O programa do sétimo dia da Giornate foi duplo, a exemplo do que ocorre aos finais de semana. A primeira obra exibida denomina-se “9 ½ (Film In 9.5mm, 1923-1960s)” e se trata de um compilado de filmes rodados com a câmera Pathé Baby ao redor do mundo, ao longo do escopo temporal anunciado no título. Já a segunda obra é “Circe the Enchantress” (Robert Z. Leonard, EUA, 1924), veículo da MGM à estrela Mae Murray. O acompanhamento musical de cada uma das obras ficou a cargo, respectivamente, do sexteto Ensemble Conservatorio G. B. Martini Bologna e de Donald Sosin.
“9 ½...” continua os festejos em homenagem ao centenário da Pathé Baby, iniciados pela edição presencial da Giornate em 2022. O dispositivo de filmagem e projeção foi produzido pela Pathé a partir de 1922 tendo como objetivo os registros caseiros. Embora ainda fosse custosa, penetrava um público consumidor bastante mais amplo que os dispositivos anteriores – o escritor paulista António de Alcântara Machado denomina “Pathé Baby: Panoramas internacionais” a série de artigos que ele faz publicar, em 1925, no paulistano Jornal do Comércio, atinente à viagem que ele faz ao velho mundo. A pena do cronista torna-se uma câmera de cinema amador, a flagrar ágil os recortes de realidade que ele escolhe tomar.
A curadoria do programa fica a cargo de Anna Briggs, Michele Manzolini e Mirco Santi. É importante nomeá-los porque, ao optarem por recortar o filme segundo temas específicos e organizá-los de modo a dar relevo a alguns elementos em detrimento de outros, elaboram um novo filme, cujo valor artístico supera os filmetes muitas vezes familiares donde tais recortes saíram. A Pathé Baby forjou uma porção de sucedâneos dos irmãos Lumière, além de flagrar os primeiros passos de um conjunto de cineastas experimentais.
Se a cena colorida das duas jovens mães anônimas, com os bebês nos braços, a comerem cerejas na atmosfera primaveril, já encanta por si só, ela adquire transcendência ao dialogar com uma série de imagens familiares rodadas do Japão ao Canadá, ao Chile e ao Brasil (há mesmo um par de filmes familiares saídos da UFF-RJ). O filme é composto de três partes, conforme detalha o programa da Giornate – o qual, aliás, oferece informações detalhadas de cada uma das obras: travelogues, interações com seres amados e experimentos. O sexteto a quem coube o acompanhamento musical da obra compôs uma peça amorosa e idílica, provocando no público o mergulho sentimental ocorrido quando mergulhamos no baú de fotos de família.
Já a segunda obra do programa é, como sublinha Jay Weissberg, um achado. Julgada perdida, “Circe the Enchantress” (1924) foi encontrada num arquivo de Praga (numa versão que, embora incompleta, é bastante compreensível).
A obra é um veículo típico do estrelismo norte-americano, dando espaço para que a estrela desdobrasse ad nauseam o seu tipo artístico. Mae Murray, dançarina profissional além de atriz – ela fora estrela, entre outros, do Ziegfeld Follies –, é nele uma cria da idade do jazz-band, nada devendo à “Mademoiselle Cinema” talhada pela literatura do escritor brasileiro Benjamin Costallat um ano antes. A trama a associa a Circe, que na “Odisseia” é a filha do Sol, feiticeira que habita a ilha de Eana, transforma homens em porcos e enreda Ulisses na viagem de volta do herói depois da guerra de Troia.
Surpreende a remissão clássica que a obra constrói logo em seu prelúdio, no qual Murray torna-se a Circe da fábula, que com uma etérea túnica helenística transforma os homens em feras, depois de saciar-se deles – a produção literária e teatral desta época mostra que o público de então estava muito mais escolado na mitologia grega que o de hoje.
Mae Murray, Sally Milgrim no filme, é uma descendente à altura de Circe. Loura platinada, de cabelos curtos, boca vermelha, joias caras e vestido colante, ela entretém um séquito de homens que, no geral, valem menos que os porcos de sua legendária ascendente – malgrados eles se vistam segundo a última moda das altas rodas norte-americanas. Um tipo destoa do conjunto, o Dr. Wesley Van Martun (o rígido e pouco encantador James Kirkwood), homem que encara com sobranceria os desatinos da jovem, desviando-se de seus encantos. É obviamente por ele que ela se apaixonará.
Ao ser repudiada pelo médico, o público descobrirá o outro lado dela: a jovem tresloucada habitara quando menina um convento, para o qual retorna, depois de sumir das vistas de seus antigos convivas sem deixar rastos. Ali, sofre um atropelamento ao tentar salvar uma orfãzinha, sendo internada com o risco de tornar-se paraplégica. Sally refaz o périplo que cabe a todas as personagens transviadas que pleiteiam a salvação. A essas alturas, o Dr. Wesley encontrara o diário da moça e descobre o seu paradeiro. Ao vê-lo, ela caminha em sua direção – cambaleante, porém a caminho da cura.
Se o entrecho é mesquinho, como o leitor se deu conta, a realização é digna de nota. A montagem do filme alterna um ritmo sincopado bastante tributário do jazz, usado em sua primeira parte, com uma lassidão melancólica, nas cenas em que a jovem deixa o frenesi e ruma ao reencontro com a infância. A música de Donald Sosin mimetiza com inteligência esta ambivalência: é a princípio jazzística, entregando-se, na metade final da obra, ao idílio.
No que concerne à temática, é igualmente digna de nota a fauna humana que circunda Sally, que faz emergir de modo modelar a loucura dos roaring twenties – a qual o cinema ajudou a construir. Destaque-se a banda de jazz (nessas alturas o piano de Sosin dá lugar à composição de um ensemble, que recupera o frenesi das jazz-bands da época) e o homem que, em travesti, anuncia-se como “a fada madrinha que vai realizar todos os desejos” da protagonista – ele não consegue; a salvação da mocinha estava na volta a um (aborrecido) passado livre de tentações.
Nenhum comentário:
Postar um comentário