sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Gravidade (2013)

Vez por outra o cinema comercial de Hollywood dá sinais de que ainda tem algo a dizer. Como agora, neste filme cujas rédeas todas são de Alfonso Cuarón (responsável pelo roteiro, direção, corte final e produção da obra), que faz um trabalho difícil de definir d’outro modo que não como brilhante. 
Esta minha leitura de sua obra por certo que a tomará a partir do lugar de onde ela saiu. Numa terra de anódinos blockbusters, talhados para arrastar multidões aos cinemas – e daí, obedientes de expedientes pouco inspirados, como o moralismo, a pancadaria e o riso fácil –, “Gravidade” é uma flor de cepa rara. Vá vê-lo, quem ainda não foi – ele felizmente está enchendo salas há semanas. 
Cuarón abre mão do elenco numeroso e de efeitos especiais altissonantes para se concentrar nas histórias de duas personagens que passam por uma situação-limite: a cientista incumbida de atualizar o sistema operacional da estação espacial americana e o piloto responsável pela missão. Lixo cósmico oriundo da destruição de outras estações lança o casal à deriva na imensidão do espaço. Ambos precisam retornar à nave para reentrar o planeta Terra. 
A simplicidade do enredo mal prepara o público para o que ele está prestes a ver. A Veja comparou o filme a “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), tratando-o como a definição por excelência de “cinema”. Difícil não concordar. “Gravidade” constrói em potência o espaço para o mergulho do espectador na tela – algo favorecido pelo 3D, certamente, mas sobretudo pelo manejo notável de câmera e pela decupagem que o diretor impõe ao objeto fílmico. 
Basta uma cena – quase no início – para que percebamos a proeza. Ryan Stone (Sandra Bullock) despreende-se da asa da estação e mergulha no infinito. Num plano-sequência, a câmera principia a captar seus rodopios, à distância; aproxima-se paulatinamente para focalizar seu rosto em giro, a Terra refletida no vidro do capacete; cola ao seu rosto e, transformando-se nos olhos da astronauta, enxerga o mundo a girar; para, por fim, despregar-se dela e, de novo, tomá-la da distância. Uma câmera objetiva indireta (o olhar “objetivo” da câmera) que por um momento se torna objetiva direta (o olhar da personagem), para logo readquirir sua função de olhar onisciente da realidade: por meio dela, o espectador atinge, num só tempo, consciência do espaço inóspito e da mulher desesperada. 
Mas Cuarón vai além. A singularidade deste trabalho obriga-nos a destacá-lo do campo terra-a-terra palmilhado pelo blockbuster hollywoodiano para que, com ele, ascendamos ao terreno da metafísica – considerando, claro, que o cinema também é uma religião. Penso no quanto a escolha que o diretor faz do espaço da ação não esteve impregnada de um desejo de compreender a gênese do cinema. Eu exagero, talvez. Mas não poderíamos considerar que essa liberdade de pássaro que o artista dá à sua câmera conota aquele papel primordial do cinema, de desatrelar-se do tempo e do espaço para, então, fundar uma nova realidade? Tal ruptura com o tempo é explicitada pela alternância aleatória entre dia e noite experimentada pela Terra – vista pelos protagonistas a partir da distância que transforma o planeta em espetáculo. “Você precisa admitir que é bonito” – Stone ouve do piloto Kowalsky (George Clooney) enquanto ambos, na liberdade do espaço, lutam para readquirir os liames. 
No que toca aos protagonistas, cumpre entregarmos ao Sr. Cuarón uma medalha de honra ao mérito pela firmeza com que dirige a dupla de estrelas – sobretudo Sandra Bullock, em quem o filme especialmente se concentra. Eu, que acompanho Sandra desde os tempos de “Velocidade Máxima” (1994), jamais a imaginei uma atriz tão deslumbrante. Sandrinha (já disse que a acompanho há um bocado de tempo...), a girl next door de “Enquanto você dormia” (1995), a policial de coração mole de “Miss Simpatia” (2000), uma deusa? 
Bullock precisa agradecer ao seu diretor por lhe forjar uma nova imagem. Forjar, mesmo: de cabelos curtos, roupas mínimas e corpo firme, a atriz ganha foros de estatuária. A câmera ainda coopera. Duas belíssimas sequências bastam para explicitá-lo: quando, ao reentrar na nave, ela se despe do traje especial, a semigravidade do ambiente cooperando para que ela componha uma imagem uterina; e quando, na sequência final, um contra-plongée sintetiza a grandiosidade que o diretor desejou imprimir para a personagem. 
Tais sequências são, além de tudo, simbólicas: da geração de Ryan Stone, no útero da nave, ao seu nascimento pela água e, enfim, aos primeiros passos titubeantes pela Mãe-Terra, esboçam-se os contornos da mulher a quem a experiência extrema fez renascer. Renascimento da personagem e da persona da atriz. As poucas palavras que Sandra Bullock diz neste filme permitem-nos conhecê-la mais do que quaisquer de seus papéis anteriores jamais nos permitiram. Sinto deveras que ela já tenha recebido o Oscar de Melhor Atriz. Espero, porém, que isso não a impeça de ser dignamente homenageada por este seu trabalho espantoso.

16 comentários:

Camila Henriques disse...

Dani, que texto maravilhoso! Também escrevi sobre Gravidade no meu novo blog (sim, voltei a blogar!) e confesso que também fiquei boquiaberta não só com as escolhas de Cuarón (uma direção econômica, apesar de estarmos falando de um blockbuster!) mas também com o trabalho de Sandy B., uma atriz que nunca havia dado sinais de brilhantismo, mas que neste filme mostrou que pode dar conta de um trabalho mais sutil.
Também adorei as cenas do 'renascimento' de Ryan no útero da nave e ao final do filme (lindo como o diretor a mostra como uma 'gigante' na Terra e como um pontinho irrelevante no Espaço).


Beijos!

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oh, Camila, muito obrigada! Como escrevi em seu blog, fiquei muito impressionada com a qualidade do filme (chocada mesmo), e especialmente com a atuação de Sandra Bullock, que é uma atriz a quem admiro desde os tempos do colegial (e que me frustrou uma porção de vezes, já). Não acompanhei notícias sobre o filme, descobri-o no cinema, mesmo, portanto nada sei sobre o processo de seleção das atrizes. Sei que ela é muito ativa na classe artística (politicamente falando). Bem, de todo modo, foi escolhida e fez uma belíssimo trabalho. Também torço por ela (e pelo filme) no próximo Oscar.
Outra coisa que você apontou com sagacidade é a dialética entre grandeza/pequenez. Não tinha pensado nesses termos, e acho que faz todo o sentido.

Bjs. Até o próximo filme!

Edison Eduarddo disse...

Dani...

Realmente gostei muito do filme 'Gravidade'!

Assisti depois de 1000 indicações suas para que eu fosse ver, correndo... Porém, não sei se seria o mesmo filme se não estivesse assistindo-o em 3D. O 3D, que maximiza os efeitos, é quase um personagem do filme, concorda? Vc o assistiu SEM 3D???

Bjokas, Edison

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Olá, Edison.

Que bom que a sugestão valeu!
Então, vi-o no Rio em 2D e por aqui essa semana, quando a correria diminuiu, em 3D. Concordo que o 3D maximize os efeitos (aquelas chuvas de meteoros ficam muito realistas; pisquei horrores os olhos...). Mas concordo com o que diz a crítica francesa dos anos 50. Quando o filme é eficaz, há o mergulho na tela, a despeito de qualquer coisa. O grande impacto foi quando o vi pela primeira vez, por aí.

Bjos

Marcelo Castro Moraes disse...

Vale a pena ser assistido, mas no Imax, que faz vc estar realmente no espaço.

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Todo mundo que está vendo o filme no IMAX está dizendo maravilhas da experiência, Marcelo! Eu o vi primeiro em 2D e depois em 3D e fiquei envolvida pela história do mesmo modo, nas 2 vezes. Acho que o filme deve se sustentar mesmo na TV de casa, porque não se entrega apenas ao "espetáculo".

Maira disse...

Nossa, tem um tempo que eu vi o trailler desse filme, depois me desliguei Não lembrava! Vou procurar ver se ainda passa no cinema daqui, pois deu vontade de ver depois que li seu texto Parabéns! bjs

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Veja-o ainda no cinema, Maira! É um filme notável.

Bjs (e obrigada pelas palavras tão simpáticas)
Dani

Maira disse...

Danielle do céu kkk
Eu vi o filme Gravidade! Jesus, que agonia! De tirar o fôlego! Achei curioso como o filme prende a atençao, mesmo com poucos personagens, com uma história aparentemente simples.. os efeitos visuais (incríveis, na minha opinião) e a atuaçao da Sandra Bullock foram destaque! E quando ela começa a girar no espaço? Minha cabeça começou a rodar junto rs Gostei, gostei, gostei do filme!!

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, Maira.

Fico feliz que você tenha gostado da dica e do filme! A gente entra realmente nele, graças à maestria com que foi feito.

Bjos

Vitor Costa disse...

Encontrei seu blog pelo "espaço" e gostei muito dele, do modo assertivo com que você discorre sobre os filmes.

Concordo com sua análise sobre "Gravidade", certamente foi um dos melhores filmes a concorrer ao Oscar. É uma história, aparentemente, simples, mas que nos prende e nos desperta um raro deslumbre visual. É formidável o modo como Cuarón nos mergulha pelo espaço lúgubre e nos devolve estupefatos ao final dessa jornada inesquecível.

Adoraria uma visita sua ao meu singelo blog

http://omundoemcenas.blogspot.com.br/

Beijos

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Olá, Vitor. Tudo bom?

Fico feliz que você tenha trombado com o blog, na imensidão do espaço cibernético! Vou certamente visitar o seu.

Obrigada pelo elogio aos textos. Quanto a "Gravidade", este filme me pegou rápido - e eu o vi em 2D, da primeira vez. Gosto muito da forma como Cuarón conduz a narrativa. Não é inventivo como o filme do Kubrick, que claramente o influenciou, mas os tempos e o público também são outros.

Abss e até mais!
Danielle

Vitor Costa disse...

Pois é, na época, 2001 foi visionário, quebrou paradigmas. Quando vi 2001 pela primeira vez, nem acreditei que se tratava de um filme tão antigo. Realmente é uma obra-prima atemporal. Mas, acredito que Gravidade não fique tão atrás, daqui há muito tempo ele será tão emblemática quanto 2001.

Beijos Danielle

Vitor Costa disse...

Pois é Danielle, o filme de Kubrick é visionário, quebrou paradigmas, tornou-se uma obra-prima atemporal. Lembro que quando o vi pela primeira vez, não acreditei que se tratava de um filme tão antigo tamanha a acurácia técnica.

Gravidade tem potencial para se tornar tão emblemático quanto 2001.

Beijos

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Verdade, Vitor!

E o impressionante é que ele foi um grande sucesso de público. A massa os viu no cinema.
Também acho que "Gravidade" vai ficar. Há uns bons blockbusters feitos ultimamente. Como o último X-Men, por exemplo - cheio de efeitos, mas grandes atores, e uma história cheia de encanto e bom-humor.

Bjos!

Vitor Costa disse...

Pois é Fernanda, ainda há blockbursters que valorizam a inteligência do espectador com histórias que vão além dos efeitos.

Eu confesso que gostei bastante do último filme dos X-Men, tenho uma admiração particular pelos embates sociais e filosóficos entre Magneto e Xavier, além das alegorias ao preconceito e discriminação racial. Apesar dos buracos enormes de roteiro, foi um prazer contemplar a junção de duas gerações de X-Men e, por que não dizer, de duas gerações de grandes atores.

Beijo