vemo-lo pelas ruas da cidade, perseguido por todas as mulheres com quem cruza, as quais acabam por literalmente destroçá-lo. Graças a uma trucagem cinematográfica, no entanto, o seu corpo lacerado ganha novamente vida.
“Rudi Sportman” (Emil Artur Longen, Império Austro-Húngaro, 1911) tem como protagonista um Peeping Tom, ou um futriqueiro, criatura que visita o cinema desde os seus primórdios – já que o cinema é, ele mesmo, um olhar pelo buraco da fechadura, um espreitar da intimidade alheia. A gramática do filme de perseguição preside esta história. Rudi segue no encalço da jovem por quem ele se enamora até que a encontrará numa piscina pública, disfarçando-se de mulher para se aproximar dela. Será descoberto, pagando pela curiosidade.
“En Sølvbryllupsdag” (Lau Lauritzen, “The Silver Weeding”, DK, 1920) flagra um casal cujo idílio amoroso de comemoração dos 25 anos de casamento dura apenas até o primeiro beijo matutino. As reprimendas começam a ser cuspidas na cama. Ela parte pouco antes da chegada do advogado que dará ao casal uma grossa soma de dinheiro, contanto que ambos demonstrassem ser uma família verdadeiramente feliz. Ele a segue por toda a cidade, deixando o advogado com uma garrafa de bebida que o homem, a princípio resistente, terminará por secar – e se transformará em outro tipo ao fazê-lo. O casal acaba por se reencontrar no pé da escada, reconciliando-se em detrimento de qualquer herança – como devem ter feito incontáveis vezes, para que resistissem 25 anos casados. Para além da boa concepção de tipos, a comédia é preciosa – para mim ao menos – porque flagra o uso de duas camas contíguas de solteiro no quarto do casal, que se transformaria em praxe no cinema norte-americano a partir dos anos de 1930, por outro motivo (como comentei num dos primeiros artigos deste blog, quase 15 anos atrás).
Por fim, uma obra-prima: “From hand to mouth” (Alfred Goulding, EUA 1919), protagonizada por Harold Lloyd, Mildren Davis e pela adorável atriz-mirim Peggy Cartwright. A história é singela: o “moço” sem nome tem fome, assim como a garotinha; a “moça” também sem nome está prestes a perder uma herança para um advogado corrupto. São dois tipos sociais cujos destinos se cruzarão.
Antes disso, no entanto, algumas das cenas mais graciosas jamais compostas pela arte do silêncio se desenrolarão. Ele para diante de um restaurante, dependura um guardanapo no colarinho e chupa com fineza o osso que tira do bolso do paletó. Pouco depois, junta-se a ele a pequena Peggy Cartwright e seu cachorro manco, que mimetiza cada passo e gesto dela. O filme abre-se tanto aos sorrisos de canto de boca quanto às gargalhadas, já que casualmente o rapaz torna-se membro da gangue que sequestrará a jovem. Perseguindo-os, ajuntará a polícia por meio do expediente o mais amalucado que se pode imaginar – a história é uma screwball comedy avant la lettre, imperdível, que aconselho os leitores a procurar (lamentavelmente a programação da Giornate fica disponível por apenas 48 horas depois de lançada).
O segundo programa de sábado é “The Fox” (1921), western da Universal dirigido por Robert Thornby e protagonizado por Harry Carey, com acompanhamento musical de Philip Carli. Carey é Santa Fe, “homem misterioso”, como diz o letreiro, que chega maltrapilho numa cidadezinha perdida no Oeste norte-americano. Na cidade a lei claudica, pouco podendo o velho xerife George Nichols contra a gangue dos “Painted Cliffs”, que a aterroriza.
Santa Fe, homem de meia-idade, passa desapercebido ao chegar. Preso em meio a uma briga, confunde certo menininho espoliado por um comerciante local com a sua trouxa de roupas, carregando-o dali. O garoto – George Cooper – é uma versão masculina da adorável garotinha de “From hand to mouth”, também abandonado e maltrapilho. Santa Fe o adota, carregando-o consigo mesmo para a cadeia, onde acaba preso envolvido casualmente noutro litígio. Uma das filhas do xerife cai de amores por ele. Por obra do homem, Santa Fe acaba indo trabalhar no banco do povoado, contratado como funcionário.
Pego bisbilhotando, é expulso do local. A essas alturas, o público já se deu conta de que o maltrapilho misterioso não era quem aparentava ser. Efetivamente, ele trabalhava no Tesouro Nacional, ofício sem poesia, não fosse ele também um cowboy proverbial, à la John Wayne, que se embrenha na aridez montanhosa no meio de um vendaval para salvar o xerife, o filho de uma viúva desprovida e, enfim, para encontrar o esconderijo da gangue dos “Painted Cliffs” e desmascarar o seu chefe – que era não outro senão o dono do banco (como corresponde...).
Tiros, correrias, poeira. Todos os elementos que dão textura ao western daqueles tempos estão aí dispostos, com direito até a um idílio romântico entre o cowboy nem-tão-durão-assim e a filha do xerife – aliás, o primeiro encontro de ambos, com o gesto tímido de Santa Fe de limpar a mão na roupa antes de tocar a mão da jovem, é de uma contenção plenamente sustentada ainda hoje, passado mais de 100 anos da rodagem da película.
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