quinta-feira, 1 de setembro de 2016

“Aquarius” (2016): a persistência da memória

O novo longa de Kleber Mendonça Filho jamais poderá ser dissociado do nosso atual momento histórico. Estreou em Cannes em maio, quando nossa presidenta era recém-afastada para dar-se início ao processo de impeachment, ecoando ali porque, para além de sua qualidade empírica, ele protagonizou uma campanha que deu visibilidade externa ao atribulado contexto político nacional. E pré-estreou em São Paulo durante os estertores do tal processo de afastamento, entre o Espaço Cinearte do Conjunto Nacional e o Cinesesc da Rua Augusta, a dois passos da Avenida Paulista – palco onde se desenrolava, concomitantemente, uma severa repressão policial. Sem trazer a política para primeiro plano, Aquarius nasce clássico por simbolicamente enunciá-la, a partir de uma das protagonistas femininas mais bem roteirizadas e desempenhadas na cinematografia dos últimos tempos – pela nossa bravíssima Sonia Braga. 
Braga é Clara, mulher madura que passa os dias entre vinis – era jornalista especializada em música –, no apartamento aos pés da praia de Boa Viagem, no Recife, cenário que se lhe abre da janela da sala como cartão postal. A relação de consubstancialidade que ela estabelece com o seu meio é tecida logo de saída na trama, numa brilhante reconstrução de época que, ao evocar uma festa de família ocorrida na aurora dos anos 80, tece os liames entre o passado e o presente, prenunciando, na resiliência da Clara de outrora, a envergadura moral da Clara de hoje. Os antepassados mortos estão todos ali, dentro daquelas paredes que os acolheu entre a fortuna e os reveses. O passado evocado explicitamente como flashback mistura-se àquele que irrompe inesperado: quer emergindo dos recônditos da memória até se impor incontornável no presente, calando-o; quer saltando das amareladas fotos de família para dentro dos pesadelos. 
O presente é o espaço da tensão. São tempos de especulação imobiliária – de apagamento do passado em prol de uma “novidade” que é, como sempre, anunciada com espalhafato, como se o novo apenas trouxesse benesses. Clara vê-se coagida a vender o apartamento pela construtora que comprara todas as demais unidades do prédio, visando destruí-las para subir ali um edifício moderno. Trata-se tão somente de um apartamento, que valeria ouro se capitalizado – diz a filha à Clara. Porém, muito pelo contrário; toda a primeira parte da trama estabelece a memória afetiva circunscrita dentro daquelas paredes, dando verossimilhança ao esforço da protagonista de se manter senhora do local. 
Eu não quero estragar a graça do público, entregando detalhes de um enredo que, flertando com o thriller, depende em razoável medida do segredo para construir a surpresa junto ao espectador. Cumpre-me, no entanto, assinalar a maestria com que a câmera de Kleber Mendonça Filho constrói a narrativa, agarrando o público pelo pulso e (des)encaminhando-o por seus meandros, ao seu bel-prazer. É raro vermos, na cinematografia atual, tal domínio no enfrentamento de um gênero codificado como o suspense - que lhe propõe novos caminhos, aderindo-se a ele, sem, no entanto, deixar de exacerbar um estranhamento; característica cara ao diretor, como se vê no igualmente ótimo O Som ao Redor (2013). Ao ser assim torcido, um dos mais caros gêneros do cinema clássico ganha em potência crítica. 
Na obra de Kleber Mendonça Filho, o suspense emerge do fundo de desconfiança que os homens têm naqueles que lhe são estranhos (sobretudo se esses “outros” pertencem a uma classe desfavorecida economicamente), resquício de nossa herança colonial, que construiu uma pátina de cordialidade a encobrir históricos e intransponíveis abismos sociais – os quais hoje, findo o circo político-midiático, aparecem, como nunca, sublinhados. A conclusão daí oriunda extrapola as dicotomias, assinalando, de modo complexo, o que de suave e de vil há nos homens, sejam eles pobres ou ricos. 
A narrativa cola o seu ponto de vista ao de Clara, protagonista incontornável da trama. Sonia Braga deve agradecer aos deuses pela sorte que a bafejou com uma personagem tão consistente, repleta, ademais, de tanta dignidade e luz – personagem que ela encarna com uma matreira sem-cerimônia, como se com ela brincasse. Acariciada por uma câmera amorosa, que a conduz melodicamente pela trama, Braga emana poesia. Aliás, para além do ritmo da montagem, Aquarius faz um uso tremendamente sagaz da música, que comparece na trama como forma e conteúdo. 
A música que é ofício da protagonista alimenta igualmente não só sua alma, como a alma do cinema, arte à qual ela se associa desde muito cedo, ajudando-lhe a construir seus sentidos. Das canções do filme, basta que citemos o leitmotiv da personagem, a belíssima Hoje, de Taiguara, retrato de uma trama na qual o passado deixa marcas indeléveis – amargas ou doces – no presente: “Hoje/ Trago em meu corpo as marcas do meu tempo/ Meu desespero, a vida num momento/ A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo...”. Estreando hoje, data simbólica, a relevância que Aquarius atribui à memória acaba por coser a história de Clara à História do país...

4 comentários:

Anônimo disse...

Uau! Que rápida, Dani, já registrou suas impressões! Saliento também a carga simbólica que o filme atribui aos míticos cabelos de Sônia Braga.
Uma pergunta: a atmosfera sinistra, mórbida, não lembra o cinema do Polanski (filmes como "Repulsa ao sexo")?

beijos. Ana Cecília

ANTONIO NAHUD disse...

O que mais me tocou foi a inspirada trilha sonora.

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Ana, muito bem salientado isso! E como os cabelos têm sua conotação ainda mais reforçada, já que se costuram, além de na trajetória artística de Sonia Braga, igualmente na diegese da trama. Que trama! Temos um diretor-roteirista iluminado.

Antonio - e a trilha, igualmente, se casa perfeitamente com a trama, em especial com a personagem protagonista, não? Da canção de Taiguara; à erudição de sabor tão nacional de Villa; ao agridoce de "O quintal do vizinho", de Roberto e Erasmo. Numa época em que exacerbam pessoas e personagens de uma pequenez enojante, que maravilha cruzar nosso caminho uma personagem como Clara!

Bjs
Dani

Anônimo disse...

Oi Dani, estou de volta!
Você usou muito bem a palavra "estranhamento". Acho que o filme explora muito aquele "unheimlich" freudiano, que por aqui foi traduzido como estranho, sinistro, inquietante. Todos esses matizes da palavra estão no filme. A casa de Clara, o velho prédio onde fica o velho apartamento onde morou desde sempre, vai sendo desocupada e ao mesmo tempo tomada por forças estranhas, como no conto "A casa tomada" do Cortázar.
Definitivamente, o que eu mais gosto no filme é o torvelinho de morte e sexo que abraça indistintamente todos os personagens, desmentindo a racionalidade econômica que quer se impor como irrespondível (aliás, ouvindo a campanha de João Dória Jr. no rádio, eu me lembrei do moçoilo Diego, o empreendedor com "sangue nos olhos" rs...).
O que teremos agora no festival Indie?

beijos
Ana Cecília