Aconteceu nessa semana uma coisa bem especial: apresentei meu primeiro trabalho acadêmico a respeito da recepção do cinema no Brasil, assunto que estudarei no doutorado. Mais uma vez se efetivou aquele casamento entre trabalho e diversão sobre o qual falei ao comentar sobre o livro de Antônio Ferro e o filme "Alvorada do Amor"...
A ideia foi suscitada logo no primeiro mês de uma disciplina de pós que fiz como ouvinte no semestre passado, disciplina que se tornou a desculpa perfeita para que eu fugisse de minha dissertação ainda por terminar e mergulhasse na produção bibliográfica sobre o cinema e nas fontes primárias que o discutiram, dos anos de 1920.
A personagem da femme fatale começou a me perseguir logo que comecei a estudar uma peça teatral esquecida de Coelho Netto - "Pelo Amor!" (1897), um dos meus objetos de estudo do mestrado - ou melhor, logo que acabei de ver "A fool there was" (1915) e notei que o tipo desempenhado por Theda Bara muito se aproximava da Samla de Coelho Netto. A produção filmográfica dos anos de 1910 e 1920, que recebeu tantas influências do cinema, passou a me interessar sobremaneira: passei por Bébé Daniels, Gloria Swanson, Alla Nazimova e especialmente Greta Garbo, que conheci mais profundamente por meio do incrível site alemão Garboforever, o melhor que já vi, num só tempo enciclopédico e apaixonado. Acabei o mestrado saturada de Coelho Netto e almejando estudar como as personagens e características do teatro deslizaram para o cinema, eu também desejando deslizar para ele. E aí tive a oportunidade única de cursar uma disciplina sobre cinema na área de literatura - essas oportunidades só costumam aparecer quando a gente já cumpriu todos os créditos em cursos que nem de longe nos despertaram tanto interesse... - e pensar de modo mais sistemático na relação entre teatro e cinema e na personagem que me havia vampirizado.
Isso me levou a um livro de Ismail Xavier chamado O olhar e a cena, que, por sua vez, me pôs a pensar no contraponto entre duas vamps das telas. O estudioso toma Griffith e Hitchcock para demonstrar a efetivação de algo que os cineastas buscaram durante a primeira metade do século XX - a adoção da decupagem clássica e da representação naturalista em busca do que ele denomina uma "autonomia da cena". Isso fez com que ambos - e tantos outros diretores - se debruçassem em gêneros literários e teatrais como o melodrama, no qual não há nenhuma intervenção digamos, "externa" na obra (por exemplo, a intervenção de narradores intrusos), o que dá a ela um efeito de realidade muito maior. É, portanto, um cinema que esconde os mecanismos de criação da obra artística - sobre eles Hollywood principiaria a falar nos anos 30, na "Rua 42" (42nd Street) e em "Footlight Parade" (ambos de 1933) e em tantas outras películas que desvelam os bastidores teatrais ou cinematográficos.
e as inúmeras notas publicadas sobre ela e seu elenco: algumas risíveis, como a remissão do jornal A Noite a certa pesquisa feita com moças, monitoradas enquanto assistiam às cenas quentes do filme. O resultado já é apontado no título da notícia: "Alegrem-se as morenas!", pois eram as mais sensíveis ao conteúdo erótico do filme. Quem se lembrar daquelas cenas em primeiros planos do casal vai entender a reação das meninas - sabe-se da força que tem o primeiro plano para carregar o espectador para dentro da tela, tornando-o participante de um menage a trois, como diz o Hitch ao dissertar sobre o legendário beijo entre Ingrid e Cary Grant em "Interlúdio" (Notorious, 1946). Aliás, o enredo melodramático do filme não raro faz com que os periódicos estabeleçam um intercâmbio entre ficção e realidade: "O romance d’esses dous astros [Greta Garbo e John Gilbert] está se tornando um verdadeiro filme no qual o diretor Maurice Stiller pretendeu tomar parte principal e... ficou com a pior.", diz a revista A Scena Muda. A revista constata, num tom picante, que a terceira ponta do triângulo amoroso era o diretor sueco que deu a Miss Garbo o primeiro papel importante de sua carreira. A leitura da recepção do filme nos anos 20 demonstra como o gênero melodramático, aliado à decupagem clássica e à naturalidade em cena foi responsável pelo estabelecimento de Greta Garbo como uma das grandes atrizes do século XX, admirada até hoje por uma legião de garbomaniacs de todo o mundo, que a seguem com uma devoção que beira a idolatria. Não é um acaso, aliás, que meu post sobre a última fotografia da atriz seja de longe o mais lido deste blog.
O mais claro contraponto a ela talvez seja outra grande atriz das primeiras décadas do século, a russa Alla Nazimova, sobre a qual meu amigo Ricardo escreveu um post fascinante, repleto de informações bibliográficas e de uma arguta análise sobre suas películas mais controversas, "A Dama das Camélias" (1921) e "Salomé" (1923). Ricardo faz apontamentos interessantes e que merecem ser lidos sobre a montagem vanguardista do drama de Wilde - eu lamento não tê-las lido antes, pois me ajudariam muito na escrita do trabalho de final da disciplina. Os cenários art nouveau, estética que tanto influenciou Wilde e o ilustrador do volume de "Salomé", Aubrey Beardsley, casam-se perfeitamente com a atmosfera do drama. O desempenho do elenco é lento e teatral.
Nada da naturalidade de Garbo, o que há aqui é um erotismo nervoso e fatalista muito semelhante àquele que se nota no drama simbolista de Oscar Wilde, no qual a lua misteriosa parece influir nos caracteres, moldando suas ações. A lua é elemento fundamental tanto no drama quanto na ilustração dele e no filme. Ao fim da postagem há uma edição da película feita por mim, na qual isso pode ser notado.
A montagem tão influenciada pelo simbolismo teatral e a estética art nouveau era novidade na cinematografia da época. Por meio de long shots, ela toma um distanciamento do público e cobra dele uma leitura muito mais analítica - não o convida a compartilhar a ação e a dissolver-se nela, e sim a entender os mecanismos que a criaram. Isso, suponho, tenha levado a crítica - ao menos a brasileira - a olhar o filme de modo ressabiado. Uma das poucas resenhas que encontrei sobre ele demonstram a incompreensão da crítica, que se perdeu em detalhes como a idade avançada de Alla Nazimova para interpretar o papel de Salomé (a mesma crítica que não fazia nenhuma reserva aos papéis de crianças interpretadas por uma Mary Pickford já madura) e terminou por achar o filme "estranho" e lhe atribuir uma notinha bem baixa.
O semestre passado foi um dos mais proveitosos da minha vida acadêmica. Quantas coisas eu aprendi ao longo dele! Agora sei, por exemplo, porque o vampiro bonitão de "Crepúsculo" arranca suspiro das mocinhas de todo o mundo, fazendo com que muitas queiram estabelecer um relacionamento amoroso com alguém desta espécie - conforme conta minha tia, secretária de uma escola de Ensino Fundamental. Se muita coisa dos anos 20 envelheceu, uma continua novíssima: a forma de montagem e o gênero cinematográfico melodramático, que arrebatam o público para dentro da tela e o fazem enxergar o mundo como um grande filme ...
A personagem da femme fatale começou a me perseguir logo que comecei a estudar uma peça teatral esquecida de Coelho Netto - "Pelo Amor!" (1897), um dos meus objetos de estudo do mestrado - ou melhor, logo que acabei de ver "A fool there was" (1915) e notei que o tipo desempenhado por Theda Bara muito se aproximava da Samla de Coelho Netto. A produção filmográfica dos anos de 1910 e 1920, que recebeu tantas influências do cinema, passou a me interessar sobremaneira: passei por Bébé Daniels, Gloria Swanson, Alla Nazimova e especialmente Greta Garbo, que conheci mais profundamente por meio do incrível site alemão Garboforever, o melhor que já vi, num só tempo enciclopédico e apaixonado. Acabei o mestrado saturada de Coelho Netto e almejando estudar como as personagens e características do teatro deslizaram para o cinema, eu também desejando deslizar para ele. E aí tive a oportunidade única de cursar uma disciplina sobre cinema na área de literatura - essas oportunidades só costumam aparecer quando a gente já cumpriu todos os créditos em cursos que nem de longe nos despertaram tanto interesse... - e pensar de modo mais sistemático na relação entre teatro e cinema e na personagem que me havia vampirizado.
Isso me levou a um livro de Ismail Xavier chamado O olhar e a cena, que, por sua vez, me pôs a pensar no contraponto entre duas vamps das telas. O estudioso toma Griffith e Hitchcock para demonstrar a efetivação de algo que os cineastas buscaram durante a primeira metade do século XX - a adoção da decupagem clássica e da representação naturalista em busca do que ele denomina uma "autonomia da cena". Isso fez com que ambos - e tantos outros diretores - se debruçassem em gêneros literários e teatrais como o melodrama, no qual não há nenhuma intervenção digamos, "externa" na obra (por exemplo, a intervenção de narradores intrusos), o que dá a ela um efeito de realidade muito maior. É, portanto, um cinema que esconde os mecanismos de criação da obra artística - sobre eles Hollywood principiaria a falar nos anos 30, na "Rua 42" (42nd Street) e em "Footlight Parade" (ambos de 1933) e em tantas outras películas que desvelam os bastidores teatrais ou cinematográficos.
Eu sabia alguma coisa sobre o quanto a interpretação sutil de Greta Garbo havia causado impacto entre o público e a crítica de meados de 1920. Sabia também que Alla Nazimova abriu falência depois de financiar "Salome", montagem vanguardista do drama homônimo de Oscar Wilde. Então, decidi averiguar até que ponto as montagens dos filmes tiveram alguma relação com a recepção deles nos Estados Unidos e especialmente no Brasil. O resultado da busca foi tão empolgante quanto minha viagem pelos microfilmes e páginas digitalizadas de jornais e revistas antigos.
Neles descobri que a Greta Garbo foi uma das atrizes sobre as quais os periódicos brasileiros mais falaram nos anos de 1927 e 1928. Não faltaram elogios à naturalidade da atriz, que parecia estar realmente vivendo os papéis que representava. Publicavam entrevistas supostamente feitas com ela - duvido que o fossem, pois naquele momento suas fugas dos jornalistas já eram célebres - nas quais ela afirmava que "Para que se possa realmente impressionar uma assistência, é necessário que todos os seus passos e movimentos sejam feitos com naturalidade, como se estivéssemos na vida real. (...) A única maneira de se poder sentir um beijo ao ser fotografado é se esquecer tudo e todos que nos avisinham e pensar-se que se está realmente, amando a pessoa que nos beija.". Na formulação, Miss Garbo rompe com a linha divisória que separa personagem e atriz, fazendo emergir aquilo que Walter Benjamin fala sobre a importância do ator representar-se a si mesmo. Esse foi um dos primeiros passos da construção da persona da atriz - fundamental naquela época de estabelecimento do star system, em que homens e mulheres que se dedicavam ao cinema tinham suas figuras moldadas para atraírem a atenção do público. "Flesh and the devil" (entre nós denominado "O Diabo e a Carne") tornou Greta Garbo uma das estrelas mais brilhantes da constelação hollywoodiana. As tórridas cenas apaixonadas que dividiu com John Gilbert - consideradas, não por acaso, deflagradoras de um relacionamento amoroso entre ambos - motivou reações exacerbadas pelo "realismo" que engendraram. Os ecos dos inúmeros beijos que trocaram foram sentidos no Brasil mais de um ano antes do filme ser apresentado por aqui, daí os fotogramas (alguns coloridos) da fita publicados nas revistas especializadas
A Scena Muda, 20 de outubro de 1927e as inúmeras notas publicadas sobre ela e seu elenco: algumas risíveis, como a remissão do jornal A Noite a certa pesquisa feita com moças, monitoradas enquanto assistiam às cenas quentes do filme. O resultado já é apontado no título da notícia: "Alegrem-se as morenas!", pois eram as mais sensíveis ao conteúdo erótico do filme. Quem se lembrar daquelas cenas em primeiros planos do casal vai entender a reação das meninas - sabe-se da força que tem o primeiro plano para carregar o espectador para dentro da tela, tornando-o participante de um menage a trois, como diz o Hitch ao dissertar sobre o legendário beijo entre Ingrid e Cary Grant em "Interlúdio" (Notorious, 1946). Aliás, o enredo melodramático do filme não raro faz com que os periódicos estabeleçam um intercâmbio entre ficção e realidade: "O romance d’esses dous astros [Greta Garbo e John Gilbert] está se tornando um verdadeiro filme no qual o diretor Maurice Stiller pretendeu tomar parte principal e... ficou com a pior.", diz a revista A Scena Muda. A revista constata, num tom picante, que a terceira ponta do triângulo amoroso era o diretor sueco que deu a Miss Garbo o primeiro papel importante de sua carreira. A leitura da recepção do filme nos anos 20 demonstra como o gênero melodramático, aliado à decupagem clássica e à naturalidade em cena foi responsável pelo estabelecimento de Greta Garbo como uma das grandes atrizes do século XX, admirada até hoje por uma legião de garbomaniacs de todo o mundo, que a seguem com uma devoção que beira a idolatria. Não é um acaso, aliás, que meu post sobre a última fotografia da atriz seja de longe o mais lido deste blog.
O mais claro contraponto a ela talvez seja outra grande atriz das primeiras décadas do século, a russa Alla Nazimova, sobre a qual meu amigo Ricardo escreveu um post fascinante, repleto de informações bibliográficas e de uma arguta análise sobre suas películas mais controversas, "A Dama das Camélias" (1921) e "Salomé" (1923). Ricardo faz apontamentos interessantes e que merecem ser lidos sobre a montagem vanguardista do drama de Wilde - eu lamento não tê-las lido antes, pois me ajudariam muito na escrita do trabalho de final da disciplina. Os cenários art nouveau, estética que tanto influenciou Wilde e o ilustrador do volume de "Salomé", Aubrey Beardsley, casam-se perfeitamente com a atmosfera do drama. O desempenho do elenco é lento e teatral.
Nada da naturalidade de Garbo, o que há aqui é um erotismo nervoso e fatalista muito semelhante àquele que se nota no drama simbolista de Oscar Wilde, no qual a lua misteriosa parece influir nos caracteres, moldando suas ações. A lua é elemento fundamental tanto no drama quanto na ilustração dele e no filme. Ao fim da postagem há uma edição da película feita por mim, na qual isso pode ser notado.
A montagem tão influenciada pelo simbolismo teatral e a estética art nouveau era novidade na cinematografia da época. Por meio de long shots, ela toma um distanciamento do público e cobra dele uma leitura muito mais analítica - não o convida a compartilhar a ação e a dissolver-se nela, e sim a entender os mecanismos que a criaram. Isso, suponho, tenha levado a crítica - ao menos a brasileira - a olhar o filme de modo ressabiado. Uma das poucas resenhas que encontrei sobre ele demonstram a incompreensão da crítica, que se perdeu em detalhes como a idade avançada de Alla Nazimova para interpretar o papel de Salomé (a mesma crítica que não fazia nenhuma reserva aos papéis de crianças interpretadas por uma Mary Pickford já madura) e terminou por achar o filme "estranho" e lhe atribuir uma notinha bem baixa.
O semestre passado foi um dos mais proveitosos da minha vida acadêmica. Quantas coisas eu aprendi ao longo dele! Agora sei, por exemplo, porque o vampiro bonitão de "Crepúsculo" arranca suspiro das mocinhas de todo o mundo, fazendo com que muitas queiram estabelecer um relacionamento amoroso com alguém desta espécie - conforme conta minha tia, secretária de uma escola de Ensino Fundamental. Se muita coisa dos anos 20 envelheceu, uma continua novíssima: a forma de montagem e o gênero cinematográfico melodramático, que arrebatam o público para dentro da tela e o fazem enxergar o mundo como um grande filme ...
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O artigo contendo a pesquisa completa acabou de ser publicado na revista Todas as Musas. Aqueles que quiserem acessá-lo, por favor, cliquem aqui. (3/2/11)