sábado, 3 de outubro de 2020

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2019: Dia VIII


Dia 8, 12 de outubro, sábado 

Último dia da Giornate. Theatro Verdi fechado ao público para o já tradicional ensaio da Orchestra San Marco, que acompanhará o programa que fecha o evento: “The Lodger” (“O inquilino”, 1927), obra da fase silente de Alfred Hitchcock. 


O dia começa no Cinemazero, cinema que, durante o evento, costuma receber uma (ótima) programação paralela voltada às escolas – programação na qual, vez por outra, esta que vos fala entra de penetra. Este programa é, todavia, um pouco mais árido. Denominado “Variações de The Blacksmith, de Buster Keaton e Mal St. Clair”, consiste num esforço de crítica genética realizada por Francesco Ballo e Federico Frefel. Ambos os pesquisadores colocam lado a lado a versão tradicional do curta de Buster Keaton e Mal St. Clair “The Blacksmith” (circa 1921-1922), e a versão recentemente encontrada pelo pesquisador argentino Fernando Peña, e exibida na Giornate em 2013, procurando demonstrar as diferenças substanciais entre ambas as versões. 

A sessão seguinte fecha com chave de ouro o programa Films on Films. Em cena, a espevitada flapper Coleen Moore é – literalmente – uma cinderela às avessas em “Ella Cinders” (Alfred E. Green, 1926). 


Os bastidores da indústria do cinema servem de pano de fundo nesta ficção que lança olhos sobre a trajetória de uma gata borralheira da Era do jazz band, mocinha que, fugindo do jugo da madrasta megera e de suas filhas, vai dar na Meca do cinema, onde acaba por conquistar o estrelado desempenhando... uma gata borralheira. O filme, oriundo de uma série publicada em tirinhas, introduz na diegese narrativa as nossas já conhecidas tomadas do dia a dia dos estúdios e das estrelas cinematográficas da hora. Vislumbramos mesmo um iniciante Frank Capra, então recém chegado a Hollywood, efetivamente dirigindo o filme que então rodava com Harry Langdon – os deslizamentos entre a ficção e a realidade, como se vê, são inúmeros. 


Porém, o filme é delicioso sobretudo porque apresenta com verve práticas comuns àqueles anos em que o cinema se transformava numa indústria importante, como as escolas e estudos de manuais de interpretação (datados dos tempos das diligências, diga-se de passagem...). Em cena, Coleen Moore realiza (também de modo chistoso) o sonho de milhares de meninas de vida inglória, alcançando o sucesso à custa da surpresa infantil com que reagia aos castelos de ficção levantados pela máquina de fazer sonhos (a excelência dramática acidental da personagem rende as melhores sequências cômicas do filme). Essa borralheira na vida “real” e na ficção era a mimese do público alvo do cinema. 

Em seguida a Coleen Moore, vemos o terceiro e último episódio do rocambolesco seriado norte-americano “The Great Gamble” (1919). Retornando ao Theatro Verdi, passamos pela enorme e deliciosa feira-livre que se espraia pelo centro da cidadezinha aos sábados. Suas iguarias servem-nos como o almoço derradeiro daquela semana de festival. À tarde, preparamo-nos para nos despedirmos de William Hart. 


Desta vez, Hart é o “mentiroso” Keno Bates de “Keno Bates, liar” (William S. Hart, 1915), é o “Jim Rawden” de “Blue Blazes Rawden” (William S. Hart, 1918). Separados por três anos, ambos – diz o Catálogo – testemunham o processo de transformação dos filmes de dois rolos em filmes de cinco rolos. Há, concomitantemente, o incremento na construção da personagem protagonista, que, enquanto precisava ser rapidamente identificada pelo público nos filmes de cerca de vinte minutos – daí a caracterização das personagens à flor da pele –, poderia ter suas características desdobradas nos filmes de uma hora de duração. 

Feita esta ressalva, observamos modelarmente em funcionamento, nesses dois filmes, a lógica do studio/star system. Estamos diante de dois típicos westerns de Hart, espaços em que a fronteira entre o bem e o mal é tênue e a moral se constrói à bala. Em ambos há o esforço deste protagonista finalmente bafejado pela moral (que é, como sempre, mais religiosa que jurídica) de proteger a família do bandido que ele matou; em ambos, a tentativa de reduzir-se a mulher indígena ao jugo do colonizador branco – a grande e trágica metáfora da colonização das Américas. 


A última tarde do festival teve como fecho outro filme de Reginald Dennis, ator que é uma das minhas grandes descobertas desta Giornate, “Skinner’s dress suit” (William A. Seiter, 1926), comédia cujos quiproquós giram em torno do caríssimo terno do título, imposto a Skinner – arraia-miúda no mundo dos negócios – pela mulher (Laura La Plante, também sua co-protagonista na joia “What happened to Jones”). Desnecessário dizer que o moço logo se verá sem a possibilidade de pagar pelo terno, uma vez que perde o emprego (são impagáveis as cenas em que ele, precisando do figurino para dar um grande golpe no mundo mercantil, vê-se obrigado a perseguir o alfaiate que vem de recuperar a encomenda). 

No desfecho, o obscuro Skinner se transformará num grande negociante ao longo de um número de dança que é um elo perdido entre os primeiros filmes que flagravam os gêneros musicais da moda, como o jazz, e os musicais da aurora do cinema falante. A escalada do protagonista é também aquela dos ritmos musicais modernos, bastante criticados na entrada dos anos de 1920, perfeitamente incorporados ao gosto do público cinematográfico no final da década. 


À noite é o momento de revermos “The lodger” (1927). O filme, que encerra oficialmente a Giornate – com acompanhamento pela Orchestra San Marco e regência de Ben Palmer – também marca a comemoração dos cem anos de Alfred Hitchcock. Tivemos acesso à nova restauração da obra realizada pela BFI, orquestrada pelo grande Neil Brand. Imagem deslumbrante como eu, hitchcockiana desde criancinha, jamais imaginei possível. 


Neste filme de 1927 já observamos a consolidação de alguns traços característicos do mestre do suspense: no âmbito técnico, os primeiros planos altamente significativos, a decupagem cuidadosa – Hitchcock costumava se guiar por storyboards rigorosamente preparados antes de começar a filmar –; e, no temático, a fascinação pelos desvios de personalidade, o interesse patológico pelas louras (a grande temática deste filme, cujo enredo gira em torno da literal eliminação dessas mulheres). Seria um filme melhor se o diretor não tivesse de transigir com o star system e aceitasse transformar Ivor Novello (ídolo das matinês, então) em mocinho, ele que fora conduzido ao longo de toda a obra como se fora o vilão. Não podemos ter tudo. 

Hoje começa a Edição Limitada da Giornate, realizada de modo integralmente remoto. É uma substituta possível ao evento presencial, considerados esses tempos bisonhos. Embora a Giornate seja muito mais que os filmes que nela se exibem, é um refrigério podermos acessá-la virtualmente. Vamos então a ela!

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2019: Dia VII

"Joan, the woman"
Fotografia de Valerio Greco

 Dia 7, 11 de outubro, sábado 

O dia – outro dia luminoso de uma semana especialmente clara, ainda que fria – inicia-se com uma sessão dos Weimar shorts, aquelas obras a meio do caminho entre o documentário e o newsreel rodadas pela Alemanha anterior ao terror nazista. “Between Mars and the Earth” (“Entre Marte e a Terra”, 1925), “The Frankfurt kitchen” (A cozinha em Frankfurt” 1927) e “Comical Hygiene” (Higiene cômica”, dois exemplares de uma série rodada entre 1926 e 1930) dão mostras da variedade temática e de gênero dessas obras. 


Uma hora mais tarde – ainda à hora do café, 10h00 da manhã – somos agraciados com um dos grandes filmes da semana, “Joan the woman” (Cecil B. DeMille, 1916), versão de Joana D’Arc rodada em meados da Primeira Guerra, e que procura estabelecer com a conflagração uma relação de paralelismo temático. A célebre mártir francesa, que poucos anos mais tarde ascenderia à posição de santa, é temática cara aos cineastas desde os primórdios. Aqui ela é interpretada por uma divindade operística, Geraldine Farrar, no seu quarto trabalho com Cecil B. De Mille. A trama estabelece um paralelo entre a Guerra dos Cem anos – especificamente, a participação da jovem camponesa no conflito – e a Grande Guerra. Wallace Reid, o galã das matinês cinematográficas daquelas priscas eras, é num só tempo o inglês do século XX a quem se atribui uma missão mortal na Guerra e o inglês do século 15 apaixonado pela plebeia belicosa. 

A crítica, diz o Catálogo do evento, nota a visada simpática à mulher numa trama que desmerece o sexo masculino – fraco e incrédulo das virtudes da jovem. Toma, ademais, o sacrifício do jovem contemporâneo como punição dos machos medievais. O certo é que o encaixe entre o passado e o presente de 1916 não se realiza sem arestas – a Joana de Farrar é menos a campesina viril e mais a mulher amorosa dos estertores da Belle Époque (ou, a coquete com laivos de mulher fatal da sétima arte), a premiar os seus adoradores com o beijo da morte. No intuito de construir a ponte entre o passado e o presente, De Mille pinta-nos um rapaz galante que ama a jovem Joana – tipo menos histórico que cinematográfico. Assim, ele surge em 1916 de baioneta em punho, heroicizado pelo tenebroso conflito. Porém, salta-nos aos olhos, sobretudo, menos a história e mais a colorização deslumbrante do filme, selecionada para momentos simbólicos, como o martírio da jovem na fogueira inquisitorial. 

Fotografia de Valerio Greco

O destaque/ embelezamento do momento horrendo fora realizado dez anos antes, ainda no coração do primeiro cinema, por uma película como “Os martírios da Inquisição” (“Les Martyrs de l’Inquisition, Lucien Nonguet, 1905) – e ali, o nosso Arthur Azevedo constatava o descompasso de se verem brutezas tais num espetáculo cinematográfico exibido no cândido Passeio Público carioca. Aquele público fruía tais cenas bebendo limonada cor de rosa, comenta Arthur, como nós, cento e tantos anos mais tarde, fruímos com deleite o vermelho que tinge as imagens cinzas, tão abismados desses prodígios técnicos quanto o público de outrora. Continuamos não passando de uns meninos... 

Fotografia de Valerio Greco


A tarde se aproxima. Após um almoço rapidamente engolido – o tempo urge em Pordenone –, vemo-nos noutra sessão do programa “Films on films”, composta por obras europeias e estadunidenses, rodadas durante os anos de 1920, as quais dão destaque à máquina inventora de portentos e às estrelas criadas por ela. Entre os filmes do programa, “Meet Jackie Coogan”, rodado na Grã-Bretanha em 1924, cujo protagonista é o maravilhoso “Garoto” que Charlie Chaplin lança ao estrelato no filme homônimo, abertura do Festival de Pordenone de 2019. 

À noite, dois belos programas, entre uma sequência hilária – especialmente quando vista agora, do distanciamento temporal – de propagandas cinematográficas rodadas na Noruega nos anos de 1920. Tratam-se dos longas “Sally, Irene and Mary” (Edmund Goulding, 1925) e “Gardiens de phare” (Jean Grémillon, 1929). 


Apresentado na sessão Redescobertas, “Sally, Irene and Mary”, permite-nos efetivamente descobrir o que fez Joan Crawford cair nas graças de Hollywood. A jovem, recém-vinda dos coros da Broadway, tem a chance de protagonizar pelas mãos do talentoso Goulding, que a lança ao estrelato. Dividem a cena com ela Constance Bennett e Sally O’Neil, e as três trilham, aos olhos do público, um caminho que já fizera sucesso nas revistas teatrais da Broadway: experimentam num só tempo a pompa e o avesso do showbusiness: o brilho, a exploração, o assédio, os sonhos não realizados e as tragédias. Logo descobrirão que The show must go on é uma filosofia difícil de engolir. Valeu-nos o filme sobretudo pela descoberta, não só de uma ainda verde Crawford – ótima dançarina, mas ainda inexperiente atriz – como da jovem percussionista mexicana Lorena Ruiz, aluna do programa musical da Giornate deste ano, que se juntou na última hora ao ensamble responsável pelo acompanhamento musical do filme, e arrasou. 


O dia encerrou-se com “Gardiens de phare”, integrante da sessão O cânone revisitado, obra francesa rodada com impressionante artesania nos estertores do cinema silencioso. Esse belo canto dos cisnes mescla experimentações visuais e enlace melodramático. Narra a história de dois faroleiros, pai e filho. Este, recentemente mordido por um cachorro, será acometido pela raiva enquanto ambos estão isolados no farol, durante uma tempestade. Grémillon burila com invulgar perspicácia o tempo e o espaço da ação, construindo uma narrativa arrastada e de tangível claustrofobia. O pigmento azul que tinge a película, mais que mero adorno, contribui à contação da história, transformando o farol no espaço do mar, o que explicita imageticamente o naufrágio simbólico das personagens. Um grande filme, que merece a revisita de tempos em tempos. 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2019: Dia VI

Dia 6, 10 de outubro, quinta-feira

Entro na reta final da Giornate del Cinema Muto de Pordenone do ano passado (quase um ano e uma quarentena mais tarde, dirão os haters...), pouco depois de saber que o evento deste ano terá uma edição limitada, totalmente remota. A sensação é agridoce. Ter a oportunidade de acompanhá-lo de forma online é um presente inesperado para alguém que sabia que seria impossível estar nele pessoalmente este ano, com ou sem pandemia. Mas, a Giornate é feita de uma série de rituais: da chegada na cidadezinha pelos comboios que saem de Venezia Mestre; do enveredar pelas vielas do burgo antiquíssimo e, não obstante, tão moderno; de esperar pela próxima sessão no “Posta”, bar situado diante do Theatro Verdi, bebericando uma spritz e beliscando um dos pequenos sanduíches ou pizzas sempre prontos no balcão, para os clientes apressados. As interações digitais só são possíveis porque nos restam as lembranças da vida lá fora.

No "Posta"
No "Posta"

Vielas de Pordenone


Praça diante do Theatro Verdi


Feira livre ao lado do Theatro Verdi

Mas, vamos ao sexto dia do evento.

A manhã da quinta-feira pertence ao cowboy William Hart, acompanhado ao piano pela sensível, precisa, deslumbrante Maud Nelissen. O programa é composto por um filme de propaganda de venda de bônus de guerra, da parte dos Estados Unidos recém ingresso na conflagração. O cinema norte-americano, como sabemos, transformou sua indústria em máquina de propaganda, rodando, além de obras de ficção tematizando a conflagração, filmes como este “All Star Production of patriotic episodes for the second liberty loan” (Marshall Neilan, 1917); no qual surgem em cena as principais estrelas do período a venderem os tais bônus de guerra, como Mary Pickford, Douglas Fairbanks e Hart.

A seguir, um curta de 1915 e um longa de 1917, ambos dirigidos por William Hart. O primeiro é “A Knight of the trails” (1915). Hart é o cavaleiro andante do título. É, no entanto, um sujeito dúbio, novamente a equilibrar-se entre a lei e o crime. Embora seja de saída tomado como um outlaw, a sua cara comprida de cavalo manso (que o confunde com a sua montaria, um e outro indissolúveis) denuncia que ele no fundo é um bom sujeito. Está de casamento marcado com a garçonete de um saloon, que desconhece o “emprego” do noivo. Molly – esse é o nome da mocinha – descobre certas joias que ele roubara e trata logo de pender a um outro partido, que ela não percebe tratar-se de um mau caráter vindo do leste ao oeste para fazer fortuna. Hart, claro, não apenas devolverá as joias à polícia como se engalfinhará com o outro, para subtrair-lhe as economias que este roubara de Molly. Ferido, mas vivo (ele dá cabo de seu opositor), se reunirá à mocinha, para o que se anuncia dali por diante como a felicidade eterna.

Nessas obras em que trabalha também como diretor, Hart segue esculpindo a imagem de cavaleiro – para tomarmos o título do filme acima – do Velho Oeste, fiel como um cachorro (ou um cavalo...) a um ideal, a uma mágoa do passado ou a uma mulher. Premiado ou punido à medida que se aproxima ou se afasta da moralidade cristã que Hollywood preza e esses westerns mimetizam tão bem, ele será, no entanto, sempre a estrela, sempre o herói de seus filmes. Outro exemplo disso vemos na terceira obra do programa, “The Silent Man” (1917), na qual a citada moralidade aparece materializada na pele de um pastor protestante que era amigo dileto da personagem de Hart – aqui, um bandido sem coração que acaba enxergando o caminho da justiça depois de ver a casa e a igreja do pastor em chamas, incendiada pela terrível gangue dos desperados de Pressley (essas histórias invariavelmente requerem a existência de alguém pior que Hart, para que a sua iluminação se efetive).

O programa do meio dia traz a primeira das três partes de “The Great Gamble” (Joseph A. Golden, 1919), reconstrução digital, realizada pela Cineteca di Friuli, de um filme-seriado norte-americano da Pathé. O catálogo do evento informa-nos que a obra original possuía 15 partes. Embora as três partes nas quais ela foi dividida para a exibição na Giornate sejam bastante mais longas do que costumavam ser os episódios dos seriados da época, elas não correspondem à totalidade do filme. Totalidade cuja falta o espectador sente sensivelmente, uma vez que a obra, como corresponde a esses seriados de aventura, é repleta de cenas de ação e desloca-se geograficamente de maneira impressionante (segundo o catálogo do evento, enquanto as imagens de estúdio foram rodadas em Nova Iorque, as externas ocorreram em seis sítios diferentes e distantes uns dos outros, como Lookout Mountain, Tennessee, Miami e Flórida). A presença contundente das tomadas externas estende-se mesmo para as ruas da já bastante populosa Manhattan.

Para o espectador contemporâneo, entre as ausências de material fílmico e os defeitos de coesão na trama (percebidos pela imprensa contemporânea, como o catálogo destaca), a compreensão fica bastante prejudicada. Hitchcock (parênteses) de certa feita afirmou que, no cinema silencioso, expedientes como a tonalidade das roupas das personagens ou a existência ou não de bigodes eram elementos fundamentais para o público perceber quem era quem nas tramas. Pois bem, em “The Great Gamble” a trama gira em torno de um casal de irmãs gêmeas idênticas (!) (Anne Luther), sendo que uma delas foi tirada de casa pela mãe quando esta fugiu com o amante, e a outra ficou sendo educada pelo riquíssimo pai. Anos mais tarde, com a morte da mãe, o amante procurará sequestrar a outra jovem, colocando a gêmea “má” no lugar dela, para dilapidarem o patrimônio do pai. Os espectadores que lutem para saber quem é quem enquanto corre a ação!...

À tarde, mais um programa dos Weimar Shorts, filmes situados entre a ficção e o documentário, rodados pela República de Weimar neste interregno que vai do fim da Primeira Grande Guerra à ascensão do Nazismo. Para além do interesse estético que apresentam, por sua bela fotografia e pendor inequívoco à montagem tributária ao Primeiro Cinema (em plenos anos de 1920), esses filmes servem de testemunho dos esforços de reconstrução do país antes de seu mergulho no terror nazista. Exemplos são “Markt in Berlin” (Wilfried Basse, 1929), que tematiza uma feira livre situada no coração da capital alemã, a qual dá ares de cidadezinha à “metrópole” tratada sinfonicamente na obra de Walter Ruttmann; e “Zeitprobleme, wie der arbeiter wohnt” (ou “Problema contemporâneo, como vivem os lavradores”, de Slatan Dudow, 1930), crítica social aguda às condições precárias vividas por esta classe de trabalhadores.

"Chushingura". Fontes: National Film Archive of Japan/ Catalogo.

No último horário do período da tarde, às 18h00, um dos grandes acontecimentos desta Giornate: a exibição de “Chushingura” (Makino Shoko, circa 1910-17), acompanhada por um benshi e um ensemble japonês. O benshi é um acompanhador tradicional de filmes silenciosos japoneses, que dá voz às figuras das telas – são, muitas vezes, os responsáveis pela autoria da narração e dos diálogos da história. Trata-se de um trabalho de cunho artesanal, que se destaca do cinema industrial do período. O responsável pela empreitada em Pordenone foi Ichiro Kataoka, respeitável artista e pesquisador da arte do benshi – ele foi o responsável pela localização do nitrato de “Chushingura” que foi fonte principal da restauração exibida no evento.

Ichiro Kataoka (à esquerda) e seu ensemble
Fotografia: Valerio Greco

O título da obra remete a um gênero de contos cuja base histórica é um evento ocorrido no início do século XVIII: o senhor do castelo de Ako promove um ataque sanguinário contra Kira Yoshihisa, que constantemente o depreciava em público. É sentenciado à morte pelo Shogunato, e sua esposa instila os seus vassalos à vingança, elaborada de forma detalhada e requintes de crueldade pelos agora ronins (vagabundos), os quais, após conquistarem seu objetivo, são todos condenados ao ara-kiri. Trata-se, portanto, de uma saga de vingança de cunho transcendental, tão intrinsecamente ligada à comunidade japonesa que essas histórias eram compostas, muitas vezes, pela aglutinação de episódios rodados anteriormente por diferentes realizadores (daí a este “Chushingura” juntar tomadas rodadas ao longo de sete anos). A súmula de texto original (criado por Ichiro Kataoka) e música típica a conduzirem essa costura de episódios rodados num lastro consideravelmente amplo de tempo originam uma obra de impacto inigualável.

Depois do jantar, juntamo-nos novamente para mais um programa dedicado ao adorável Reginald Denis. Programa composto por duas partes principais: pelo filme de propaganda “The city of stars: a reporter’s visit to the Universal Studios” (H. Bruce Humberstone, 1925), versão cinematográfica do conteúdo das revistas e sessões cronísticas especializadas nas celebridades da “Arte do Silêncio”; e pelo longa-metragem “What happened to Jones” (William A. Seiter, 1926), acompanhado pela excelente Zerorchestra – já tradicional na Giornate.

Exibição de "What happened to Jones" na Giornate.
Fotografia de Valerio Greco

“What happened to Jones” é o elo perdido das screwball comedies. Farsa teatral de George Broadhurst (1897), foi cinematografada um par de vezes por Hollywood antes que Seiter encontrasse esta versão final, diabolicamente ágil e absurda, tão amalucada quanto as comédias depois rodadas por Howard Hawks e companhia. A música jazzística da Zerorchestra cai como uma luva na euforia e no humor desse gênero cinematográfico. O grupo abusou de sonoridades a meio caminho da música e do ruído, tão bem aproveitadas pelas jazz-bands, para a elaboração dos sons incidentais que tingem a partitura do acompanhamento: o riso jocoso do clarinete, a gravidade do trombone, a deslizar da buzina ao rosnado, do riso ao choro.

A trama gira em torno dos esforços da personagem de Denny para passar incólume à noite que antecede o seu casamento. Conduzido a um jogo de poker clandestino, estourado pela polícia, foge dali para acabar, juntamente com um colega, numa clínica de emagrecimento feminino, donde ambos escapam vestidos de mulheres. A tolice da trama só não supera o seu humor – glosado com bastante eficiência pela orquestra: o filme se resume na corrida da personagem rumo à sua casa, com o pouco de dignidade que lhe resta, seguido de perto pela polícia; e nos quiproquós envolvendo trocas de roupas e um parente clérigo (a ruptura da ordem é lei nesse gênero, daí à igreja ser constantemente metida à bulha). O público é colocado de bom grado na barafunda geral em boa medida devido à performance de Dennis, que faz tudo parecer crível. Evoé ao cinema clássico! Precisamos dessa embriaguês nos dias sensaborões que nos restam.

 

quarta-feira, 17 de junho de 2020

A gripe espanhola entre a imprensa e o cinema

Gazeta de Notícias, 5 nov. 1918, p. 3.
Fonte: Hemeroteca Digital da BN
Três meses depois do início da quarentena, vi-me diante da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional buscando informações sobre a gripe espanhola, exegese já realizada por alguns órgãos de imprensa no princípio da pandemia do coronavírus. Reprisei os recortes de minhas pesquisas até agora, voltadas ao cinema mudo, às suas relações com as artes e à imprensa carioca da época. 
Voltei-me, além de à Hemeroteca, a algumas bases de dados de conteúdos audiovisuais e impressos: o IMDB, a Fondation Jerôme Seydoux Pathé, a Gaumont Pathé Archives, a Huntley Film Archives, a Filmografia da Cinemateca Brasileira, os diários e revistas ilustradas cariocas Jornal do Brasil, Gazeta de Notícias, Fon-Fon e O Malho. Quem se debruça em arquivos desse tipo sabe que a pesquisa se trata de um trabalho de formiguinha, vagaroso. Procurei simplificá-lo e abreviá-lo, deixando-o nas dimensões e no formato de um post mais resenhístico que exaustivo. O caráter detetivesco da busca (que é o que desde sempre seduziu à pesquisa acadêmica esta leitora devota da Agatha Christie) também aparecerá aqui. 
Em primeiro lugar, os termos da busca: gripe espanhola, ou melhor, grippe hespanhola. Por que tão poucas referências há sobre ela no Jornal do Brasil (duas dezenas entre as décadas de 1910 e 1920)? A pesquisa pela variante “influenza” amplia o resultado a pouco mais de quatro dezenas, poucas, ainda, considerando a hecatombe que ela representou no Brasil à época. Mais prolífico, o jornal Gazeta de Notícias elucida o silêncio com verve irônica. Em 16 de outubro de 1918, publica em letras garrafais, na primeira página: “Um mar de rosas”, e como subtítulo, “É a opinião do governo, diante do ‘mal de Seidl’: As providências tomadas contra a...”. O artigo justifica o uso da antonomásia no título da notícia. O governo acabara de instaurar a censura a respeito da doença, dando mostras, ainda uma vez, do histórico autoritarismo de nossas instituições. Mas, o recente batismo do mal igualmente aponta para o desbunde carnavalesco da cidade: Carlos Seidl era, até exatamente aquele dia, quando foi destituído, o Diretor de Saúde Pública do governo de Venceslau Brás, figura tão inócua no enfrentamento do vírus que, mesmo tendo caído, acabaria por batizar a doença pelos próximos anos. 
Fonte: Hemeroteca Digital da BN
Malgrado a censura, o jornal não silencia. Traça, naquele e nos próximos dias, o percurso da gripe espanhola pelos interiores do Brasil: pelos caminhos do paquete a vapor, do mesmo modo como hoje o coronavírus penetra o país por via aérea. Vindos do Norte do país e da Europa, respectivamente, os navios Amazonas e Garona desembarcavam doentes nos portos da cidade. 
Em meados de outubro de 1918, a transmissão comunitária da gripe espanhola já se estabelecera no país. A leitura dos próximos dois meses e meio do jornal dá calafrios. O noticiário, as entrevistas e os anúncios oscilam entre a informação de 600, 800 mortos diários (40.000 ao cabo de dois meses e meio, segundo a folha) apenas na cidade do Rio de Janeiro; a apresentação de panaceias de naturezas variadas, da autoria de médicos formados, e de elixires que nada devem aos feijões abençoados e outras absurdezas que circulam hoje em dia como profilaxia ao coronavírus: da celebérrima Emulsão de Scott aos purgativos, velhos como Moliére, receitados pelo Dr. Teixeira Coimbra (cuja insólita receita, que mistura, entre outros, óleo de rícino e sal, pode ser encontrada na p. 2 da Gazeta do dia 22 de outubro de 1918, abaixo). 
Fonte: Hemeroteca Digital da BN
A Gazeta é uma das folhas que mais rapidamente atualiza seu maquinário, logo, publica, entre as notícias, copiosas imagens do dia a dia da cidade: as aglomerações (tantas e tão mortíferas) diante das instituições de caridade e nas procissões que pedem saúde aos santos do dia... E, nos artigos de opinião, não poupa farpas à atuação pífia do governo no combate à epidemia, responsável pela morte sobretudo de habitantes das periferias, caminhando a contrapelo de uma orientação história da folha, que era o alinhamento com a situação (mais informações sobre isso se encontram no link da FGV, aqui). 
Médico examinando, no Morro da Mangueira, um homem acometido pela pneumonia.
 Imagem de Arthur Moncorvo Filho. Fonte: Fiocruz.
As revistas ilustradas cooperam no registro visual da passagem da “Hespanhola” pela cidade. Em 20 de outubro de 1918, a Fon-Fon publica uma série de instantâneos da outrora buliçosa Avenida Rio Branco – onde ficavam os principais cinemas da cidade – deserta, bem como das procissões e dos órgãos do Estado voltados à prestação de serviços assistenciais repletos de gente que, a contar pela variedade de vestimentas, pertencia a todos os estamentos sociais. 
Embora deixasse de frequentar as casas de diversão, o povo seguia se aglomerando, no Rio de Janeiro como em dezenas de cidades ao redor do mundo, colaborando na multiplicação dos doentes. A certa altura, a Gazeta de Notícias louva as políticas públicas francesas de enfrentamento da gripe espanhola, responsáveis por baixar os mortos diários a um décimo das mortes dos cariocas. 
Fonte: Hemeroteca Digital da BN

Encontramos, entre os registros audiovisuais remanescentes da época, no fragmento de um "Gaumont Journal" datado de 1919, vestígios da implementação de algumas dessas medidas em Paris. Ao longo de pouco menos de um minuto, a câmera estática, em quatro planos, explica pedagogicamente a importância da máscara na proteção contra o vírus. Com a costumeira habilidade fotográfica dos homens do primeiro cinema, o filmete faz as máscaras brancas ocuparem um invulgar primeiro plano, contrastando com o cinzento do quadro invernal.
"Peu elegant, mais pratique, voici, comme a paris, le masque contre la grippe espagnole" (Gaumont Journal, 1919)
Fonte: Gaumont Pathé archives 
Num diapasão mais lúgubre, a fotografia de um soldado mascarado aparece num filme em inglês rodado aparentemente em 1918, disponível na Huntley Film Archives. Além dele, a câmera, tal e qual lanterna mágica, funde e dá movimento a uma série de imagens estáticas representando uma fileira de pessoas caminhando num local inóspito; uma notícia de jornal comunicando o fechamento das escolas devido à influenza; a aglomeração de pessoas diante da igreja; a mãe e o filho que, numa xilogravura, lamentam a morte do pai de família.
"Spanish Flu". 
 Fonte: Huntley Film Archives. Disponível para visualização . 

Usada eventualmente em contexto estrangeiro, a máscara não parece ter sido adotada no Brasil (mesmo entre os médicos). No britânico “Dr. Wise on Influenza”, não é ela, e sim o isolamento do doente, que é defendido. O sisudo filmete apresenta, em pedagógico estribilho, a alegoria da sabedoria (um velhote de dedo em riste) frente a duas situações, ambas tomadas em planos frontais, após as quais o Doutor Sabido reage criticamente. Na primeira, um amigo abraça outro que tosse: “Observando que Brown estava gripado, Jones não deveria se associar a ele”, o médico diz. Ambos entram num ônibus lotado. O Dr. Wise: “Brown está provavelmente espalhando germes pelo ônibus e transmitindo Influenza para um grupo numeroso de pessoas”. Noutra situação, toma-se em plano aberto um escritório. Na esquerda baixa, quase ao centro, local de destaque da cena desde a configuração do palco italiano, o homem espirra, se limpa num lenço de tecido. O incrédulo Dr. Wise reclama da falta de ventilação. Poucas horas mais tarde, todo o escritório estará contaminado. “Uma vez gripado, ele deveria evitar se reunir em ambientes fechados”, o médico arremata. 
“Dr. Wise on Influenza”.
Fonte: Huntley Film Archives. Visionamento disponível
Examinando os Bancos de Dados citados no início deste texto, surpreende a pequena quantidade de arquivos audiovisuais rodados nos anos da gripe espanhola. A rapidez e a alta mortalidade da doença (mesmo num mundo acostumado às epidemias); o número avassalador de mortos (entre 50 e 100 milhões de pessoas em todo o mundo, até 1920) podem servir de explicação ao recalque. Já no Rio de Janeiro, onde além da mencionada censura ao tema havia um explicitado desejo da cinematografia de se registrarem apenas imagens deleitosas da cidade modernizada, não encontrei referência sobre qualquer registro audiovisual da epidemia. Restam as imagens estáticas, tornadas públicas pelas revistas ilustradas ou integrantes dos acervos dos fotógrafos da cidade. 
Passada a epidemia (ou, entre cada uma das três ondas dela, períodos de calmaria aparente), era o tempo de sua catarse, por meio da farsa, da alegoria e/ou do carnaval, métodos intercambiáveis. "Fritzigli a la grippe" (Export Union Film, 1921), de Amédée Rastrelli, diretor de uma sequência de filmes figurando Fritzigli (André Séchan), apresenta como profilaxia para o tratamento da gripe espanhola o envio da personagem doente à Espanha com um par de castanholas. Ali, Fritzigli encontra “la belle Conchita”, disputando-a com o "terrível" Caramba, multiplicando-se as peripécias. A itinerância proposta pelo roteiro aproxima o filme dos espetáculos cômico-musicados em voga na Europa e no Brasil, a exemplo das peças fantásticas e das revistas de ano (teatrais como cinematográficas).  
Essa lógica revisteira enforma uma pérola de animação produzida em 1920, “Canard en cine numero 12” (Gaumont, Série D), de Lortac e Rigal, na qual a cidade desfila em traços surrealistas: um monstro-farmacêutico aviando a receita de certo cliente após o boletim municipal informar que “A gripe foi vencida”; a gripe espanhola ocupando o longo cortejo dos males recentes, entre os micróbios e a dor de cabeça. 
“Canard en cine numero 12” (Gaumont Journal, 1920)
Fonte: Gaumont Pathé archives 
À guisa de arremate: a estrutura e as alegorias da animação assemelham-se às apresentadas pelo grupo carnavalesco Tenentes do Diabo no carro de crítica “A Espanhola”, do carnaval carioca de 1919 - atentem-se, na imagem superior à direita, às mesmas cabeças agigantadas presentes na animação, tal e qual charges tridimensionais. Para além dos intercâmbios observados entre as diversas manifestações artísticas analisadas, notamos que, no Rio de Janeiro, o carnaval de então salientava o cunho crítico que ele historicamente tivera, a despeito das proibições governamentais.
Revista Fon-Fon, 9 mar. 1919.
Fonte: Hemeroteca Digital da BN

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2019: Dia V

Dia 5, 9 de outubro, quarta-feira 
Retornamos a Pordenone quase seis meses depois do término da Giornate, numa viagem interna que é a única que pode ser empreendida atualmente por parcela considerável do globo, já que o Oriente e o Ocidente irmanam-se numa quarentena que promete durar tempo superior à bíblica. Estamos na metade final da Giornate del Cinema Muto, numa Itália repleta de luz, calor e efusão, a qual, hélas, agora nos parece tão distante. 
Detemo-nos, nesse início de manhã da quarta-feira, nos curtas alemães comemorativos dos cem anos da República de Weimar, integrantes dos “Weimar Shorts” – cujo “Programa Aquático” regido por José María Serralde Ruiz nos embalara poucos dias antes. Günter Buchwald regeu, desta vez, este programa do qual fizeram parte curtas como “Hands at Work: Otto Dix” (algo como Mãos à obra..., 1924) e “When a Film Cutter Blunders...” (Quando um montador mete os pés pelas mãos, de O. F. Mauer, 1925): da ode ao trabalho à sátira ao cinema avant garde
O segundo filme merece destaque, já que dialoga diretamente com “Entr’acte” (de Clair e Picabia, 1924), obra cujo dadaísmo, segundo a visada irônica de “When a Film Cutter Blunders...”, não seria resultado de um esforço estudado, mas sim da incompetência do montador. Um curioso exemplo de cinema metalinguístico, estratégia que iríamos ver revisitada neste mesmo dia em Pordenone. 
Mais tarde, novamente o espadaúdo William Hart dá-nos o ar da graça, desdobrando-se naquelas variantes suas já nossas conhecidas: o vilão tout court e o vilão que a Providência toca com os dedos da bondade. Destaca-se, no conjunto deste programa composto de três filmes, “‘Bad Buck’ of Santa Ynez” (Ince Studios, 1915). Naqueles tempos em que o bem e o mal se cravavam na pele, o protagonista desde logo explicita a que veio. O malvado Buck desfila sua vilania pelos saloons de Santa Ynez – localidade que, segundo o excelente programa da Giornate, é uma piada interna com Inceville, a cidadela na qual os estúdios de Thomas Ince foram erigidos, já que o local se instalava a leste do cânion de Santa Ynez. 
Pois quereria o destino, nos melhores moldes do melodrama clássico, que o lúgubre Buck fosse tocado por Honey (seu nome, mel, é auto-explicativo), menininha filha de um pioneiro moribundo. Também é a moral do melodrama que determina que o vilão reformado purgue os seus crimes com uma morte honrosa – o mal marcava qual tatuagem as espáduas do indivíduo, sendo impensável ao gênero que os bandidos seguissem fruindo das alvíssaras da sociedade (...). Mas, retirado do convívio social depois de salvar a filha e a esposa do morto, Buck – e o seu encantador protagonista – seguem dentro de nós. 

À tarde, encontramo-nos novamente com a adorável Suzanne Grandais, estrela maior naquela dobra de 1912-1913. O filme é “Le Mystère des Roches de Kador” (1912), e aqui ela novamente divide o protagonismo com Léonce Perret (também diretor da obra). Trata-se de um filme duas vezes mais longo que o já aqui mencionado “Le chrysanthème Rouge”, e mais sofisticado nos âmbitos técnico e narrativo. Grandais e Perret abandonam o duo cômico para encarnarem a dupla Suzanne e Conde Fernand de Kéranic – a jovem herdeira do Marquês de Kéranic e o seu vilânico (e fingido) testamenteiro. 
O conde planeja casar-se com a moça para acessar a herança a que ela tem direito e, ao descobrir que ela já tem um pretendente, procura dar cabo de ambos nas rochas que dão título à obra. Ele é parcialmente bem-sucedido, já que ela sobrevive, enlouquecendo, todavia, o que, segundo o testamento, igualmente o faria colocar as mãos na tão desejada fortuna. 
É então que surge em primeiro plano a profilaxia para a loucura da herdeira: o cinematógrafo. Entre parênteses: multiplicavam-se, então, na imprensa, artigos a respeito de usos do cinema para além do entretenimento. Os bandidos denunciando-se após verem a encenação do crime que cometeram, como narra certa revista ilustrada brasileira em 1915, reportando-se a um acontecimento ocorrido no estrangeiro. Ou, aqui, a jovem readquirindo a sanidade depois de ver a sua história retratada na tela erigida no consultório médico. O cinema, arte tão jovem, volta as suas lentes sobre si, pondera sobre as suas possibilidades aparentemente infinitas – a exemplo do enquadramento, que vela o rosto da atriz responsável por desempenhar o papel da mocinha louca, fazendo com que ela, ao ver a fita, se suponha em cena; e da trucagem, que efetiva o tiro responsável por tirar a vida do rapaz que ela ama (interessados no filme podem acessá-lo aqui). 

Mas, o melhor deste dia ainda estaria por vir: “Fragment of an Empire” (de Fridrikh Ermler, 1929), versão restaurada de uma obra fetiche do regime socialista soviético, a qual Pordenone exibira de maneira resumida em 2011. Acessamos agora o filme restaurado e em sua completude (ao menos, se considerarmos o totum do material encontrado), graças a um consórcio entre a EYE Filmmuseum, a Gosfilmofond russa, o San Francisco Silent Film Festival e a Cinémathèque Suisse, prova do quão custoso e trabalhoso é o processo –, e com o acompanhamento da partitura original de Vladimir Deshevov a cargo da pordenonense Orchestra San Marco e do violinista/regente Günter Buchwald. 
O evento foi um dos acontecimentos da 38º Giornate. “Fragment of an Empire” lê o desmantelar da Rússia czarista e a ereção da URSS a partir dos olhos de Filimonov, oficial não comissionado que perde a memória durante a Primeira Guerra – esmiúça-se o caráter num só tempo tenebroso e vão do conflito, que transforma a personagem numa das mais antigas vítimas cinematográficas do que hoje conhecemos por Estresse Pós-Traumático. Filimonov readquire consciência de si dez anos mais tarde, numa cena, segundo o Catálogo da Giornate, altamente influenciada por Freud, na qual a montagem tipicamente soviética faz suceder uma soma de cruzes: presentes do campo de batalha à igreja (surge mesmo uma misturada ao rosto de Cristo). 
A iluminação de Filimonov (Fiodor Nikitin) ocorre durante o seu vagar pela antiga São Petersburgo, agora uma Leningrado tributária do Construtivismo, no plano da Estética, e governada segundo um Socialismo que resvala à utopia. 
Em 1929, o filme procura materializar o futuro das repúblicas socialistas soviéticas, conduzindo exemplarmente seu protagonista da loucura à sanidade; da vassalagem cega à tomada de consciência política. O esforço é replicado no plano musical, na trilha de Vladimir Deshevov, que faz explodir, qual fogo de artifício, as imagens e os bombásticos letreiros propagandísticos que o filme não faz questão alguma de economizar. Sob a batuta energética de Günter Buchwald, a sessão forneceu-nos um vislumbre daquilo que experimentaram as plateias originais de “Fragment of an Empire” – experiência para jamais nos esquecermos.
Orchestra San Marco e Günter Buchwald
Foto de Valerio Greco

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2019: Dia IV

Depois de um breve gap, seguem as resenhas sobre a 38. Giornate del Cinema Muto, que ocorreu no princípio de outubro de 2019 na cidade de Pordenone, na Itália.

Dia 4, 8 de outubro, terça 
O dia já se inicia com ação, com uma sessão all William Hart – muitos acordaram cedo para pegarem as sessões matutinas da admirável estrela cowboy, mesmo que à boca pequena corresse sobre ela a máxima: You’ve seen one, you’ve seen them all
Três filmes rodados nos estúdios de Ince – Inceville, para se ter uma ideia de sua dimensão de citadela. Dois trazem as suas duas facetas mais comuns, contrapontísticas, porém, complementares na lógica do western: “The Sheriff’s Streak of Yellow” (1915) e “The Gunfighter” (1917). No primeiro, Hart é o xerife do vilarejo que franqueia a liberdade ao fora da lei Bill Todd, cuja mãe acabara de falecer, porque aquele reconhece que a dita senhora de certa feita o salvara da morte. 
A “amarelada” do xerife, que dá nome ao filme, faz com que os habitantes do local lhe retirem o título. Fazendo ouvidos moucos à ameaça do xerife de que da próxima vez ambos acertariam suas contas, Todd retorna mais tarde ao vilarejo. O xerife recebe-o à bala e recupera o seu título. Já em “The Gunfighter”, dirigido pelo próprio Hart, ele interpreta o fora da lei que sequestra a modista Norma Wright noutra lonjura do Oeste. A mocinha acaba tocando a moralidade adormecida do vaqueiro machão, ao acusá-lo de “Assassino”. Para redimir-se, ele, instado pelas autoridades, sairá à captura de um temível bandido, acabando por encontrar a morte. Qual caixa de pandora, Hart traz invariavelmente em seu fundo a bondade... 
A segunda sessão matutina traz como bombom o “Otello” de 1909, produzido pela “Film d’Arte Italiana”, companhia que compunha, juntamente com a empresa análoga francesa, as hostes em prol de um cinema “artístico”. Para a realização de tal objetivo, além do esforço na rodagem das películas em locação, investiu-se largamente nas estrelas teatrais: “Otello” tem no elenco importantes atores do teatro italiano e procura sublinhar a presença empírica de Veneza sempre que possível - chega a abrir-se, numa das duas versões disponíveis da fita, num trajeto de gôndola de Iago rumo ao local onde estava o mouro e a sua amada Desdêmona, cena inexistente no drama de Shakespeare. 
Pintado de negro, Ferruccio Garavaglia desempenha o papel de Otelo; a estrela Vittoria Lepanto é Desdêmona e Cesare Dondini, Iago. Vimos a versão italiana da fita, gloriosamente colorida por estêncil (segundo o Catálogo da Giornate) - a outra versão remanescente, disponível na Cinemateca Francesa, embora tenha a mencionada abertura no Grande Canal veneziano, está em branco e preto. 
A seguir, o ponto fulcral do programa, “Il Fauno di Marmo” (1920), de Mario Bonnard, outro dramalhão delinquescente. 
Elena Sangro interpreta a princesa Maria dello Jutland, que vive uma relação passional com o Conde Giorgio – responsável por desmascarar o marido dela, envolvido num plano para derrubar o governo. O seu marido morre pelas mãos do conde, com a colaboração dela. Ambos partem para Roma, ela agora na pele de Myriam, e ele, de um monge. Delirante imaginação melodramática... 
O Catálogo da mostra brinda-nos com a informação de que o filme se baseou frouxamente no romance de Nathaniel Hawthorne “The Marble Faun”, obra de 1860 que levou gerações de turistas norte-americanos a palmilharem a Roma ali descrita. Amores impossíveis, ruínas históricas e um sopro aventuresco: décadas mais tarde, “A Princesa e o Plebeu” (1953) motivaria ímpeto turístico análogo pelos mesmos motivos.
A seguir, novamente o riso suplanta o drama. Mais uma sessão das slapsticks europeias dedicadas às “Nasty Women”: Cunégonde, Léontine e uma carreira de mulheres transpõem sem pudor os limites da disciplina à anarquia. 
“Léontine s’envole” (1911)

Em recente entrevista, Maggie Hennefeld, uma das curadoras do programa e especialista no assunto, sublinhou o papel desses filmes libérrimos na luta contra o histórico cerceamento feminino. Aqui, uma das principais presenças é Léontine – jovem atriz francesa ainda não identificada pela historiografia do cinema, querida não só dos europeus como dos brasileiros, dada à grande presença de produções suas nos cinemas cariocas, no princípio da década de 1910. 
A liberdade feminina vivenciada nesses filmes explicita-se em “Léontine s’envole” (1911), na qual a mocinha ganha os ares da cidadezinha onde vive conduzida por dúzias de balões de festa. Já em “Léontine em apprentissage”, a jovem mostra-se incapaz de aprender variados ofícios que a tornariam a típica jovenzinha casadoira. Época luminosa esta do primeiro cinema, anterior à standartização hollywoodiana da conduta modelar, na qual a grande variedade de sujeitos e abordagens norteava a saciedade dos anseios dos mais variados públicos. 
À tarde, surge em cena, no filme central do programa – “Oh, Doctor” (Harry A. Pollard, 1925) –, uma das minhas grandes descobertas da Giornate de 2019: Reginald Denny. 
Como nessa minha não desprezível estrada pelo cinema silencioso eu deixei-o passar? Galã de perfeito timing cômico, Denny é uma das figuras mais carismáticas da década de 1920. Aqui ele é Rufus Billop, ricaço que, conforme o primeiro intertítulo nos anuncia, nasceu com um termômetro dourado na boca e foi desde sempre mantido numa redoma. Vêmo-lo jovem, com medo da própria sombra, pálido, órfão – não se assustem, trata-se de uma comédia. Supondo-se, como sempre, às portas da morte, e sabendo que apenas tomaria posse de sua fortuna dentro de três anos, Rufus consegue um adiantamento desse montante com três velhotes unhas de fome. A trama complica-se com a chegada à cena de Dolores Hicks – Mary Astor (suspiro/ovação do público enamorado presente na sessão). 
O plot organiza-se em torno do contraste do desejo dos velhos, de manter a saúde de Rufus pelos três anos de duração do contrato, e do desejo do moçoilo (tão enamorado por Mary/Dolores quanto o público da Giornate) de se mostrar digno de sua amada – daí o seu esforço canhestro de enveredar pelas atividades que, segundo a própria máxima de Hollywood, imprimiam a chancela de masculinidade aos seus praticantes: a corrida de carros, o motociclismo, o display de atletismo. Eterno morde e assopra hollywoodiano
Tudo termina bem, com uma hilária mostra de autoridade feminina no topo de um mastro em demolição da bandeira dos Estados UnidosO filme é de altíssimo interesse para aqueles que querem tanto um exemplo da saudável anarquia do cinema americano anterior ao Hays code quanto um antecedente direto das (maravilhosas) screwball comedies que vicejaram ali nos anos de 1930-1940*. 
No programa a seguir, um deleite para os olhos: “La morte che assolve” (de Alberto Carlo Lolli, 1918), numa belíssima restauração digital realizada pela Cineteca Italiana de Milão – a qual intentou mesmo uma reconstrução de cores à maneira das obras exibidas à época do lançamento do filme, com base noutras produções da estrela que o protagonizou: Elettra Raggio Rusconi. 
Rusconi fora, nas ribaltas, parceira de Ermete Novelli. No cinema, tinha uma reputação de diva comprovada por este filme, o único que sobreviveu dela. Era multifacetada – o “Programa” da Jornada nos lembra –, tendo exercido as carreiras de roteirista, diretora e produtora. Em “La morte che assolve” ela desempenha, num só tempo, os papéis da mulher abandonada pelo marido cruel e de sua filha, a qual acaba adotada por uma senhora norte-americana. 
Trata-se de um melodrama algo atípico, no qual a mãe – figura central no gênero melodramático – não morre para salvar a filha recém-encontrada, mas de causas naturais. Sua partida, e a “absolvição” a ela inerente, é prevista por este gênero tão ligado às convenções sociais, para o qual a mera existência de uma mãe com um semelhante passado macularia qualquer chance de ascensão social de sua filha. Resta, além da reafirmação desse que é um dos fundamentais gêneros artísticos do Ocidente, a performance matizada de Rusconi, que realiza um tour de force para se desincumbir de ambas as personagens. 
Após o jantar, encontramo-nos com a película que serviu de tema à Mostra: “Beverly of Graustark” (Sidney Franklin, 1926). A dama do título é Marion Davies, que passaria para a história do cinema como a canastrona depressiva e frustrada biografada no “Cidadão Kane” (Orson Welles, 1942), companheira do magnata da imprensa norte-americana William Hearst. O mergulho nos remanescentes da sétima arte demonstra-nos que a historiografia de tal arte é, helás, demasiado masculina. 
Davies é uma excelente comediante, cuja leveza e picardia mimetizam seus traços físicos de menina sapeca. Já devo ter falado aqui – se não falei, que pecado! – sobre “Show People” (1928), uma das mais belas reverências aos artífices (todos eles) do cinema, filme que é um dos amores da minha vida. Em “Beverly of Graustark” Davies reproduz o tipo que ela realizava à perfeição: a femme fatale debochada. Cai-lhe de para-quedas, sobre os ombros, o reinado de Graustark – a história tem mais lastros com o conto-de-fadas do que com a realidade –, uma vez que seu primo, recém-eleito príncipe do reino, fora tirado de circulação por um grupo oposicionista. Sabendo que o primo corria o risco de perder o trono caso não se apresentasse a tempo, Beverly traveste-se de homem no intuito de passar-se por ele. 
Para além das estripulias oriundas da atitude – a mais esperada delas é a moça encantar-se pelo belo Antonio Moreno, homem de armas do reino, e encetar uma vida-dupla para, num só tempo, saciar a sua paixão e manter as rédeas de Graustark enquanto o primo convalesce – está o ato político do travestimento, fundamental naquela sociedade na qual a subalternidade feminina era ponto assente. Como o filme nos mostra, em 1920, a máscara ainda era um adorno fundamental àqueles que desejavam transitar entre ambos os lados. 
A noite fecha-se com outro daqueles exemplares modelares de propagandas realizadas pelo cinema. O título, em tradução livre, é “Mary and Doug, ou quando Estocolmo e Kristiania foram virados de cabeça-para-baixo” (1924). É quase que alto-explicativo. As figuras referidas no título são Mary Pickford e Douglas Fairbanks, então arqui-famosos em todo o mundo. A comoção que ocasionavam nos locais por onde passavam era largamente repercutida pela imprensa especializada. Sabendo disso, o cineasta desconhecido responsável por esta pérola rodou uma propaganda (involuntária?) de ambos em visita aos dois locais explicitados no título, visando a emplacar certa marca de chocolates – doces recebidos por ambos das cidades como gestos de boas-vindas... 

* Interessados encontram-no numa qualidade mediana no Youtube.