domingo, 20 de dezembro de 2009

"Walking in the Winter Wonderland"

Muitos anos antes de aprender que o clima natalino quase palpável não passava de uma mistificação do mercado para induzir os consumidores a gastar dinheiro, o Natal era a minha época favorita. Agora que estou um pouquinho mais velha e sábia (e cética...), noto espantada que aquela sensação antiga ainda continua a mesma. Ainda continuo indo ao Shopping Iguatemi, não mais para pegar na mão os flocos de neve de mentira jogados de meia em meia hora do alto do estabelecimento (até porque faz 15 anos que o shopping parou de ensaboar os clientes com aquela mistura de água e sabão em pó), mas para ver a tradicional arrumação de Natal, abanar a mão para o Papai Noel (não posso mais me sentar no colo dele) e comprar enfeitinhos nas Lojas Americanas ao som da Simone cantando "Então é Natal...". A conclusão a que chego (não menos espantada) é que, embora algumas coisas sejam piegas, são elas que dão sentido para nossas vidas... O Macaulay Culkin entregando a pombinha da amizade para sua amiga bizarra que trata as pombas do parque no "Esqueceram de mim" (1992) me emociona até às lágrimas desde que eu era criança. Não menos que o solitário Senhor Matuschek da "Loja da Esquina" (1940) quando ele entrega aos seus funcionários a tão esperada bonificação e leva o rapazinho pobre que recém contratara para uma "verdadeira" ceia natalina. Pouco importa que esses e tantos outros personagens saiam de galochas e sobretudo sob a neve, enquanto eu os vejo com o ventilador ligado num calor que passa dos 30 graus. Isso decididamente não tem importância, porque me pego cantando "Winter Wonderland" e "White Christmas" dezenas de vezes por dia nessa época do ano, mesmo que estejamos no meio do verão e o pé de acerola daqui de casa esteja todo verde e vermelho. Essas canções e filmes têm gosto de infância, lembram-me de quando eu esperava o Papai Noel acordada, por isso sou tão grata por Hollywood ter perpetuado a "magia do Natal". A indústria do cinema pode ser até ser piegas, mas ela me faz muito feliz...
Quero transmitir um pouco desse clima a todos os amigos blogueiros que fiz por aqui. A todos, um grande abraço - tão grande quanto este que a Audrey está dando no Papai Noel. E ao som de "Winter Wonderland" cantado pela queridíssima DoDo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Melodrama no cinema: o mocinho vampiro, o Cinema Paradiso e outras cositas mais

Este post está saindo 15 dias atrasado. Uma overdose inevitável de trabalho impediu-me de escrevê-lo antes, o que é uma pena, porque, do contrário, teria conseguido registrar com mais fidedignidade a reação do público feminino presente na sessão a que assisti de "Lua Nova" (New Moon, 2009) - versão cinematográfica do romance-febre de Stephenie Meyer. Gritinhos, mais gritinhos... Suspiros, mais suspiros... O belo vampiro cavalheiro, meio Mr. Darcy, meio Superman, está levando as mocinhas à loucura. Lembram-se que, ao final de meu último post, comentei sobre as estudantes adolescentes que sonhavam com um namorado vampiro? Não pareceu ser diferente com as centenas de garotas que assistiram à mesma sessão de cinema que eu. Ao sair do cinema, lembrei-me da reação que eu e minhas amigas tivemos 12 anos atrás, nas sessões do "Titanic" às quais assistimos (foram várias...), quando os olhos de Leonardo Di Caprio apareciam na tela pela primeira vez. E aí, deixei de lado todo o meu ceticismo para tentar entender o que um bom melodrama faz com o público - especialmente o feminino.
Deixarei de lado detalhes sobre a introdução desse gênero no cinema e o poder da imagem cinematográfica, coisa que comentei no post passado, para me concentrar nas características do melodrama teatral - que passaram à literatura folhetinesca, ao cinema, à telenovela....
Thomasseau, estudioso do gênero, aponta que seu surgimento ocorreu na França do começo do século XIX, momento em que o público pós revolução francesa ansiava por enredos em que os tiranos eram punidos no final da história. O público alvo era os indivíduos iletrados. Por esse motivo, os enredos eram movimentados; os caracteres eram totalmente bons ou ruins e os bons triunfavam sobre os maus no final. O mundo do melodrama clássico era linear, claro, e os personagens sempre serviam a um moralismo fácil.

Todos que tiverem lido essa definição certamente têm na ponta da língua o nome de um filme que se encaixa no gênero. É muito difícil não ter, uma vez que esse foi - e é - o gênero preferido por cineastas do mundo todo. O que seriam aquelas três movimentadas horas do "Titanic" - com direito à perseguição do mocinho pobre e abnegado (que morre no final para salvar a sua Rose) por um vilão milionário e tremendamente cruel - senão a consumação do gênero? A partir daí, fica fácil o paralelo entre o mocinho e o bandido de Titanic e os vampiros bonzinhos e malvados da saga de Meyer. Um detalhe irresistivelmente risível do último exemplo é a explicação que Edward (o Superman Mr. Darcy) dá a Bella sobre os hábitos dos seres da espécie dele: não nos consideramos carnívoros, pois apenas tomamos sangue de animais, não de humanos. O "Casseta e Planeta", num de seus raros momentos de inspiração, deu uma resposta hilária ao paradoxo, ao colocar um arremedo de vampiro vegetariano se lambuzando com uma beterraba...
A aproximação entre as historinhas de Meyers e o melodrama não para por aí. O vampiro "vegetariano" brilha ao sol - a mocinha solta suspiros de emoção em "Crepúsculo" ("Twilight", 2008) ao vê-lo "ao natural" - retomando aquilo que fala Thomasseau sobre os traços característicos dos personagens melodramáticos extrapolarem o interior dos mesmos para se instalarem no seu exterior. É verdade que Edward é um vampiro - característica eminentemente negativa, como vimos no post passado - mas ele é bom, íntegro e incrivelmente belo (sua beleza até resplende...). Não bastasse isso, ele fala para a sua Bella as coisas mais doces (mais que doces, açucaradas, melosas) que um homem jamais falaria para uma mulher: "Você é minha vida agora"; "Se eu pudesse sonhar, sonharia contigo"; "Cuide de meu coração, eu o deixei contigo"; "Durma, minha Bella. Sempre serei seu. Durma, meu único amor.'". Desculpem-me os românticos de plantão, mas, credo... Não consigo ouvir essas frases sem rir. Aliás, ao ouvir o vampirinho chamando a moça de "My only love", invariavelmente me lembro do pasteleiro Beiçola da "Grande Família" chamando Nenê de "My true love." e aí sim é que me divirto - porque, para mim, essas frases pseudo-românticas só funcionam hoje na comédia.
Mas não é bem isso o que acontece. O Edward da versão cinematográfica de "Lua Nova" é um dos personagens mais frágeis dos últimos tempos. Ele fala exclusivamente frases feitas, é um livrinho de poesia barata ambulante, semelhante àqueles que nossas mães mantinham quando tinham 15 anos. Porém, o mais irônico é que ele faz o maior sucesso não apenas entre as mocinhas de 15 anos - idade de nossas mamães quando copiavam as tais poesias dos caderninhos das amigas - mas também entre as mulheres feitas. A proposta de casamento de Edward a Bella, cena que fecha o filme, foi acompanhada por um suspiro geral das crianças, moças e mulheres crescidas que lotavam a sala - os únicos que não a acompanharam foram eu, meu pai e o homem responsável por um grupo de garotas... Meu lado feminista se revolta, mas não tanto que me impeça de refletir sobre a reação exaltada. A primeira e mais clara conclusão diz respeito ao poder que a imagem tem de conquistar o público. A segunda, e não tão clara é que, em detrimento da evolução nos meios de comunicação, da liberação sexual e da conquista da igualdade (ao menos teórica) entre homens e mulheres, o sexo feminino continua se afirmando como o tolo, o piegas e o frágil. Enfin...


Filme que faz uma bela leitura sobre o interesse que os filmes (especialmente melodramas) despertam no público é o "Cinema Paradiso" (Nuovo Cinema Paradiso, 1988), que tive o prazer de rever antes de assumir aquela overdose de trabalho sobre a qual me referi. Giuseppe Tornatore faz uma escolha de mestre ao tomar uma cidadezinha italiana como palco de sua história. Desde os primeiros tempos do cinema, os críticos se referem ao potencial de fuga da realidade que tinham as imagens em movimento - fuga buscada especialmente pela população que vivia em situação financeira precária. A cidadezinha saída da imaginação do cineasta é igual a tantas outras dos anos 40 em que a vida social girava em torno da religião e do cinema - e, ironicamente, ambos os eventos ocorriam no mesmo lugar, na igrejinha da cidade, sob os olhos severos do padre que censurava os ósculos cinematográficos.
O evento que se sobressai é indubitavelmente o cinema. Não era atoa que o coroinha se esgueirava pela igreja desejoso de acompanhar o trabalho de censura do padre para pôr os olhos nos beijos proibidos. Ou que o público frequentador do cinema torcesse para os mocinhos, vaiasse os vilões e aplaudisse a vitória do bem sobre o mal ao fim das películas, suspirando quando os rostos dos casais apaixonados enchiam as telas. Muitas daquelas cenas que acompanhamos junto com a cidadezinha absorta são exemplos do melodrama: o casal que sofre até o último momento para só aí atingir a felicidade, o herói que consegue subjulgar o vilão ao final. Até mesmo o romance que o garotinho - agora o jovem projetista do "Nuovo Cinema Paradiso" - vive com a mocinha rica são tributários do gênero.

Porém, quanta diferença entre "Cinema Paradiso" e "Lua Nova"...
O filme de Tornatore é, do começo ao fim, uma linda ode a cinema e, porque não dizer, ao cinema melodramático - gênero que mais seduziu platéias ao longo dos tempos. Ele até mesmo acaba na tradicional cena de beijo, na qual se multiplicam os inúmeros ósculos outrora censurados pelo padre e agora editados pelo velho projetista como presente ao rapazinho que cresceu amando o cinema. No entanto, Tornatore tem um jeito todo especial para tratar os lugares comuns, tantas vezes diluindo-os no humor e mergulhando-os na mais bela trilha sonora que já ouvi. Enquanto isso, "Lua Nova" resvala na pieguice dos personagens artificiais desempenhados por "artistas" não menos artificiais - que pena da personagem da mocinha que deseja desesperadamente ser mordida pelo vampiro, a qual é desempenhada por uma atriz tão inexpressiva que parece estar mais morta que o personagem do herói.
Sim, concordo que é maldade levar um filme como "Lua Nova" tão a sério. Mas, afinal, por que não, quando não fazemos nada mais que exercer o direito sagrado daqueles que pagaram o ingresso e que têm no peito algo mais substancial do que uma vermelhíssima maçã do amor?...


O vampiro vegetariano é homenageado pela SET de novembro:


domingo, 22 de novembro de 2009

Greta Garbo e Alla Nazimova: duas vamps cinematográficas dos anos 20 e o estabelecimento do modelo de representação naturalista


Aconteceu nessa semana uma coisa bem especial: apresentei meu primeiro trabalho acadêmico a respeito da recepção do cinema no Brasil, assunto que estudarei no doutorado. Mais uma vez se efetivou aquele casamento entre trabalho e diversão sobre o qual falei ao comentar sobre o livro de Antônio Ferro e o filme "Alvorada do Amor"...
A ideia foi suscitada logo no primeiro mês de uma disciplina de pós que fiz como ouvinte no semestre passado, disciplina que se tornou a desculpa perfeita para que eu fugisse de minha dissertação ainda por terminar e mergulhasse na produção bibliográfica sobre o cinema e nas fontes primárias que o discutiram, dos anos de 1920.
A personagem da femme fatale começou a me perseguir logo que comecei a estudar uma peça teatral esquecida de Coelho Netto - "Pelo Amor!" (1897), um dos meus objetos de estudo do mestrado - ou melhor, logo que acabei de ver "A fool there was" (1915) e notei que o tipo desempenhado por Theda Bara muito se aproximava da Samla de Coelho Netto. A produção filmográfica dos anos de 1910 e 1920, que recebeu tantas influências do cinema, passou a me interessar sobremaneira: passei por Bébé Daniels, Gloria Swanson, Alla Nazimova e especialmente Greta Garbo, que conheci mais profundamente por meio do incrível site alemão Garboforever, o melhor que já vi, num só tempo enciclopédico e apaixonado. Acabei o mestrado saturada de Coelho Netto e almejando estudar como as personagens e características do teatro deslizaram para o cinema, eu também desejando deslizar para ele. E aí tive a oportunidade única de cursar uma disciplina sobre cinema na área de literatura - essas oportunidades só costumam aparecer quando a gente já cumpriu todos os créditos em cursos que nem de longe nos despertaram tanto interesse... - e pensar de modo mais sistemático na relação entre teatro e cinema e na personagem que me havia vampirizado.
Isso me levou a um livro de Ismail Xavier chamado O olhar e a cena, que, por sua vez, me pôs a pensar no contraponto entre duas vamps das telas. O estudioso toma Griffith e Hitchcock para demonstrar a efetivação de algo que os cineastas buscaram durante a primeira metade do século XX - a adoção da decupagem clássica e da representação naturalista em busca do que ele denomina uma "autonomia da cena". Isso fez com que ambos - e tantos outros diretores - se debruçassem em gêneros literários e teatrais como o melodrama, no qual não há nenhuma intervenção digamos, "externa" na obra (por exemplo, a intervenção de narradores intrusos), o que dá a ela um efeito de realidade muito maior. É, portanto, um cinema que esconde os mecanismos de criação da obra artística - sobre eles Hollywood principiaria a falar nos anos 30, na "Rua 42" (42nd Street) e em "Footlight Parade" (ambos de 1933) e em tantas outras películas que desvelam os bastidores teatrais ou cinematográficos.
Eu sabia alguma coisa sobre o quanto a interpretação sutil de Greta Garbo havia causado impacto entre o público e a crítica de meados de 1920. Sabia também que Alla Nazimova abriu falência depois de financiar "Salome", montagem vanguardista do drama homônimo de Oscar Wilde. Então, decidi averiguar até que ponto as montagens dos filmes tiveram alguma relação com a recepção deles nos Estados Unidos e especialmente no Brasil. O resultado da busca foi tão empolgante quanto minha viagem pelos microfilmes e páginas digitalizadas de jornais e revistas antigos.
sessão "Cinematografia" do jornal carioca A Noite, 1928.

Neles descobri que a Greta Garbo foi uma das atrizes sobre as quais os periódicos brasileiros mais falaram nos anos de 1927 e 1928. Não faltaram elogios à naturalidade da atriz, que parecia estar realmente vivendo os papéis que representava. Publicavam entrevistas supostamente feitas com ela - duvido que o fossem, pois naquele momento suas fugas dos jornalistas já eram célebres - nas quais ela afirmava que "Para que se possa realmente impressionar uma assistência, é necessário que todos os seus passos e movimentos sejam feitos com naturalidade, como se estivéssemos na vida real. (...) A única maneira de se poder sentir um beijo ao ser fotografado é se esquecer tudo e todos que nos avisinham e pensar-se que se está realmente, amando a pessoa que nos beija.". Na formulação, Miss Garbo rompe com a linha divisória que separa personagem e atriz, fazendo emergir aquilo que Walter Benjamin fala sobre a importância do ator representar-se a si mesmo. Esse foi um dos primeiros passos da construção da persona da atriz - fundamental naquela época de estabelecimento do star system, em que homens e mulheres que se dedicavam ao cinema tinham suas figuras moldadas para atraírem a atenção do público. "Flesh and the devil" (entre nós denominado "O Diabo e a Carne") tornou Greta Garbo uma das estrelas mais brilhantes da constelação hollywoodiana. As tórridas cenas apaixonadas que dividiu com John Gilbert - consideradas, não por acaso, deflagradoras de um relacionamento amoroso entre ambos - motivou reações exacerbadas pelo "realismo" que engendraram. Os ecos dos inúmeros beijos que trocaram foram sentidos no Brasil mais de um ano antes do filme ser apresentado por aqui, daí os fotogramas (alguns coloridos) da fita publicados nas revistas especializadas
A Scena Muda, 20 de outubro de 1927

e as inúmeras notas publicadas sobre ela e seu elenco: algumas risíveis, como a remissão do jornal A Noite a certa pesquisa feita com moças, monitoradas enquanto assistiam às cenas quentes do filme. O resultado já é apontado no título da notícia: "Alegrem-se as morenas!", pois eram as mais sensíveis ao conteúdo erótico do filme. Quem se lembrar daquelas cenas em primeiros planos do casal vai entender a reação das meninas - sabe-se da força que tem o primeiro plano para carregar o espectador para dentro da tela, tornando-o participante de um menage a trois, como diz o Hitch ao dissertar sobre o legendário beijo entre Ingrid e Cary Grant em "Interlúdio" (Notorious, 1946). Aliás, o enredo melodramático do filme não raro faz com que os periódicos estabeleçam um intercâmbio entre ficção e realidade: "O romance d’esses dous astros [Greta Garbo e John Gilbert] está se tornando um verdadeiro filme no qual o diretor Maurice Stiller pretendeu tomar parte principal e... ficou com a pior.", diz a revista A Scena Muda. A revista constata, num tom picante, que a terceira ponta do triângulo amoroso era o diretor sueco que deu a Miss Garbo o primeiro papel importante de sua carreira. A leitura da recepção do filme nos anos 20 demonstra como o gênero melodramático, aliado à decupagem clássica e à naturalidade em cena foi responsável pelo estabelecimento de Greta Garbo como uma das grandes atrizes do século XX, admirada até hoje por uma legião de garbomaniacs de todo o mundo, que a seguem com uma devoção que beira a idolatria. Não é um acaso, aliás, que meu post sobre a última fotografia da atriz seja de longe o mais lido deste blog.

A Scena Muda, 15 de março de 1928

O mais claro contraponto a ela talvez seja outra grande atriz das primeiras décadas do século, a russa Alla Nazimova, sobre a qual meu amigo Ricardo escreveu um post fascinante, repleto de informações bibliográficas e de uma arguta análise sobre suas películas mais controversas, "A Dama das Camélias" (1921) e "Salomé" (1923). Ricardo faz apontamentos interessantes e que merecem ser lidos sobre a montagem vanguardista do drama de Wilde - eu lamento não tê-las lido antes, pois me ajudariam muito na escrita do trabalho de final da disciplina. Os cenários art nouveau, estética que tanto influenciou Wilde e o ilustrador do volume de "Salomé", Aubrey Beardsley, casam-se perfeitamente com a atmosfera do drama. O desempenho do elenco é lento e teatral.
A Scena Muda, 10 de março de 1927

Nada da naturalidade de Garbo, o que há aqui é um erotismo nervoso e fatalista muito semelhante àquele que se nota no drama simbolista de Oscar Wilde, no qual a lua misteriosa parece influir nos caracteres, moldando suas ações. A lua é elemento fundamental tanto no drama quanto na ilustração dele e no filme. Ao fim da postagem há uma edição da película feita por mim, na qual isso pode ser notado.

"The woman in the moon", ilustração de Aubey Beardsley para "Salome" (edição de 1907)

A montagem tão influenciada pelo simbolismo teatral e a estética art nouveau era novidade na cinematografia da época. Por meio de long shots, ela toma um distanciamento do público e cobra dele uma leitura muito mais analítica - não o convida a compartilhar a ação e a dissolver-se nela, e sim a entender os mecanismos que a criaram. Isso, suponho, tenha levado a crítica - ao menos a brasileira - a olhar o filme de modo ressabiado. Uma das poucas resenhas que encontrei sobre ele demonstram a incompreensão da crítica, que se perdeu em detalhes como a idade avançada de Alla Nazimova para interpretar o papel de Salomé (a mesma crítica que não fazia nenhuma reserva aos papéis de crianças interpretadas por uma Mary Pickford já madura) e terminou por achar o filme "estranho" e lhe atribuir uma notinha bem baixa.
O semestre passado foi um dos mais proveitosos da minha vida acadêmica. Quantas coisas eu aprendi ao longo dele! Agora sei, por exemplo, porque o vampiro bonitão de "Crepúsculo" arranca suspiro das mocinhas de todo o mundo, fazendo com que muitas queiram estabelecer um relacionamento amoroso com alguém desta espécie - conforme conta minha tia, secretária de uma escola de Ensino Fundamental. Se muita coisa dos anos 20 envelheceu, uma continua novíssima: a forma de montagem e o gênero cinematográfico melodramático, que arrebatam o público para dentro da tela e o fazem enxergar o mundo como um grande filme ...



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O artigo contendo a pesquisa completa acabou de ser publicado na revista Todas as Musas. Aqueles que quiserem acessá-lo, por favor, cliquem aqui. (3/2/11)

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Do "Boulevard du Crime" para o mundo: influências do burlesco francês do século XIX

O título é mais pretensioso do que o tratamento que pretendo dar ao tema... Na verdade, quero lançar aqui apenas alguns apontamentos sobre ele, movida por um questionamento da minha amiga Cristina sobre o estilo de Dita Von Teese, stripper que há pouco causou furor aqui no Brasil. A moça, que inegavelmente é bem bonita, disse ter sido influenciada pelo burlesco norte-americano dos anos 40 e 50. Eu recuaria essa data uns bons 100 anos, e diria que ela descende das dançarinas de cabaré e café-concerto que arrasavam os corações dos homens de todo o mundo.
Algumas delas vieram para o Brasil em meados do século XIX, com a abertura, no Rio de Janeiro, do Teatro Alcazar, como a francesinha Aimée, que, nas palavras de Machado de Assis, era "um demoninho louro - uma figura leve, esbelta, graciosa, uma cabeça meio feminina, meio angélica, uns olhos vivos - um nariz como o de Safo - uma boca amorosamente fresca, que parece ter sido formada por duas canções de Ovídio - enfim a graça parisiense toute pure.". Até o cronista conservador é enredado por aquela mulher que considera tão ambígua: meio anjo, meio mulher, o nariz de Safo... É também no hibridismo que Henrique Fleiuss, caricaturista da Semana Ilustrada, se apoia para narrar a passagem da artista pelo Brasil. Desta vez ela é uma cadela (que apelido irritantemente simbólico...) que sai do Alcazar perseguida por inúmeros cães.

João Roberto Faria - aliás, a imagem saiu de suas Ideias Teatrais - afirma que as mães de família comemoraram o retorno da atriz a Paris... Por quê?
Sabe-se que a carreira teatral só foi reabilitada há muito pouco tempo. Já Dercy Gonçalves disse ter precisado mudar de nome para não envergonhar a família. Em meados de 1800, os palcos eram tomados como vitrines para que as moças se expusessem em busca de amantes ricos. Se era assim quando Sarah Bernhardt ingressou na Comedie Française, imagina-se então no teatro de Boulevard, que tinha uma liberdade muito maior na escolha do repertório. Isso é apanhado com muita perspicácia por Marcel Carné em "Les enfants du Paradis", (1945) que toma como cenário o "Boulevard du Crime", área da Paris do começo do XIX onde concentravam-se os teatros especializados nas comédias musicadas e nos melodramas (esses últimos apresentavam invariavelmente espetáculos sangrentos, que puniam os vícios e premiavam a virtude apenas no último ato, daí o nome atribuído ao local). Naquelas ruas espaçosas, comprimidas por curiosos, vendedores, artistas de variedades e circundadas por grandes teatros, podia-se ver um pouco do que se espalharia pelo mundo nos anos subsequentes. Quando chegaram ao Brasil, os malabaristas, os treinadores de animais, os palhaços, e as dançarinas de can-can concentraram-se nos teatros alegres das cidades mais importantes. Apresentavam pequenos números cômicos ou musicais e trajavam e dançavam com uma liberalidade desusada para a época - na época em que era escândalo uma moça mostrar o tornozelo. Esses números breves podiam ser frouxamente costurados compondo uma peça maior, e daí nasceram os vaudevilles, operetas, burletas, peças que tinham como objetivos alegrar e seduzir as plateias. Muitas atrizes faziam juz ao rótulo que lhes era imputado - a exemplo de Aimée, cujo nome já diz tudo - outras não, mas todas sofriam tremendo preconceito por parte da sociedade conservadora - e boa parte dela ia aplaudir as moças no teatro - daí a não conseguirem se casar com alguém que não fosse do teatro.
Na entrada do século XX, os costumes se modificaram drasticamente, em especial no que se refere ao espaço ocupado pela mulher na sociedade. Elas penetraram o mercado de trabalho, passando a exercer funções antes exclusivamente masculinas, e, com isso, puderam circular as ruas livremente. Com isso, também o rótulo de "sexy" começou a anunciar produtos mais ousados. Isso fica claro com um passeio pelo fascinante Fora do Sério: um panorama do Teatro de Revista no Brasil, de Delson Antunes. Conforme foram passando as décadas, as vedetes foram ficando mais esbeltas e mostrando mais o corpo. Um contraponto cinematográfico do fato é a cena de "Amor de dançarina" ("Dancing lady", 1933), na qual a jovem atriz burlesca interpretada por Joan Crawford é presa pela polícia no meio de um striptease. Outro é o conhecidíssimo Gilda (1946), em que a personagem de Rita Rayworth é arrastada do palco por Glenn Ford enquanto apresenta um número semelhante.

Joan Crawford - "Dancing lady"


Rita Hayworth - "Gilda"

Aliás, fica claro aí que o cinema foi influenciado pelo teatro desde o princípio. As atrizes que pululam nos filmes usando nada além de meias calças, collants (ou as 2 peças separadas), muitas plumas e paetês (por exemplo, a aspirante a atriz burlesca de "Ardida como pimenta", 1953) tiveram vida ativa nos palcos de todo o mundo naquela mesma época. Um exemplo é a vedete brasileira Berta Loran.
Berta Loran, 1948 (Cedoc-Funarte)

O tipo da mulher sedutora era tão recorrente que Oscarito chega a parodiá-lo em 1942 (a foto anterior e as duas próximas estão no livro de Delson Antunes).

Na mesma década de 40, Dora Vivacqua, a "Luz del Fuego" (outro nome sugestivo...) dedicava-se a números exóticos com serpentes.

Dita Von Teese bebeu nessa fonte popular velha e barbada. Percebeu que a beleza e o sexo sempre deram dinheiro - e ouso pensar que sempre darão - e construiu uma personagem que representa cabalmente esses atributos. É exuberante como a Marilyn Monroe, mas não tem sua sexualidade explícita - aquela mesma que afastou Hitchcock da loira, já que em sua testa a palavra "Sexo" estava escrita em neon e com letras garrafais... Ao contrário, a embalagem em que ela se deixou fotografar no Brasil - o vestido preto discreto e sóbrio - que tão visivelmente contrasta com suas apresentações, denota a esperteza da moça em construir em torno de si uma aura de mistério. A stripper marca uma nova época do teatro de variedades: é o retrato bem acabado da sociedade de consumo do século XXI, que ama a imagem acima de tudo e toma a beleza como uma poderosa moeda de troca. Como membro da geração Doutor Hollywood que é, moldou seu corpo de cima a baixo, a silicone e bisturi, para construir uma personagem desejável. Ela não representa uma mulher fatal, é a própria - no jeito de andar, vestir, falar e manter os olhos entreabertos enquanto fala, (sua entrevista ao Jô Soares diz tudo). A repercussão da visita da artista no Brasil é prova do poder que a imagem exerce: ela fez um show de 7 minutos (pelo qual cobrou um valor superior a $100.000,00) e apareceu 50 vezes esse espaço de tempo em diversos órgãos da imprensa nacional. A bolada é paga pelo conjunto, o striptease é, digamos, o seu climax. Dita merece o que ganha pela percepção que teve sobre o valor que têm as coisas na sociedade. Assim como mereceram tantas outras vedetes que povoaram o imaginário das pessoas nos séculos XIX e XX. Um brinde a ela, e um bem grande... naquela enorme taça dentro da qual ela dança...


sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Sinfonia de Paris: Gene, Leslie, Oscar, George Gershwin, Vincent... Who could ask for anything more?

Se alguém quer ser muito feliz e deseja ver o mundo através de lentes cor-de-rosa - nem que seja apenas pelo espaço de um par de horas -, "Sinfonia de Paris" (An American in Paris, 1951) é o remédio perfeito. Poucos filmes casam tão bem os caracteres, a fotografia e o som. Aquelas cores vivas e aqueles cativantes personagens, lindamente representados, se casam tão bem à música dos Gershwins que inevitavelmente o leitmotiv do pintor idealista americano grudará por dias na cabeça de quem o ouvir - ele gruda na minha sempre que revejo o filme, cada vez por mais tempo, e de um modo tão vivo que não raro me vejo saltitar pelas calçadas assoviando-o.


Quando fez o filme, Gene Kelly já estava entrando na casa dos quarenta, e acumulava trabalhos como coreógrafo e diretor. Leslie Caron tinha 20 anos e estreava nas telas. Porém, a diferença de idade não torna o par romântico menos crível. Leslie era sem dúvida bastante jovem na época. Porém, a juventude é uma qualidade mais da alma que do corpo, e ela acompanhou Gene durante toda sua vida - isso é evidente pelo lindo número musical que ele divide com Olivia Newton-John em "Xanadu" (1980) aos 68 anos de idade. Sua experiência como dançarino foi fundamental para a coreografia e execução do número musical mais espetacular de todos os tempos, o longo balé que fecha "Sinfonia de Paris" com chave de ouro, glosando, no plano musical, a interação que os personagens experimentam na ação dramática: lá está a rosa vermelha com que Jerry pinta sua amada Lise, rosa tornada pintura como Lise e ele, ambos engolidos pela tela viva sonhada pelo pintor; lá está a mocinha ambígua que ele ama, aproximando-se e fugindo dele ao seu bel-prazer; lá estão os cenários reais e fictícios com os quais cruza, uns tão importantes quanto outros, já que são responsáveis por criar uma Paris só do artista, que o assusta e o apaixona.
Essa é uma das comédias musicais que mais me fascinam. Que delícia ver a personagem de Gene cantando o amor com a personagem de Georges Guétary, que interpreta o noivo de Lise. Aliás, esse brinde ao amor, cantado pelos dois jovens que amam a mocinha, é tão parisiense - não só daquela Paris hollywoodiana, cujo exemplo maior é o debochado Maurice Chevalier, mas também da Paris cantada por tantos artistas, Hemingway, Lautrec,...
Uma dessas canções é nada menos que '"S Wonderful", de uma maravilhosa simplicidade. Depois de fotografar as personagens em primeiro plano, o número que a apresenta termina num plano de conjunto que engloba prédios, lojas, carros, ambulantes, transeuntes e curiosos, os quais parecem ser abraçados pelos jovens que ocupam as extremidades da cena, convidando o público do outro lado da tela a tomar parte na farra.

As belas músicas se somam para criar uma das melhores trilhas sonoras que já ouvi: "Our love is here to stay", "I Got Rhythm", "How long has this been going on?", Who could ask for anything more?". Toda ela entremeada ao leitmotiv daquele pintor que parece sentir-se o convidado principal da festa que Paris oferece diariamente aos idealistas: "A movable feast", como diria Hemingway.
E confesso que também eu me sinto convidada para essa festa, e isso me faz tão feliz que ocasionalmente recuso o convite temendo estragar a sensação de que tenho sempre que revejo o filme, temendo que a rotina estrague esse banquete para os olhos, os ouvidos e o espírito que é "Sinfonia de Paris".




segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Um ano de Filmes, filmes, filmes!


Faz um ano, passei um bocado de tempo no Blogger definindo como seria o meio de transporte que me levaria na viagem de desvendamento desse medium fascinante, o cinema. Não sabia, naquele momento, onde essa viagem ia dar, ou quem eu encontraria pelo caminho. Aproveitando a indefinição desse espaço, embarquei com a Ingrid Bergman no "Intermezzo" que a levaria para Hollywood para terminar espiando as tentativas audaciosas de uns cineastas para escaparem ao Hays code. O tour foi da Gloria Swanson até a Kate Winslet, de "Don't change your husband" até "The reader", 90 anos de estrada. Foi uma viagem longa e fascinante, acompanhada de perto por uma porção de cinéfilos que viraram amigos.
Sem dúvida, estou adorando o passeio! Para adoçá-lo um pouco mais, divido este bolo com todos os amigos que fiz em todos os cantos do mundo, feliz por poder dividir com eles esse meu carrinho rosa. Continuem embarcando!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Duas camas para um casal: o sexo no cinema clássico norte-americano

É sabido que, a partir de 1930, os estúdios cinematográficos norte-americanos se impuseram uma censura severa - resultado dos constantes escândalos gerados pelo oba-oba que imperava em Hollywood até então. O Hays code, redigido por um - acreditem - padre jesuíta, foi adotado pela MPPDA (Motion Picture Producers and Distributors Association) em 1930 e exerceu até 1968 um papel ambíguo. Por um lado, "canetava" os trechos de roteiros em que figuravam traições, vícios e sexo, deixando em maus lençóis muitos cineastas, obrigados a eliminar ou refilmar cenas. Por outro, não dava espaço para o surgimento de uma censura governamental mais severa que causasse estragos maiores.
O Hays code também evitaria que produções fossem barradas pelos órgãos censores que funcionavam em todos os estados dos EUA, cada qual com autonomia para decidir o que seria ou não visto pelo público. Uma vez que as ligas de moralidade espalhadas pela porção norte da América consideravam os filmes cada vez mais uma ameaça à ordem (Butter fala isobre sso no incrível Banned in Kansas, que pode ser apreciado online), não é estranho que os estúdios fizessem o possível para contornar a situação. De outra forma, faliriam.
Isso considerado, não adianta nos lamentarmos sobre tudo o que o cinema norte-americano perdeu com o código moralista, mas sim, de que modo os cineastas conseguiram lidar com o puritanismo da sociedade, transformando o cinema numa das mais lucrativas indústrias dos EUA. O exemplo mais fascinante, ao meu ver, diz respeito ao envolvimento romântico. O amor era um dos combustíveis que levavam as pessoas ao cinema. Porém, como o código o deixava um pouco sem graça, não demorou para que fossem inventadas estratégias para burlá-lo. Por exemplo, era obrigatório que os casais das telas dormissem em camas separadas...

Duas camas para um casal

Está sobrando uma cama, não? Isso certamente não foi um problema para uma porção de diretores. Rouben Mamoulian, que colocou Greta Garbo e John Gilbert numa enorme cama coberta com um imperscrutável cortinado em "Rainha Cristina" ("Queen Christina", 1933) - e fez a estrela deslizar apaixonadamente sobre o leito outrora ocupado por ambos enquanto seu galã a olhava da distância -, também arrumou um jeito inteligente de juntar Jeanette MacDonald e Maurice Chevalier em "Ama-me esta noite" ("Love me tonight", 1932). Depois de se declararem um ao outro, a princesa vai para seu quarto e o alfaiate vai para o dele. Porém, eles são unidos na tela, já que os planos de cada um deles, deitados, são colocados lado a lado. Essa cena deu o que falar em alguns Estados, que pediram sua eliminação, porém, o fato de ela continuar na versão final do filme é sinal de que o Hays code não a censurou.


O efeito foi aproveitado por outros cineastas, como Stanley Donen, que une Cary Grant a Ingrid Bergman em "Indiscreta" (tradução infeliz de "Indiscreet", 1958, que se refere, na verdade, à personagem de Cary - homem de meia idade que foge do casamento como o diabo da cruz...).

Um ano mais tarde foi a vez de Michael Gordon fazer o mesmo no delicioso "Confidências à meia noite" ("Pillow Talk", 1959), no qual Doris Day e Rock Hudson começam por dividir uma linha telefônica...... e acabam dividindo muito mais...

De um modo um tanto quanto sensual, porém, dentro das especificações do código.
É por isso que as relações que minimamente implicitassem o sexo aconteciam em canapés, sofás, no chão - em qualquer lugar, exceto na cama. Neste filme mesmo, quando a puríssima Doris resolve passar um fim de semana romântico com o mocinho, ambos trocam beijos no sofá. Em "A Estranha passageira" ("Now voyager", 1942), os apaixonados, interpretados por Bette Davis e Paul Henreid, ilhados na estrada que leva à subida do Pão de Açúcar (!), dormem lado a lado para se protegerem do frio (!!). Mas dormem no chão.


É também no sofá que Hitchcock faz ocorrer o encontro sexual de Cary Grant e Grace Kelly em "Ladrão de Casaca" ("To catch a thief", 1954), ao som de uns fogos de artifício de conotação muito sexual...


Aliás, o Hitch é perito em criar metáforas sexuais ousadas. Que se dirá de "North by northwest" ("Intriga internacional", 1959), em que o plano de Eva-Marie Saint sendo salva por Cary Grant da queda de um despenhadeiro se sucede ao plano em que o galã iça a moça para a cama superior do beliche que dividem, no trem que os levará para a lua de mel. A cena é seguida por uma sugestiva entrada do trem num túnel...


Noutros filmes, as duas camas aparecem lado a lado. Porém, como os diretores sabiam que elas quebravam qualquer clima, faziam com que tivessem uma significação simbólica na cena, o que eliminava o efeito da censura. As camas onde Myrna Loy e William Powell trocam réplicas afiadas em "Thin Man" (1934) - aliás, o post é em homenagem ao Ricardo, que apontou essa cena numa de suas postagens - estão num hotel, nada mais comum...

No caso de Two-faced woman (1942), canto dos cisnes de Greta Garbo, George Cukor usou as camas de solteiro como símbolos das crescentes diferenças existentes entre o casal que acabara de se casar.

Mais ou menos isso fez Hitchcock ao focalizar o quarto que a bela e alta Ingrid Bergman de "Interlúdio" ("Notorious", 1946) divide com o espião baixinho e perigoso interpretado por Claude Rains, com quem foi compelida a se casar para que o reportasse ao governo norte-americano. A relação de ambos podia ser movida por qualquer coisa, menos sexo...


Ou então, as camas só figuram para cumprir a regulação do Hay code, como vemos em "Ciúme, sinal de Amor" ("Berkeleys of broadway", 1949). Há duas camas de solteiro no quarto (duas que perigosamente parecem uma), mas os pombinhos se beijam no sofá que está à direita delas.



Algo semelhante ocorre no formidável "A costela de Adão" ("Adam's rib", 1949), no qual aquele casal de química tão perfeita que é Tracy e Hepburn dividem um quarto com duas camas, mas estão sempre circulando ao redor de uma - seja na hora do café, seja na hora de se despedirem para dormir.






Uma cama para dois

Uma porção de diretores introduziu apenas uma cama em cena. Alguns conseguiram algumas saídas belíssimas para que a ousadia não fosse censurada.
Noutro filme estrelado pelo casal Katharine & Spencer, "State of the Union" (1948), Tracy deita-se no chão e Katharine, na enorme cama de casal, e ambos discutem sua complicada situação conjugal. O homem acabara de ser indicado pelo partido como possível candidato à presidência, o que lhe requeria uma vida familiar estável e ilibada, diferente da que vivia até então.

Em Romeu e Julieta (1936), ora Julieta está prostrada na cama e Romeu, no chão, reclina-se para beijá-la, ora é Julieta que está no chão e Romeu, na cama.

Em "Os 39 degraus" ("39 steps", 1936), outra pérola de Hitchcock, a mocinha, algemada ao mocinho, é obrigada a dormir ao seu lado na cama. Ela não se deita (ao que tudo indica, isso não burlaria o código), mas nem por isso a tensão sexual deixa de estar presente. Ambos amanhecerão amigos - seria isso uma satisfação sexual simbólica?

O mesmo ocorre no lindíssimo "Bonequinha de Luxo" ("Breakfast at Tiffany", 1964), mas desta vez quem se deita é Audrey e quem se senta, George Peppard. Reparem que a mocinha veste apenas roupão e o mocinho, nada. Momentos antes, o diálogo travado entre eles dá a ver os andrajos sociais que vestiam - ele, gigolô, ela, prostituta. Agora que seus corpos estão tão desnudos quanto suas almas, os dois podem começar a se entender.
Isso aconteceu poucos anos antes da substituição do Hays code pela indicação etária. Hollywood mostrava mais um sinal de amadurecimento...

Porém, antes disso, na alvorada da década de 60, Hitchcock - sempre ele - fez com que uma Janet Leigh e um John Gavin seminús se abraçassem numa cama de motel em Psicose ("Psycho", 1960) - cena determinante para a decisão da moça de levantar dinheiro a qualquer custo para casar-se com o rapaz, decisão que a leva a morrer pelas mãos de Norman Bates. Fico me perguntando como Hitch conseguiu fazer com que essa cena escapasse ilesa das garras da censura!...