Continuo o trabalho, agora discutindo, não tão exaustivamente, a exaustiva adjetivação com que brindamos (nós? ou os portugueses?) os filmes norte-americanos que aportam por aqui. Do amor ao ódio, uma vasta gama de sentimentos acomete os responsáveis pelas versões em português dessas fitas. E, o que é mais engraçado, isso tudo é, não raras vezes, banhado pela tinta do sensacionalismo. É assim que substantivos próprios ou comuns, ou então frases curtas sem adjetivos, dão cria a orações inteiras, compostas de sujeitos, verbos etc., etc., etc. “Alice Adams” (1935), no qual Katharine Hepburn estrela no papel da mocinha pobre que almeja, num só tempo, amor e ascensão social, é entre nós conhecido como “A mulher que soube amar”. O título faz com esse filme o mesmo que “Jejum de amor” faz com “His girl Friday” – constrói expectativas falsas no espectador, uma vez que a jovem Alice está algo distante do estereótipo da moça romântica que sofre um amor intenso e submisso pelo moço rico. Ela é, sim, calculista a ponto de manipular toda a família de modo que esta encene o papel de emergente para que o moço seja cativado. A cena do jantar é formidável por representar a ironia da situação: é verão, e o moço é convidado pela namorada a experimentar uma infinidade de pratos pouco digestivos para a estação, servidos pela empregada que só faz praguejar. Aliás, a quebra de expectativas gerada pela tradução em português do título levanta algo que eu discutia
com um amigo outro dia. Será isso fruto do descaso que os tradutores têm com o produto com o qual trabalham – nesse caso, considerado meramente como produto, destituído do rótulo de “arte” que tem a literatura, a qual usualmente merece deles um pouco mais de atenção? Ou então isso é feito para que o mercado seja atingido com mais impacto? Ambas as coisas são possíveis...
Também da Katharine (1955) é o belíssimo “Summertime”, história de uma secretária já madura que é atingida em cheio pelo grande amor numa viagem que faz à Veneza. Entre nós, o subtítulo é explicativo “Quando o coração floresce” (ou “florece”, de acordo com o que está estampado na embalagem da caríssima versão brasileira do filme, lançada pela Continental). Outro mais que explicativo é “Brigadoon”, bonito musical fantasioso de 1954, que também narra a história do grande amor, algo sublinhado pelo esquisito título “A lenda dos beijos roubados” com que o conhecemos – provavelmente escolhido por alguém que tinha acabado de ler um dos volumes açucarados de “Bianca”. “Young at heart” (1954) é outro que merece ser mencionado. O nome alude à canção homônima que foi um grande sucesso de Frank Sinatra. Não por acaso, o filme estrela o cantor/ator, que faz par romântico com a encantadora cantora/atriz Doris Day. A canção título (“Jovem de coração”), que é a música resultante de um longo trabalho de auto-descoberta do personagem problemático representado por Sinatra, é desconsiderada pelo gênio que deu título na tradução em português. Aqui o filme chama-se “Corações enamorados”.
Deixemos, agora, o amor por sentimentos menos arrebatadores... “Holiday” (1938) é um outro filme de Katharine Hepburn do qual nossa língua abusou. “Boêmio encantador” é o título, alusão ao personagem de Cary Grant, que, embora encantador, nada tem de boêmio. É, sim, crítico à sociedade que almeja unicamente o acúmulo de bens – mote que deixaria o romance insosso não fosse a genialidade de George Cukor, que o transforma, creio eu, num dos filmes mais bonitos e engraçados de todos os tempos. O pobre Cary também virou entre nós “O eterno pretendente”, numa fita de 1945 intitulada “Once upon a time” – título, diga-se de passagem, muito mais condizente com a fábula da lagarta dançarina que se transforma em borboleta, uma vez que o filme não retrata nenhuma história de amor. Sem comentários...
Continuando, “State Fair” é aqui conhecido por “Feira de Ilusões” (isso no plural, já que duas versões do mesmo – 1945 e 1962 – foram lançadas no Brasil). “The Philadelphia story” (1940) – outro com Katherine Hepburn e Cary Grant (elenco engrossado ainda mais por James Stewart), também dirigido por George Cukor – a maior comédia de todos os tempos, creio eu, ganhou de nós o nome de “Núpcias de escândalo” (e dos portugueses, o título de “Casamento Escandaloso”, segundo consta no IMDB – esse é o único filme do grupo para o qual encontrei registro dos títulos atribuídos no Brasil e em Portugal).
Embora o casamento em questão efetivamente engendre um escândalo, quem já viu o filme sabe que esse não é, de modo algum, o único tema em questão no “História da Filadélfia”, daí a novamente pobre escolha do título.
E, para ainda uma vez provar que essas esquisitices não acontecem apenas com os produtos da era de ouro do cinema, cito o “When Harry met Sally” (“Quando Harry conheceu/encontrou Sally”, 1989), o já bastante conhecido entre nós “Harry e Sally: feitos um para o outro.”
A próxima postagem apresentará sentimentos menos doces.