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Hays code também evitaria que produções fossem barradas pelos órgãos censores que funcionavam em todos os estados dos EUA, cada qual com autonomia para decidir o que seria ou não visto pelo público. Uma vez que as ligas de moralidade espalhadas pela porção norte da América consideravam os filmes cada vez mais uma ameaça à ordem (Butter fala isobre sso no incrível
Banned in Kansas, que pode ser apreciado
online), não é estranho que os estúdios fizessem o possível para contornar a situação. De outra forma, faliriam.
Isso considerado, não adianta nos lamentarmos sobre tudo o que o cinema norte-americano perdeu com o código moralista, mas sim, de que modo os cineastas conseguiram lidar com o puritanismo da sociedade, transformando o cinema numa das mais lucrativas indústrias dos EUA. O exemplo mais fascinante, ao meu ver, diz respeito ao envolvimento romântico. O amor era um dos combustíveis que levavam as pessoas ao cinema. Porém, como o código o deixava um pouco sem graça, não demorou para que fossem inventadas estratégias para burlá-lo. Por exemplo, era obrigatório que os casais das telas dormissem em camas separadas...
Duas camas para um casal
Está sobrando uma cama, não? Isso certamente não foi um problema para uma porção de diretores. Rouben Mamoulian, que colocou Greta Garbo e John Gilbert numa enorme cama coberta com um imperscrutável cortinado em "Rainha Cristina" ("Queen Christina", 1933) - e fez a estrela deslizar apaixonadamente sobre o leito outrora ocupado por ambos enquanto seu galã a olhava da distância -, também arrumou um jeito inteligente de juntar Jeanette MacDonald e Maurice Chevalier em
"Ama-me esta noite" ("Love me tonight", 1932). Depois de se declararem um ao outro, a princesa vai para seu quarto e o alfaiate vai para o dele. Porém, eles são unidos na tela, já que os planos de cada um deles, deitados, são colocados lado a lado. Essa cena deu o que falar em alguns Estados, que pediram sua eliminação, porém, o fato de ela continuar na versão final do filme é sinal de que o
Hays code não a censurou.
O efeito foi aproveitado por outros cineastas, como Stanley Donen, que une Cary Grant a Ingrid Bergman em "Indiscreta" (tradução infeliz de "Indiscreet", 1958, que se refere, na verdade, à personagem de Cary - homem de meia idade que foge do casamento como o diabo da cruz...).
Um ano mais tarde foi a vez de Michael Gordon fazer o mesmo no delicioso "Confidências à meia noite" ("Pillow Talk", 1959), no qual Doris Day e Rock Hudson começam por dividir uma linha telefônica...
... e acabam dividindo muito mais...
De um modo um tanto quanto sensual, porém, dentro das especificações do código.
É por isso que as relações que minimamente implicitassem o sexo aconteciam em canapés, sofás, no chão - em qualquer lugar, exceto na cama. Neste filme mesmo, quando a puríssima Doris resolve passar um fim de semana romântico com o mocinho, ambos trocam beijos no sofá. Em "A Estranha passageira" ("Now voyager", 1942), os apaixonados, interpretados por Bette Davis e Paul Henreid, ilhados na estrada que leva à subida do Pão de Açúcar (!), dormem lado a lado para se protegerem do frio (!!). Mas dormem no chão.
É também no sofá que Hitchcock faz ocorrer o encontro sexual de Cary Grant e Grace Kelly em "Ladrão de Casaca" ("To catch a thief", 1954), ao som de uns fogos de artifício de conotação muito sexual...
Aliás, o Hitch é perito em criar metáforas sexuais ousadas. Que se dirá de "North by northwest" ("Intriga internacional", 1959), em que o plano de Eva-Marie Saint sendo salva por Cary Grant da queda de um despenhadeiro se sucede ao plano em que o galã iça a moça para a cama superior do beliche que dividem, no trem que os levará para a lua de mel. A cena é seguida por uma sugestiva entrada do trem num túnel...
Noutros filmes, as duas camas aparecem lado a lado. Porém, como os diretores sabiam que elas quebravam qualquer clima, faziam com que tivessem uma significação simbólica na cena, o que eliminava o efeito da censura. As camas onde Myrna Loy e William Powell trocam réplicas afiadas em "Thin Man" (1934) - aliás, o post é em homenagem ao Ricardo, que apontou essa cena numa de suas postagens - estão num hotel, nada mais comum...
No caso de Two-faced woman (1942), canto dos cisnes de Greta Garbo, George Cukor usou as camas de solteiro como símbolos das crescentes diferenças existentes entre o casal que acabara de se casar.
Mais ou menos isso fez Hitchcock ao focalizar o quarto que a bela e alta Ingrid Bergman de "Interlúdio" ("Notorious", 1946) divide com o espião baixinho e perigoso interpretado por Claude Rains, com quem foi compelida a se casar para que o reportasse ao governo norte-americano. A relação de ambos podia ser movida por qualquer coisa, menos sexo...
Ou então, as camas só figuram para cumprir a regulação do
Hay code, como vemos em "Ciúme, sinal de Amor" ("Berkeleys of broadway", 1949). Há duas camas de solteiro no quarto (duas que perigosamente parecem uma), mas os pombinhos se beijam no sofá que está à direita delas.
Algo semelhante ocorre no formidável "A costela de Adão" ("Adam's rib", 1949), no qual aquele casal de química tão perfeita que é Tracy e Hepburn dividem um quarto com duas camas, mas estão sempre circulando ao redor de uma - seja na hora do café, seja na hora de se despedirem para dormir.
Uma cama para doisUma porção de diretores introduziu apenas uma cama em cena. Alguns conseguiram algumas saídas belíssimas para que a ousadia não fosse censurada.
Noutro filme estrelado pelo casal Katharine & Spencer, "State of the Union" (1948), Tracy deita-se no chão e Katharine, na enorme cama de casal, e ambos discutem sua complicada situação conjugal. O homem acabara de ser indicado pelo partido como possível candidato à presidência, o que lhe requeria uma vida familiar estável e ilibada, diferente da que vivia até então.
Em Romeu e Julieta (1936), ora Julieta está prostrada na cama e Romeu, no chão, reclina-se para beijá-la, ora é Julieta que está no chão e Romeu, na cama.
Em "Os 39 degraus" ("39 steps", 1936), outra pérola de Hitchcock, a mocinha, algemada ao mocinho, é obrigada a dormir ao seu lado na cama. Ela não se deita (ao que tudo indica, isso não burlaria o código), mas nem por isso a tensão sexual deixa de estar presente. Ambos amanhecerão amigos - seria isso uma satisfação sexual simbólica?
O mesmo ocorre no lindíssimo "Bonequinha de Luxo" ("Breakfast at Tiffany", 1964), mas desta vez quem se deita é Audrey e quem se senta, George Peppard. Reparem que a mocinha veste apenas roupão e o mocinho, nada. Momentos antes, o diálogo travado entre eles dá a ver os andrajos sociais que vestiam - ele, gigolô, ela, prostituta. Agora que seus corpos estão tão desnudos quanto suas almas, os dois podem começar a se entender.
Isso aconteceu poucos anos antes da substituição do
Hays code pela indicação etária. Hollywood mostrava mais um sinal de amadurecimento...
Porém, antes disso, na alvorada da década de 60, Hitchcock - sempre ele - fez com que uma Janet Leigh e um John Gavin seminús se abraçassem numa cama de motel em Psicose ("Psycho", 1960) - cena determinante para a decisão da moça de levantar dinheiro a qualquer custo para casar-se com o rapaz, decisão que a leva a morrer pelas mãos de Norman Bates. Fico me perguntando como Hitch conseguiu fazer com que essa cena escapasse ilesa das garras da censura!...