segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Life is a Cabaret... O “Cabaret” de Liza Minnelli e o de Cláudia Raia

Na semana passada, fui ver Claudia Raia incorporar Sally Bowles em “Cabaret”, produção cuja trilha sonora eu amo há tanto tempo – muito antes de ter visto pela primeira vez o filme protagonizado por uma extraordinária Liza Minnelli, merecidamente premiada com Oscar de Melhor Atriz em 1972. Saindo do espetáculo, decidi tirar do baú das memórias o post que há tanto planejava escrever sobre o filme, desta vez incluindo a peça no imbróglio: para convidar (fortemente) o leitor a assistir ao filme e à peça; nem que seja para vê-los por detrás de meus olhos...
“Cabaret” (Bob Fosse, 1972) é um dos grandes filmes de todos os tempos. Épico pelo modo como reconstrói a Alemanha pré-nazista, atolada em dívidas e em vias de uma conflagração social que acaba por se realizar no plano da política, com a subida de Hitler no poder. A história se passa em 1931, ano em que o partido nazista estava prestes a alcançar a maioria de assentos no parlamento alemão, acontecimento que garante a Hitler o posto de chanceler – primeiro passo do trajeto certo rumo à presidência do país. O momento histórico tomado por Joe Masteroff para a escrita do libreto de “Cabaret” (1966) é escolha certeira. A época era de incertezas para a Alemanha. Desde uma década antes, em “Mein Kampf”, Hitler já dera provas de suas tendências antissemitas. No poder, começaria a levá-las às vias de fato, guiando um atentado contra a comunidade judaica que deu a gente sabe onde. Por outro lado, a mão de ferro do líder nazista conduzia o país para fora da crise econômica, enquanto que seu carisma impelia-o cada vez mais para o centro da arena política: eventos como a convenção de Nuremberg de 1935, cinematografada no assustador “O Triunfo da Vontade” (1936), dão mostras de onde ele chegaria não muito tempo depois.
A atmosfera de 1931 prenunciava a catástrofe. Nada melhor que tomá-la como recorte temporal para uma obra cujo título remete ao gênero de entretenimento historicamente conhecido por sua intervenção política, o cabaré. Em Paris, onde nasceu, o gênero esteve sempre imbricado na política. Isabelle Marinone, no ótimo “Cinema e anarquia” – livro que o acaso acabou de fazer cair em minhas mãos – traça o percurso dos militantes do movimento anarquista por cabarés como o Cabaret du Chat Noir, espaços em que a crítica ao governo tinha como meio de expressão os teatros de sombras, ventríloquos e números musicais.
A ruptura com o status quo é característica que norteia a intervenção dessas casas: daí o humor ferino voltado aos governantes e aos símbolos de identidade social que eles impunham aos cidadãos, como o amor à Pátria e a terra; daí a negação da moral burguesa, efetivada na defesa dos foras-da-lei e reversão dos hábitos e dos símbolos impostos às pessoas. Migrando para a Alemanha no início do século XX, o gênero conservou a sátira política. Vestiu-a, no entanto, de humor negro. Essa ânsia de se fazer graça com as situações desesperadoras, comum ao humor negro, encontra lugar perfeito para sua realização naquele momento histórico escolhido por Masteroff.

Sally Bowles é o retrato perfeito da parcela da classe artística que encontra, no cabaré, solo fértil para plantar sua ojeriza pelos “bons-costumes”. É mulher liberta dos ditames da sociedade burguesa do início do século – sexualmente exacerbada e possuidora de uma incontrolável inclinação para a bebida. A Sally que brilhou por anos na produção da Broadway (foram 1165 apresentações entre 1966 e 1969, segundo o IBDB) eu não conheci. No entanto, conheço bem a de Liza Minnelli, que consegue ser irresistível em sua molequice, rebeldia, revolta e calor humano. Liza desincumbiu-se com perfeição da, já naquele tempo, célebre personagem. Tinha 26 anos na época e passara boa parte deles cantando, incentivada pela mãe Judy Garland, de quem herdou a voz poderosa e o talento como intérprete. No momento em que dá vida à Sally Bowles, já tinha total domínio de voz e de palco – fora treinada, em grande medida, na mesma Broadway onde nascera sua personagem. No entanto, a Sally de Liza nasceu para as telas. A naturalidade que ela imprime à protagonista – característica patente nas parcelas dramática e musical do filme – coaduna-se bem com o cinema, que clama por uma menor amplidão dos gestos. Seu desempenho cai como uma luva quando contraposto ao do caricato mestre de cerimônia (desempenho magnífico de Joel Grey, que deu vida à personagem do M.C. durante todo o percurso da peça na Broadway), embora o desenho dos caracteres de ambos – e de todos os artistas do cabaré – sejam tributários dos teatros de marionetes que nasceram junto com os cabarés parisienses. Igualmente acertada é a configuração de seu par romântico, estudante americano (um louro e angelical Michael York) que, de mudança para Berlim, encontra Sally e logo é atado pelo condão de prazer, liberdade e desvirtuamento que emana dela.
O mundo de Sally é o cabaré Kit Kat Club, espaço no qual ela se molda para agir nos palcos da arte e da vida – metáfora que encontrará sua final verbalização na canção-tema do filme, misto de declamação ácida e alegria de viver. Cadê adjetivos pra eu me referir a essa música, deus do céu... Ao cantá-la, Liza repete a sua performance que teria arrepiado os cabelos de Charles Aznavour – como ele faz questão de ressaltar em sua autobiografia – quando ele a ouviu numa casa de shows. Além disso, sua interpretação contém toda a irônica suavidade que ela faz sua personagem exalar durante todo o filme.
No que toca à cinematografia, Bob Fosse arrasa ao trazer para a forma do filme toda a revolta política historicamente atrelada ao gênero de espetáculos que ele tematiza. A câmera começa por mostrar, numa montagem intercalada, a chegada de Brian Roberts à Alemanha e o mundo que ele encontrará, mundo metaforizado pelo efervescente Kit Kat Club, com suas mulheres pintadas e seminuas, suas libações, sua sexualidade dúbia e seu humor negro que a todo o tempo bota em cena, parodisticamente, os desmandos do partido nazista. Do encontro entre Sally e Brian nasce o atípico (anti-burguês) romance, que depois se torna um triângulo amoroso tendo como o terceiro vértice um patriótico ariano, membro orgulhoso do status quo. Através das andanças dos três por uma Alemanha em vias de aderir maciçamente ao nazismo, vemos metaforizada com agudeza a imagem do homem nazista - indivíduo num só tempo charmoso, sedutor e perigoso: imagem igualmente impressa pelos soldadinhos louros e rosados que entoam um sugestivo “Tomorrow belongs to me”, seguido da saudação nazista (e me emocionam a cada vez que os vejo, o que patenteia a ambiguidade que o diretor propõe criar para o grupo).
Imagens fragmentárias de dentro e fora do cabaré são costuradas de modo a dialogarem ou se chocarem umas com as outras, reforçando o explicitado na letra da canção-título, de Fred Ebb: “Life is a Cabaret, old chum. So come to the Cabaret.”. Letra cantada por uma Liza Minnelli já a essa altura sublime, coroando cabalmente um desempenho que foi brilhante durante todo o espaço do filme. Rosada, altiva e grandiosa, Sally provará ao mundo a máxima defendida na canção: ao invés de um marido aburguesado, de um filho enfadonho, e de uma vida de lavar fraldas, escolhe os palcos, onde poderá realizar aquela existência artística explicitada pela música que canta.

Ao tomar nos ombros a personagem imortalizada por Liza Minnelli, Cláudia Raia assume uma empreitada de risco. Ela se sai muito bem. Sua Sally tem pouco da de Liza – o que está longe de ser uma crítica. Sendo menos jovem, é igualmente menos cheia de vida, mais sombria e perturbadora. Não conheço a peça da Broadway, não sei se isso foi algo pensado ou casual, mas penso que caiu bem o viés decadentista que uma Cláudia Raia sobejamente maquiada e assustadoramente magra dá à sua criação.
No palco, ela parece uma gigante quebradiça; ébria todo o tempo e de uma intensidade um tanto quanto assustadora. Provocadora. Assim como seu M.C., um sensacional Jarbas Homem de Mello, que transforma o assexuado M.C. de Joel Grey num homem que exala sexo por todos os poros – e exala uma sexualidade ambígua, bem pouco burguesa, tão bem cabível num show de cabaré. O traçado da personagem de Sally pontua sua decadência no seu mais alto grau. Ela não é a moça esvoaçante de Liza, é claramente uma prostituta, moradora de um quartinho apertado do Kit Kat Club. É lá que começa a se envolver com um Brian Roberts que desde logo já deixa claro seu homo(bi)ssexualismo. Na peça não há tempo para o trabalho cuidadoso com a sexualidade do personagem de Brian, como acontece no filme. O personagem do ariano sai igualmente esvaziado de sua ambiguidade. Mas o soldadinho mirim é muito bem composto, numa das melhores cenas da peça e, na, creio eu, melhor versão musical dela. A paulatina interferência do nazismo na vida dos alemães é construída com eficácia e beleza na cena do noivado da dona da pensão com o judeu; a crítica social demolidora fomentada pelo cabaré é patenteada na (ótima) cena em que M.C. simbolicamente interfere na paz do novo casal – sem contar a cena do M.C. com a macaca, pra mim uma das mais venenosas críticas de todos os tempos, que conserva na peça toda a força que tem no filme.

A peça é de alta qualidade e vale a visita no teatro. Porém, penso que uma Sally menos submetida ao vício e à prostituição – ou seja, menos vítima do status quo, aumentaria seu poder de crítica social. A Sally de Liza era agente de seu destino; a de Cláudia parece ser sua vítima. Gostaria igualmente de ver a banda aparecendo mais – a iluminação resolveria nos momentos em que ela precisasse ser ocultada, se bem que eu a quereria todo o tempo em primeiro plano, pra fazer essa costura entre palco e vida proposta no filme. E adoraria ver Cláudia Raia entoando, de lambuja, a versão original de Cabaret (isso não faz parte do escopo do espetáculo, eu sei...). As versões brasileiras das canções, criadas por Miguel Falabella, são surpreendentemente boas. Mas a trilha sonora de "Cabaret" é a trilha sonora de "Cabaret"... Incomparável.
E agora sim, fechando, meu bolso de estudante não consegue assimilar um ingresso tão absurdamente caro (vá o leitor ao site do Ingresso Rápido e confira por si só). Além de ser proibitivo para a maciça maioria da população, é um contra-senso que uma peça com esse tom crítico – tematizando um gênero de espetáculos nascido historicamente entre a empobrecida classe artística dos Novecentos -, seja feita hoje só para os endinheirados. Meia dúzia de ingressos populares por sessão não bastam num teatro tão grande quanto o paulistano Procópio Ferreira.

*

A primeira imagem é do pôster que anuncia as primeiras encenações de Cabaret. Depois do Broadhurst Theatre o musical ainda iria para o Imperial Theatre e o Broadway Theatre.

domingo, 30 de outubro de 2011

Era uma vez um tolo e uma vampira: desdobramentos da “Vampire” do poema de Rudyard Kipling nos filmes de 1915 a 1966

Vestindo unicamente uma túnica branca, a mulher reclina-se sobre o homem que jaz em seu leito de morte. Ela é uma vampira. Ele, sua última vítima. A pintura do inglês Phillip Burne-Jones causou sensação ao ser exposta em público pela primeira vez, em 1897. Tanto que, inspirado por ela, Rudyard Kipling compôs o poema “The Vampire”. Nos versos, um eu-lírico aparentemente perturbado estende-se longamente sobre o perigo representado por aquela mulher misteriosa, perto da qual os homens não passavam de tolos.

A fool there was and he made his prayer
(Even as you and I!)
To a rag and a bone and a hank of hair
(We called her the woman who did not care),
But the fool he called her his lady fair
(Even as you and I!)

Burne-Jones e Kipling não tiraram o tema do nada. O arquétipo da mulher fatal povoa o imaginário ocidental desde a antiguidade e, como a fênix, renasce continuamente das cinzas. A cada retorno, crescem suas vítimas e os sentidos a ele vinculados. A mulher descrita por Kipling empresta a vilania e o éthos misterioso das fêmeas medievais, tantas delas mortas acusadas de servirem o demônio. No que toca ao seu nome, também remete ao personagem de Drácula, a quem Bram Stokem deu vida no mesmo ano. Mas igualmente respinga a literatura Romântica, especialmente no que diz respeito à faceta exótica e erótica de tal produção. A “jovem fada”, ser belíssimo e selvagem que enreda o cavaleiro em armas, obrigando-o a vagar a esmo na “fria borda da colina” (“La Belle Dame sans Merci”, poema de Keats – 1919); a maga que se veste de menino no intuito de penetrar no mosteiro onde habita o monge Ambrósio e lá, o induz à libertinagem (“Monk”, romance de Lewis, 1796): aproxima essas mulheres a invulgar beleza, o porte altivo e dominador, a frieza, o canibalismo sexual.
La Belle Dame Sans Merci de Sir Frank Dicksee (1853 - 1928)

O vampirismo delas é metafórico, o que não significa que, na literatura romântica, elas não convivessem com as vampiras literais. Um exemplo é a esplêndida Clarimonde do conto “A morte amorosa”, de Gautier. “Aquela mulher era um anjo ou um demônio, e talvez os dois; certamente não saía do flanco de Eva, a mãe comum.” – diz o pobre padre ao lembrar do momento em que os olhos dele encontraram os dela, quando ele era ordenado: “Que olhos! Como um raio, decidiram o destino de um homem.”. E efetivamente decidiram: o homem torna-se amante da vampira que, para se nutrir, bebia gotículas de seu sangue quando ele dormia.
O tema me interessa, aqui, pela relação que ele estabelece com o campo cinematográfico. Aliás, meu fascínio pela personagem da “Vampire” data da época em que inaugurei este blog, (quase) exatos três anos atrás. Nada melhor que lembrar do aniversário do meu filhinho trazendo-a de volta; especialmente considerando-se que o aniversário de “Filmes, filmes, filmes” é no Dia de Finados, dois após o Halloween... Meu fascínio foi primeiro gerado pela Theda Bara, hoje uma ilustre desconhecida da massa que vai ao cinema, porém, a principal atriz de meados dos anos 10. Em 1915, a atriz, então novata, encarnou a personagem de Kipling de modo tão altissonante que ela e sua película adquiriram fama instantânea. Na aurora do cinema de estúdio, parecia sensacional que uma atriz – ainda mais uma que desempenhasse papel de vilã – recebesse 100 cartas diárias, muitas com pedidos de conselhos; e açulasse as ligas de moralidade em torno de todos os EUA; e do dia para a noite começasse a rodar o mundo como símbolo de tudo o que era proibido e delicioso. Bara foi pioneira em mostrar o potencial mercadológico, social e simbólico do cinematógrafo.
O filme em questão, “A fool there was” (dirigido por Frank Powell para a Fox Films), apropria-se literalmente dos versos do poema de Kipling, que servem de intertítulo à encenação do declínio de um homem de família que se envolve com a personagem-título: “bela dama” tão conhecedora do “Desconhecido”, porém, tão alheia à moralidade comum. A fita aproveita-se igualmente da trama de “A fool there was”, drama em três atos de Porter Emerson Browne – encenado com tanto sucesso na Broadway (em 1909) que motivou o escritor à produção o romance homônimo; texto, aliás, dedicado a Robert Hilliard, criador do principal papel masculino no palco da Broadway e um dos responsáveis pelo processo de plágio movido contra o filme. A corte acusa o filme de se apropriar do título do livro, nada dizendo sobre a linha geral da trama – da qual, diga-se de passagem, ele também se apropria.
No poema, o caso entre a “Vampira” e o “Tolo” ganha o estatuto de símbolo: tempo e lugar são suspensos; em primeiro plano está a paulatina destruição do homem que desperdiçou “honra e fé e um intento verdadeiro” com a “mulher que não se importava”. Na peça e no romance, o símbolo é encarnado num tempo e lugar: a movimentada Nova Iorque do início do século XX, mais especificamente a elegante Fifth Avenue, onde cresce uma menina e os dois meninos que a amam. Todos são amigos. Depois de adultos, a jovem casa-se com um desses dois rapazes e tem uma filha. A família e o amigo vivem às mil maravilhas até que o homem – John Schuyler, o tolo em questão – é convidado a viajar ao estrangeiro a trabalho.
Seu encontro com a “Vampire” não fica devendo nada à literatura anterior que trata do tema. Também seus olhos são presas dos olhos da malvada: “[Deus] não me ajudou; e não consegui resistir. Eu tentei! Como tentei! Mas havia algo em seus olhos, eram olhos que queimavam e crestavam!”. Sua destruição é descrita nos mínimos detalhes no romance. No fim de seus dias, já preso de corpo e alma ao comando da femme fatale, torna-se “Uma imitação enfraquecida, miserável, digna de piedade do John Schuyler que ele havia sido.”. “Honra, e fé, e um intento verdadeiro, uma esposa, uma criança, uma reputação, um caráter”, tudo ele perdeu, restando-lhe apenas o “nu, úmido esqueleto”. Como um pássaro encantado por uma cobra, ou um príncipe encantado por uma bruxa má – analogias postas no romance – não havia escapatória ao ser humano escolhido como vítima pelo ser supra-humano. Isso aproxima “A fool there was” da literatura romântica e da decadentista/ simbolista do fim do século XIX, sensíveis ao intangível e ao misterioso que circundava o homem.
Katherine Kaelread, a Vampire da peça de Emerson Browne

Porém, a história de Porter Emerson Browne é, sobretudo, uma peça moralista. No cerne da questão está a ambição do homem, que abdicava da segurança do lar e da proximidade da família e rumava ao desconhecido. Mesmo sua força e pureza de caráter, reafirmados ad nauseam nas primeiras 100 páginas do livro, não conseguem ajudá-lo quando ele se encontra com os olhos e depois, com o restante do corpo da mulher fatal. À segurança do lar ele prefere o amor da vamp: amor que queima “como o fogo do inferno”, tão excitante quanto a rosa vermelha cujas pétalas ela debulha sobre ele. Tudo isso é contado com fortes tintas melodramáticas, que insistem em pintar a felicidade no seio do lar e num matrimônio sadio em contraposição à saciedade sexual nos braços da vampira – alegria intensa porém, mentirosa (“false heaven of unreal joys”, como pomposamente descreve o romance), como a história desfilará escolarmente ante os olhos do público.
O fim do homem é a mais vil das mortes: abandonado pela família e amigos e decrépito, ele despenca aos pés da vamp, que debulha sobre seu corpo as últimas pétalas vermelhas que ela lhe oferecerá. Aqui não há dupla interpretação – diferente do conto de Gautier, em que o padre, depois de matar a vampira, questiona-se se ele seria realmente mais feliz sem ela. No final da peça – diz a crítica dela publicada na época – a luz que banhava o casal de libertinos indicava com clareza que não era o céu que os esperava; expediente que a própria crítica aplaude, já que “textos moralizantes nunca são demais” – ela afirma.
O cinema, desde seu surgimento, acompanhou o teatro no emprego da personagem tipo da mulher fatal. Porém, no escuro da sala de exibição elas pareciam ao público mais deleitantes do que perigosas. Em “A fool there was”, a “Vampire” de Theda Bara termina com um riso sardônico enquanto desfolha rosas sobre o cadáver de John Schuyler. Nada de luz indicando punição: o homem é punido; ela sai vitoriosa. Não muito depois, por influência das ligas de moralidade, as vamps das telas principiariam a amargar claras punições pelos seus atos. Antes disso, Theda Bara vira ídolo de homens e mulheres, velhos e crianças; é transformada pelos fãs em conselheira e até leva a cabo o insólito papel de madrinha dos soldados americanos durante a Primeira Guerra (ela recebe o cetro ao som de entusiastas Vamp! Vamp! Vamp! vindos dos soldados, como lembrou-me certa vez o amigo Ricardo Leitner).
Fotografia de divulgação de "A fool there was"

Depois de Theda Bara, muitas mulheres fatais amargaram com a morte os crimes que cometeram. Os anos de 1910 para 1920 foram, para o cinematógrafo, de busca de um crescente realismo; de uma crescente humanização de arquétipos – como constata Edgar Morin no saborosíssimo (e inteligentíssimo) As estrelas: mito e sedução no cinema. A vamp de Theda Bara era uma força da natureza; selvagem, inexplicável e indomável. As posteriores eram mais humanas, suscetíveis ao amor, à consciência de seu erro e, na lógica pedagógica do melodrama, merecedoras de punição. Conforme o realismo assenta-se ao cinematógrafo, personagens como a “Vampire” de “A fool there was” são consideradas mais e mais ridículas (para constatar o fato basta que assistamos a trechos deste filme com os pressupostos de hoje). Isso as leva a serem lidas pelo cinema, nos anos subseqüentes, pelo viés do humor.
Exemplo delicioso é a participação de Gloria Swanson num episódio do “The Beverly Hillbillies” de 1966, no qual ela incorpora a personagem de Theda Bara num filme rodado dentro do episódio. O “Tolo” é o pai de família, uma espécie de Zé Buscapé, o que por si só já dá dimensão de humor à apropriação. A graça ainda será multiplicada pela encenação ultrateatral do casal, pela alteração do conteúdo e alguns diálogos – numa clara referência à película de Bara – e pelo desfecho diametralmente oposto, já que o pai larga de bom grado a mulher fatal para ficar com a esposa e a filha. Abaixo há os dois vídeos para a comparação (e a diversão).



Outra releitura inteligente do tema é feita na “Roda da Fortuna” (dirigido por Vincente Minnelli, filme que foi tema do post abaixo), mais especificamente na sequência musical “Girl Hunt: a Murder Mystery in Jazz”, protagonizado por Cyd Charisse e Fred Astaire. Este filme, como o anterior, faz uma leitura metalinguística da arte; desta vez, do teatro. O número soma mistério e dança, numa referência ao filme noir – outro gênero que fizera largo uso da mulher fatal – e ao cinema musical. Desta vez, não retornam trechos do filme de Theda Bara, mas sim do poema de Kipling. A sequência apropria-se de símbolos criados pelo poeta, todavia, desfragmenta-os e os ressignifica. O farrapo, o osso e o chumaço de cabelo (rag, boné, hank of hair) aos quais o “Fool” de Kipling faz sua oração serão, no número musical, transformados nas pistas que levarão o detetive protagonizado por Astaire a descobrir o assassino ladrão de esmeraldas.
Ao longo do número, acompanhamos as andanças do homem, apresentadas de modo fragmentário e aludindo todo o tempo aos símbolos em questão: quer seja no ateliê de alta costuras, na loja de perucas ou no insólito “Bar do Esqueleto”, onde ele novamente encontrará a mulher “má” e “perigosa”, de vestido vermelho colado ao corpo e andar deslizante de cobra. A mulher – Cyd – deslizará por seu corpo e o convidará para dançar, introduzindo no sincopado número de jazz - plenamente compartilhado por ambos - a dureza e a assertividade comum ao arquétipo das mulheres fatais.
Figura diametralmente oposta é a loura delicada – também interpretada por Cyd – cujos passos de balé servem como símbolo da necessidade que ela tem de proteção. Porém, o detetive e o público descobrirão no desfecho que a malvada não era a vamp e sim, a mocinha loura. Ela é morta pelo detetive machão que verá, ao fim e ao cabo, que “alguma coisa estava faltando” para si. Faltava-lhe a mulher fatal: “Ela era má, era perigosa. Eu não podia confiar nela. Mas era o meu tipo de mulher.”. É com ela que ele acabará a história – e bastante feliz, aparentemente...

Os objetos artísticos que surgiram a partir da pintura de Burne-Jones, nos quais me detive aqui, deixam claro o que atesta Edgard Morin sobre a paulatina humanização do arquétipo da vamp. Ao me deter sobre os exemplos, procurei demonstrar como isso acontece. A “Roda da Fortuna” dá o último passo, penso eu, ao inverter o arquétipo. Fico pensando no quanto tal inversão não se relaciona ao papel que a mulher daquela época desempenhava na sociedade. Ela saía mais às ruas, votava, tinha mais voz ativa, tomava decisões; não era mais o bicho desconhecido e temido pelo homem, que ele se via obrigado a proteger ou subjugar. O que igualmente gerou outro tipo de homem: um que não se incomodava em ser domado, contanto que ele e a domadora se divertissem. Afinal, um relacionamento regado a rosas vermelhas poderia ser muito mais excitante (em todos os níveis) que as rosas brancas oferecidas pelas sensaboronas mocinhas dos anos de 1900, 1910.
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Me ajudaram a escrever o post, além de Morin, Mário Praz (A carne, a morte e o diabo na Literatura Romântica).

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

“A Roda da Fortuna” (1953): brilhante homenagem ao cinema musical

“The Band Wagon” compôs a lista dos filmes de Vincente Minnelli que o Centro Cultural Banco do Brasil recentemente apresentou ao público amante do cinema.
A mostra dedicada ao diretor ofereceu aos curiosos a possibilidade de conhecer um dos mais competentes artífices da Hollywood clássica e aos cinéfilos, o prazer de rever clássicos do musical e do melodrama – gêneros que Minnelli manipulava com maestria – desta vez na tela grande. Eu me encaixo na segunda categoria. No CCBB carioca eu vi esse musical pela – suponho – vigésima vez. E mesmo sabendo de cor e salteado canções, diálogos e sequências, senti emoção análoga àquela que me pegou quando eu o vi pela primeira, ainda moleca. Análoga não, maior. E não só pelo tamanho da tela: minhas andanças pelo mundo da sétima arte me permitiram comprovar que esse filme é um dos mais sofisticados musicais da história do cinema.
Curioso é que essa sofisticação é construída a partir da mais óbvia das premissas. A obra trata dos bastidores da produção de uma comédia musicada a ser encenada na Broadway. Segue, portanto, a trilha dos “Broadway Melody” (de 1929, 1935, 1937, 1940), de “Rua 42” (24nd Street, 1934), “Footlight Parade” (1933), “Ciúme, sinal de amor” (Berkleys of Broadway, 1949) e um cem número de backstage movies que ganharam as telas desde que o cinema começou a falar e a dançar. Soma-se a isso o fato de sua produção ter sido contratada tendo-se em vista a utilização de um cancioneiro fechado (pertencente aos compositores Arthur Schwartz e Howard Dietz), a partir do qual deveria ser desenvolvido o enredo. Coube à unity de Arthur Freed, da MGM, rodar um filme que visasse, sobretudo, engordar os caixas da companhia. Trata-se, portanto, de uma obra realizada dentro do mais severo controle do estúdio, o que aparentemente lhe roubaria qualquer originalidade.

Os trigêmeos encrenqueiros Astaire, Febray e Buchanan

Porém, o acaso quis que as canções fossem escolhidas com extremo bom-senso por Betty Comden & Adolph Green, que no ano anterior haviam roteirizado “Cantando na chuva”, o que por si só patenteia a eficiência de ambos. A dupla produz um roteiro num só tempo limpo, profundo e bem-humorado, amarrando-o tão bem às canções que é como se elas brotassem naturalmente dele. O principal responsável por encarnar a graça desenhada pelo casal é Fred Astaire, monstro sagrado do cinema musicado que desempenha um ator decadente do teatro cômico-musicado tentando voltar ao palco da Broadway pelas mãos de Lily e Lester Marton – exceto no que toca à decadência, Fred era uma espécie de irmão do personagem que põe em cena. Oscar Levant e Nanette Fabray desempenham, em cena, os alter-egos de Comden e Green. Fred e Cyd Charisse representam personagens que ecoam seus passos artísticos.

O sapateador

Fred ingressou no show business ainda criança. Sapateou ao lado da irmã até ela se casar e deixar o meio artístico; só aí ele pensou seriamente no cinema. Cyd era bailarina de formação e fora contratada pela MGM para tomar parte no coro de “Ziegfeld Follies” (1945), uma das stravaganzas da companhia. Embora o studio system criasse para eles personas artísticas que se completavam, o certo é que ambos eram artistas muito diferentes: um popular, outro clássico. Comden & Green aproveitam-se disso, fazendo essa diferença emergir como cerne da história. Com isso, transformam “A Roda da Fortuna” no palco onde se encena o conflito indissolúvel entre a arte da elite e a das classes populares. Porém, isso se dá sem que a graça se perca. Embora o filme tenha um forte viés crítico, ele não deixa de ser adorável; e para que isso ocorra, Jack Buchanan desempenha papel fundamental.
Buchanan era ator cômico de carreira sólida no vaudeville londrino. Em “The Band Wagon” ele é Jeffrey Cordova, um “faz tudo” comum no meio artístico naquele tempo – meio que tinha revelado Orson Welles (diretor-autor-ator de “Cidadão Kane”) uma década atrás. Jeffrey é um artista “sério” – a primeira cena sua flagra-o desempenhando a tragédia “Édipo Rei”.

Édipo Rei sai de cena...

Todavia, ele será caracterizado desde o início como personagem cômico – repetindo uma constante na produção cinematográfica de Hollywood: a defesa de seu cinema a partir do rebaixamento da arte considerada “erudita”. Daí, por exemplo, o deslizar jocoso da câmera pelo cartaz de propaganda da tragédia na qual seu personagem entrava como tradutor, diretor, produtor e protagonista. Jeffrey desempenha um megalômano que rejeita a arte ligeira em prol do drama, considerado por ele um produto cultural superior. Por isso, tão logo põe as mãos no roteiro dos Marton, desejará transformar uma “light play” num “drama with stature and meaning”.
Exemplo cabal da graça com que o assunto é tomado encontra-se na extraordinária “That’s Entertainment” – canção que, dali em diante, passaria a definir o show business (Gene Kelly rodaria, entre os anos de 70 e 90, o trio de documentários do mesmo título – um sensacional tributo ao cinema musicado da MGM). A canção é usada duas vezes. Na primeira, quando os Marton apresentam o entrecho da comédia a Jeffrey e descobrem que ele deseja transformá-la no tal “drama de estatura e significado”. Questionado sobre o retorno financeiro que teria uma produção tão erudita, o homem afirma que tudo era entretenimento: desde os trejeitos de um palhaço até o drama vivido por Hamlet. A partir daí, os roteiristas e o sapateador decadente entram em seu jogo, dando vida a um genial número musical, perfeito pelo modo como a cenografia potencializa o sentido da música. Segue o vídeo – nunca é demais (re)ver uma obra prima:

Jeffrey transformará a “peça graciosa” escrita pelos Marton – peça em que o enredo frouxo serviria apenas como desculpa para a introdução de números musicais; bem ao gosto do teatro musicado daqueles tempos – numa versão moderna do mito de Fausto. Num drama de tamanha estatura ganharia o papel feminino principal a bailarina clássica interpretada por Cyd Charisse, a quem o público é apresentado num solo de ballet de tirar o fôlego.

A bailarina

Cyd e Fred – Gabrielle Gerard e Tony Hunter – metaforizam desde o princípio o conflito entre a cultura europeia e a norte-americana. Falei sobre isso com algum cuidado posts atrás, quando discuti o papel dos musicais de Rooney & Garland na afirmação da cultura ianque. Remeto os leitores àquele texto para ir direto ao ponto aqui. Se, durante a primeira metade do filme, sobram desentendimentos e farpas entre o casal principal, ambos acabarão por descobrir um meio termo que torne possível sua relação – primeiro no âmbito profissional e depois no afetivo. Isso não enquanto ensaiam o Fausto moderno, mas sim durante o belíssimo dueto Dancing in the Dark, no qual Cyd e Fred explicitam que o que os diferencia é o gênero ao qual cada um resolveu se dedicar, não a beleza com que o fazem.

O desenlace da história é óbvio – portanto, deem-me licença de dizê-lo: a megalomania de Jeffrey mostra-se infrutífera, levando-o a entregar a batuta da direção da peça a Tony Hunter. Uma vez na dianteira, o sapateador poderá realizar com os Marton o projeto original. De bailarina clássica, Gabriele Gerard torna-se vedete de teatro de revista – o sonho de consumo da Hollywood clássica... E todos vivem felizes para sempre – inclusive eu, pelo menos cada vez que vejo o filme. Mas não sem antes entoarem uma paródia de “That’s entertainment” que subverte o sentido da original. Se, na versão entoada no início do filme, todo e qualquer gênero serviria para entreter o público, no final fica claro a supremacia do teatro leve sobre o erudito:

A show that is really a show
Sends you out with a kind of a glow
And you say as you go on your way
That Entertainment!
A song that is winging along
or a dance with a touch of romance
is the art that appeals to the heart
That's Entertainment!
Admit we're a hit and we'll go from there
We played a charade that was lighter than air
a good old fashioned affair
as we sing this finale
we hope it was up your alley
No death like you get in Macbeth
No ordeal like the end of Camile
This goodbye brings a tear to the eye
The world is a stage
the stage of a world of entertainment!

Supremacia que, em última instância, é estendida para o próprio cinema americano – que tantas críticas ouvira desde o início do século por ser considerado um arremedo da arte teatral; por só servir de diversão barata às classes pobres; por destruir as personagens criadas para os palcos and so on... A releitura da canção passa em revista o enredo do filme: o palco (e, por extensão, a tela), é um mundo aberto ao entretenimento, portanto, um espetáculo que desejasse tocar o coração do público deveria deixar de lado o drama em prol da “música que voa como um pássaro” e da “charada que é mais leve que o ar”... Coisa que o filme faz de sobra, brincando com gêneros e tipos explorados pelo cinema em seus primeiros 50 anos de existência (os desentendimentos amorosos, os quiproquós cômicos, a trama detetivesca, a mulher fatal), submetendo-os todos à lógica do musical de estúdio. Porque “A Roda da Fortuna” é, acima de tudo, uma defesa arrebatada e arrebatadora do musical da época de ouro do cinema. E se esses argumentos ainda não convenceram o leitor a verem-no, então o vejam porque ele é lindo, lindo, lindo.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A Paris poética de Amélie Poulain

No começo do mês passado, esse bicho do mato que vos fala aportou em Paris, destino final de sua primeira viagem ao estrangeiro. A experiência só ganha menção aqui por culpa dos amigos Chico Lopes e Antonio Júnior; o primeiro porque pediu rememoração detalhada de minhas andanças pela Cidade-Luz, o segundo porque me cobrou várias vezes retorno ao blog – coisa que apenas não fiz até agora porque este está sendo um mês de exceção. Aqui, o post só pode ganhar tom cinematográfico – o que não será difícil, considerando-se que, até no mês passado, eu apenas viajara à cidade na esteira dos filmes que a tomaram como cenário. Dentre tantos, o escolhido é a obra-prima francesa “O fabuloso destino de Amélie Poulain” (Amélie, 2001), fita que, desde seu lançamento, certamente decidiu muitos pacotes turísticos que inseriram Paris como destino.
“Amélie” é especial porque encontra uma estética original para pintar o fascínio que a cidade emana. A Paris turística de tantos filmes, usada e abusada por cineastas até hoje, é nele deixada de lado em prol de uma Paris bairrista, pitoresca, quase suburbana e, portanto, muito mais poética que as obras cinematográficas cartões-postais. Sim, porque minha primeira descoberta ao chegar à cidade é que seu pitoresco – tão bem apanhado em “Amélie” – jaz escondido por debaixo da balbúrdia de turistas de todos os cantos que se trombam em qualquer dia e hora, imprimindo ao lugar um sabor aborrecidamente conhecido de shopping center; e ao vozerio cosmopolita que a faz ecoar qualquer coisa exceto “La vie en rose”. A empolgante Paris fotografada e cantada nas primeiras décadas do século XX pode ainda ser vislumbrada em Saint Germain, único bairro ainda não engolido pela avalanche turística; mas com algum esforço pode-se ainda sentir seus ecos no Quartier Latin ou então em Montmartre, o bairro onde habita Amélie.

Montmartre é encantador. As ruelas do bairro alto, o único de Paris a ser construído num morro (como a embriagante vista do alto da Torre Eiffel nos comprova); suas vias de circulação feitas de escadarias; o antigo carrossel de Sacré Coeur, a igreja ao alto e, à sua frente, uma vista não menos impressionante da cidade que se desdobra aos seus pés (os aficcionados em literatura lembrarão – como o fez Cynthia, minha amiga, companheira de viagem e ex-professora de literatura – a frase de efeito do Jacinto de “As cidades e as serras”: “Paris é uma ilusão”; como ele estava equivocado, não, Cynthia!...); a saliente – bem parisiense – rua do Moulin Rouge, com suas dúzias de sex-shops e seu nada discreto “Museu Erótico”; as barracas de frutas ao ar livre; os pintores.
Tudo isso está no filme. Mas a Montmartre de “O fabuloso destino...” é depurada no coração sonhador de sua protagonista, o que lhe multiplica o charme. Quem nos traduz o bairro é Amélie – corporificada com suavidade por Audrey Tatou, em seu mais emblemático papel. Sua história nos é contada à moda dos contos fantásticos. Aprisionada desde à infância a uma existência de solidão, a menina encontra refrigério no mundo de faz de conta. Já maior de idade, parte da casa dos pais rumo à sonhada liberdade, porém seu olhar às coisas já estava moldado ao faz-de-conta. Em Paris, refugia-se no tal bairro e em si mesma; ficcionalizando a existência ao invés de agir objetivamente sobre ela. Até que, como nos contos de fada, num belo dia o destino coloca à sua frente o objeto mágico que lhe dará entrada a uma nova vida: uma pequena caixa contendo as recordações de um menino de gerações passadas. Desde que a devolve ao dono, a jovem verá um novo futuro se descortinar. De princesa triste, ela se torna heroína: daí em diante, todos os que passarem por si terão suas vidas iluminadas.
A graça de “O fabuloso destino...” está, suponho eu, em garimpar o mundo de fantasia que se esconde no interior da selva de pedra contemporânea. Amélie, que se alimentava de sonhos, transfere esse olhar embevecido à cidade e redescobre-a. Os turistas invasores do pitoresco bairro desaparecem; o cinza que invariavelmente o banha é substituído por calorosos tons esverdeados e amarelados, mesmo quando chove; o labiríntico metrô (sem dúvida, a coisa mais surpreendente de Paris) torna-se a trilha que levará a jovem – agora uma aventureira da estirpe de Zorro – ao desfecho do absurdo/surpreendente/adorável enigma da cabeça fotografada. O olhar às pequenezas faz os olhos de Amélie registrarem, para o bem dos nossos, a cidade que ainda vale à pena se conhecer e na qual ainda vale a pena habitar.
A Cidade-Luz de Amélie é uma cidade colorida por uma aquarela que a própria mocinha maneja. Ao sinal de seus dedos, os duendes ainda podem influenciar na vida das pessoas; os cegos podem ver, os mortos escrever e os frágeis ainda podem empunhar armas e salvar a donzela em perigo – que exemplo admirável é o homem dos ossos de vidro, salvador da jovem que era tão pródiga em distribuir felicidade mas tão temerosa de tomá-la para si.
“O fabuloso destino de Amélie Poulin” tem muitas qualidades: sua estilizada fotografia, sempre a serviço da história, as atuações minimalistas (Audrey Tatou terá muita dificuldade de se livrar dessa sua personagem), o roteiro de Guillaume Laurant e Jean-Pierre Laurant e a direção deste último. A orquestração desses elementos é responsável por uma bela lição, dada sem dedo em riste e, portanto, tão eficiente: a poesia da vida cotidiana depende, em grande medida, de nós mesmos; o que não deixa de ser um consolo.


quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O show de Soledad Villamil no SESC Belenzinho, em São Paulo (25/08/2011)

Conheci Soledad Villamil primeiro em “O segredo de seus olhos”, filme que tanto me encantou que eu o vi três vezes no cinema – e escrevi aqui uma resenha pra lá de passional, como mais de um leitor fez questão de ressaltar. A qualidade do roteiro, a interação impecável entre Soledad e o co-protagonista Ricardo Darin, a direção brilhante de Juan José Campanella: o “Segredo...” me proporcionou uma daquelas revelações que raras vezes tenho nas salas de cinema – embora seja assídua freqüentadora delas; por isso, aplaudi de pé a Academia de Artes Cinematográficas por premiá-lo com o Oscar de Melhor Filme e, assim, permitir sua carreira nas salas de cinema dos quatro cantos do mundo.
O filme também me é especial porque me ofereceu chave de entrada ao cinema argentino, que eu conhecia apenas esparsamente até que Soledad, Darin e Campanella me obrigaram a buscar avidamente suas filmografias. Do percurso pela produção do país vizinho me ficou a percepção de que há nele uma homogeneidade da qual nós infelizmente carecemos. Mas isso é questão para outro post. Neste, quero me concentrar em Soledad. Por um motivo muito simples. Porque a sensibilidade artística, a dedicação ao ofício, a sensatez e a modéstia são coisas que me comovem profundamente. E como é raro encontrar tudo isso num só corpo...
Que Soledad é uma grande atriz apercebe-se tão logo se põe os olhos na sua performance em “O segredo de seus olhos”, no qual ela realiza um tour de force ao interpretar as duas fases da vida da advogada que é objeto de devoção da personagem de Ricardo Darin. Também com o co-protagonismo de Darin e a direção de Campanella, a atriz protagonizou o belíssimo “O mesmo amor, a mesma chuva” (1999), saindo-se igualmente bem num papel menos idílico e que exigia maiores rasgos de emoção. E, pelas mãos de Adrián Caetano, despiu sua faceta romântica e incorporou magistralmente bem a esposa simples de um presidiário no drama-policial “Um oso rojo” (2002) - outro dos grandes filmes de sua carreira. Desde o romance mais rasgado ao realismo mais pungente, não há algo que Soledad não possa fazer ante as câmeras. E além disso, ela ainda canta!
Porém, não vá o leitor incluí-la no rol dos artistas (tão comuns por aqui) que enveredam pelos caminhos da música sem nenhum talento, apenas para promoverem por meio dela suas carreiras na televisão e vice-versa. Soledad é cantora de verdade: sábia na escolha do repertório, afinada, inteligente, dinâmica no palco. Poder-se-ia dizer que ela é uma verdadeira diva, mas não creio que ela, tão modesta, se entusiasmaria com um rótulo assim pomposo. Quem prestigiou os shows que ela fez em Porto Alegre e em São Paulo nos dias 23 e 25 deste mês entendem o que afirmo.
No de São Paulo, no qual estive, Soledad conseguiu materializar no palco a arte pura – aquela que rompe as barreiras da língua, das classes sociais, dos gêneros. Ela começou cativando o público não apenas com sua elegância e beleza, trocando com ele algumas palavras em português quase sem sotaque – prova objetiva da admiração que explicitou ter pelo nosso país. Mas isso adiantaria pouco se não estivesse somado àquela artistry que ela tem e que por certo foi buscar do passado – nos artistas cujas músicas ela escolheu interpretar ou nos grandes cantores da música mundial. Soledad deu ao público o que de melhor tem a oferecer como atriz e como cantora. Sua faceta de atriz compareceu no modo certeiro como que ela contextualizava cada música que iria cantar. Seu talento em engendrar personagens tão dessemelhantes nas telas permitiu-lhe atingir agudamente os sentimentos que cada letra pedia. E seu timbre caía como uma luva nas milongas e nos tangos de outros tempos que ela escolheu trazer ao palco.
Se isso não bastasse, sua qualidade de entertainer perpassou cada um dos minutos da apresentação: na alternância entre canções trágicas e bem-humoradas; na interação sempre inteligente com o público e no interesse que ela conseguiu fomentar para cada uma das canções escolhidas. Não pensei que outra artista, além de Judy Garland, pudesse borboletear com essa leveza e eficácia entre os gêneros e atingir sempre o ápice da emoção estética. Que alegria saber que ainda é possível fruir isso ao vivo. Prova mais aguda disso foi quando ela cantou “Maldigo del Alto Cielo”, canção composta por uma Violeta Parra às vésperas de cometer o suicídio por amor. Sua sublime interpretação – arrebatada e sincera – vivamente emocionou o público (e, pelo que pude perceber, também a cantora). Eu, que sempre procuro manter a compostura quando estou fora de casa, me vi em lágrimas neste e noutros momentos do show. Ao final, como não podia deixar de ser, Soledad foi ovacionada pelo público que ocupava a plateia do SESC Belenzinho – muitos que nunca a haviam visto no cinema ou cantar; outros que não conheciam o espanhol, porém, juraram compreender tudo o que ela dissera: prova enfática de que a língua da emoção é uma só.

Deixo os leitores com o vídeo oficial de Soledad cantando “Maldigo Del alto cielo” e os convido enfaticamente a prestigiarem-na no teatro, no cinema, no Youtube... Nesse nosso tempo de malbarateamento da arte, como estamos precisados de artistas de verdade como ela!


*
As fotos eu emprestei da página da cantora no Facebook.

sábado, 13 de agosto de 2011

Os 112 anos de Hitchcock: notas sobre “Um corpo que cai”, a indústria do cinema e outras cositas mais


Hoje os cinéfilos precisam comemorar: faz 112 anos que nasceu Alfred Hitchcock (13/8/1889-29/4/1980).
O que dizer desse inglês de alma cosmopolita cuja impecável sensibilidade artística gerou uma das obras mais densas da cinematografia mundial? Eu o amo apaixonadamente desde que era menina. Para mim, ele é quem melhor resume a Sétima Arte. Suas obras repletas de cenas de perseguição, grandes romances, traços detetivescos e bom-humor convidam o grande público à diversão. Porém, os elementos do melodrama rocambolesco são sempre sutilmente desvirtuados, para que saciem o gosto do público sem que traiam a arte.
Da primeira vez que vi “Um corpo que cai”, “Janela Indiscreta” ou “Psicose”, eu, que então devorava loucamente Agatha Christie, só queria descobrir o mistério que se escondia por detrás das personagens de Madeleine Elster, Lars Thorwald e Norman Bates. Quinze anos depois, volto a essas obras ainda com avidez. O diretor é um bruxo danado – algumas das faíscas que iluminam suas produções só se fazem visíveis para o espectador insistente.
Eu sou das devotadas, ao ponto de voltar pela 15ª vez a um filme como “Interlúdio”, por exemplo, mesmo que conheça de cor enredo e diálogos, apenas para prestar atenção nas tomadas, no modo como os planos são montados, na composição dos quadros, nas trucagens. Nem sempre dá certo. Mesmo que agora eu tenha mais maturidade e instrumentos críticos para captar as nuances dos diálogos ou o simbolismo dos objetos, muitas vezes acabo mesmo é enredada pela história. Ainda continuo torcendo para Cary Grant conseguir arrancar Ingrid Bergman da casa infestada de espiões nazistas; para ver Grace Kelly finalmente se colocar em posição de igualdade com o solteirão convicto Jimmy Stewart e, assim, dobrá-lo; para a velhinha informante de “A dama oculta” (1938) escapar do trem e cantarolar ao governo inglês a informação secreta em forma de melodia; para o belo Laurence Olivier se livrar do fantasma de Rebeca...
Tomar de passagem a filmografia de Hitchcock, apenas para o mérito da homenagem, geraria simplificações desnecessárias. Pelo menos 20 de suas 50 obras pedem mergulhos profundos que, infelizmente, não tenho meios de dar neste momento. Portanto, deixo os leitores com um bate-papo que Isabella Batista de Souza e eu fizemos sobre Hitch - e especialmente sobre "Vertigo"/"Um corpo que cai” (1958) - no final de 2010. Como eu, Isabella é da área de Letras. Vasculhando a internet em busca de referência sobre o filme para um trabalho de final de disciplina (na UFMG), ela trombou com o post que escrevi sobre ele em março de 2010. A conversa a seguir reflete o desejo dessas duas colegas de formação de entender o maior dos Hitchcocks.

I: Hitchcock é considerado o mestre do suspense e um dos melhores diretores de todos os tempos. Por que ele conquistou tamanha importância no cenário cinematográfico?

D: A obra de Hitchcock como um todo é importante para a história do cinema porque ele conseguiu elevar o filme de suspense (considerado até então um gênero menor) a objeto de arte. Os produtos do gênero hoje são influenciados pela obra do diretor – embora a massa dos filmes de suspense produzidas em nossos dias não chega aos pés da produzida por ele.
Todavia, embora hoje ninguém negue que o diretor é um dos maiores de todos os tempos, sua obra demorou para ser aceita pela Academia (apenas uma vez uma obra sua foi premiada com o Oscar de Melhor Filme – “Rebeca”, de 1940 – e ele nunca recebeu o prêmio de Melhor Diretor). Até a altura dos anos de 1960, Hitchcock era, no geral, considerado como mais um diretor da indústria do cinema, desejoso apenas de agradar o público para vender seu produto. Foi nessa época que os cineastas vanguardistas franceses enxergaram uma unidade em sua obra, o que respondia ao conceito de “autoria” criado por eles. Significava grosso modo que, mesmo produzindo seus filmes no centro da indústria cultural, alguns diretores teriam conseguido se descolar dos parâmetros meramente mercadológicos criados por ela. Exemplos de diretores de cuja obra se poderia depreender um estilo autoral seriam John Ford e Hitchcock: se se analisasse suas obras completas, seria possível perceber nelas o desenvolvimento e amadurecimento, ao longo do tempo, de alguns traços ou temas. Em 1962, François Truffaut, fundador da revista francesa Cahiers du Cinema, conduziu uma série de entrevistas históricas com Hitchcock, buscando derrubar por terra a ideia vulgarizada de que o diretor não produzia obras dignas de debate. As entrevistas, compiladas em português no ótimo Hitchcock/Truffaut: entrevistas, foram fundamentais para a mudança de posicionamento da crítica acerca da obra do diretor.

Vertigo, embora tenha sido um fracasso de bilheteria, está entre os 100 melhores filmes, de acordo com o Instituto de Cinema Americano. Por que essa obra carrega tão grande importância na carreira de Hitchcock e no cinema, em geral?

Bem, a questão da recepção das obras cinematográficas é curiosa. Nós hoje pouco sabemos sobre alguns filmes que geraram grandes bilheterias no seu tempo, porém, consideramos grandes obras outros que foram fracassos de público. Não convém levantar os motivos disso, que são muitos (e duvido que eu conheça todos), mas eles têm relação com uma série de fatores. Apenas um exemplo: No começo do cinema sonoro, os primeiros filmes musicais de Al Jolson (protagonista de “The Jazz Singer”, 1927, o primeiro filme sonoro rodado) foram assistidos por grande parte da população norte-americana, curiosa por ver nas telas pela primeira vez a sincronização de som e imagem. Hoje, poucos conhecem este artista e muitos de seus filmes são considerados apenas por sua importância histórica, já que não têm grandes qualidades artísticas.
Não podemos nos esquecer também de quão importante é a publicidade para a venda de um filme. A indústria norte-americana do cinema descobriu isso logo nos anos de 1910. Os departamentos de marketing eram peças importantes dos estúdios, tornando públicas as imagens dos artistas e as películas que faziam. Hollywood construía estrelas – mudava os nomes dos artistas que contratava, lhes inventava biografias chamativas, tudo isso para torná-los interessantes para o público que ia ao cinema e alimentava a indústria. Essa sede que o público tem hoje de conhecer as vidas das celebridades vem daquela época.
Hitchcock, como todos os outros diretores, sabia que o interesse do público era motivado por razões que nem sempre tinham relação com a esfera artística, por isso seus filmes foram tão bem sucedidos na época. O melhor exemplo talvez seja o caso de Psicose (1960): O diretor fez uma campanha junto ao público de “Não conte o final do filme para ninguém, para não estragar o prazer do espectador de conhecê-lo por si mesmo.” (isso pode ser conferido nos extras da edição do filme distribuída pela Paramount). Ele criava suspense junto ao público com relação à sua própria obra, ou seja, acima de tudo era um bom negociador. Além disso, era conhecedor do público que assistia aos seus filmes, portanto, elaborava as cenas objetivando determinadas reações das plateias. Isso fez com que parte considerável de sua obra tivesse obtido sucesso de bilheteria.
Tal sucesso não aconteceu com Vertigo, que, no entanto, teve cerca de 1 milhão e setecentos mil dólares de lucro (segundo informação do IMDB). Na entrevista a Truffaut, Hitchcock vê o filme como um fracasso porque afirma que as bilheterias apenas cobriram os gastos – estamos falando de um diretor que respeitava bastante a opinião do público. Isso considerado, é visível que o diretor não via no filme a relevância que hoje vemos nele. A análise retrospectiva da obra que ele nos deixou, no entanto, nos permite considerá-lo um dos mais importantes, porque nele o diretor atinge a excelência no manejo de temáticas e elementos com que trabalhou durante sua carreira: a sexualidade, as taras que se escondem na vida privada do homem burguês, etc.

Hitchcock, a esposa e a equipe de filmagem na Europa dos anos de 1920

A linguagem da câmera, os planos, o próprio nome do filme (Vertigo) – todas essas expressões carregam significados. Na resenha sobre o filme, você fala de como o “modo como imagens e sons se agrupam dizem mais sobre os personagens que o enredo”, exemplificando a primeira cena, em que John Ferguson e Midge Wood se encontram. Quais recursos o diretor utiliza para expressar características dos personagens, além das explicitadas no enredo? E quais são essas características?

Eu tentei pontuar um pouco isso ao longo da resenha (que, aliás, foi escrita numa tarde e não tem qualquer intenção de fechar uma interpretação da obra). Quis dizer que o enredo de Vertigo é básico comparado à excelência com que ele é construído cinematograficamente. Essa cena que você sublinhou, por exemplo. De acordo com o enredo, nela precisamos ficar sabendo que John está doente e recebendo apoio da amiga, que sente por ele um amor platônico. Quantas vezes não ouvimos histórias assim? Isso beira a subliteratura. Porém, o trabalho de Midge, o silêncio com que ela escuta o que lhe fala o homem e o modo como ela o olha quando ele menciona o episódio do casamento, bem como o modo como ela o ampara quando ele despenca da escada, trazem à tona essas ideias de modo incrivelmente conciso e denso, o que torna a cena tão fascinante.
Hitchcock é notório por escolher obras literárias menores para transformar em filmes. Perguntado por Truffaut sobre porque nunca havia adaptado nenhum clássico, afirmou algo como: “Porque essas obras têm muitas palavras e todas são importantes.”. Nós, que somos da Letras, devemos atentar a isso: o diretor percebe que o mundo construído pelos grandes romancistas passa pelas palavras que escolheram utilizar – retirar uma palavra do todo seria destruir a obra. Isso fica claro tão logo vemos as adaptações cinematográficas de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro – as piores são aquelas que desejam com mais veemência copiar literalmente a obra de Machado de Assis para as telas. Em Vertigo, Hitchcock estava interessado em trabalhar as ideias de modo cinematográfico (o que, aliás, é uma constante na produção dele). Por isso nessa cena faz uso de símbolos para mostrar a força de Midge e a fraqueza de John. O modo como a cena é organizada através da montagem diz mais que quaisquer palavras. Por exemplo (sem nenhuma intenção de fazer uma análise exaustiva): O sutiã que a mulher desenha mostra seu papel empreendedor. Ele não é usado como um símbolo da inferioridade feminina com relação ao homem, mas sim simboliza o papel da mulher que trabalha. Neste sentido, contrapomos Midge e John: ela ganha seu próprio dinheiro, ele foi aposentado por problemas psicológicos. O modo irreverente como ela trata a sexualidade ao longo da cena mostra que ela é assertiva, enquanto a fragilidade de John torna-o passivo. Ao mesmo tempo, vemos que ela ainda é apaixonada por ele. Esses elementos, trabalhados na composição dos quadros dessa cena e na montagem dela, serão trabalhados ao longo do filme – quando Midge cuida de John no manicômio, quando cola seu rosto no corpo da suposta antepassada de Madeleine, no quadro que pinta, etc.


com Janet Leigh (Psicose)

Nesse mesmo post você fala, também, da maneira que, na visão de homem apaixonado de John, a mulher “misteriosa” se assemelha a um objeto de arte. Quando isso acontece e quais os símbolos responsáveis por tal interpretação?

Hitchcock emoldura a personagem de Kim Novak – você percebeu isso bem ao apontar, abaixo, a moldura que envolve o perfil da atriz, assemelhando-a a uma estátua grega. Isso também é patente na cena da floricultura e, imediatamente depois, na do museu de arte. A composição de imagens nessas duas cenas se assemelha: Na primeira, John abre uma porta no final do beco e dá num lugar incrivelmente florido; na segunda, a fria construção do museu recebe um quadro de temática e cores análogas. Ambos os lugares convidam o mergulho na imagem (o mergulho na ficção, por parte do personagem principal que observa a cena e por parte do espectador, que, por tabela, a vê). Isso também pode ser lido como uma metáfora no mergulho do espectador no objeto produzido pela Sétima Arte: teóricos na época ressaltavam o papel da montagem cinematográfica na identificação do espectador com a história apresentada nas telas. Lembra-se da Rosa Púrpura do Cairo, quando a personagem de Cecília é convidada pelo mocinho do filme a entrar na tela? Woody Allen tornou literal a metáfora da projeção do espectador no filme.

Em várias cenas, as molduras são presentes no cenário (em alguns, com abundância). Na cena em que John vê Madeleine, pela primeira vez, há um momento em que ela se levanta da mesa, com sutileza, ao fundo uma moldura a envolve. Ela sai da mesa, passa por outra moldura, para e quando sai do restaurante sua imagem está em um espelho. Esses enquadramentos poderiam ser interpretados como uma metáfora do “segredo” do filme?

Do meu ponto de vista, essas composições sugerem o mistério que envolve a personagem (já que o mistério que a circunda é criado primeiramente pelo suposto marido dela e em seguida pelo próprio John); o romantismo com que o protagonista a observa; e, em última instância, a existência da mulher apenas enquanto construção ficcional – já que, como uma pintura, ela é apenas fruto da interpretação de alguém. Neste sentido, creio que podemos dizer que isso metaforiza o segredo do filme, sim.

Você diz que “Madeleine não é apenas uma mulher fugidia, ela é uma mulher que não existe (para perceber isso logo do princípio, o espectador precisa ver o filme uma segunda vez)”. Gostaria que você explicasse o porquê da afirmação de que “o espectador precisa ver o filme uma segunda vez” e falasse mais do envolvimento do telespectador, manipulado, ou não por Hitchcock.

Bem, eu escrevi o texto quando já tinha visto o filme umas dez vezes pelo menos. Uma obra de substância como essa vai se revelando para os espectadores aos poucos. Só prestamos atenção na relação entre o elemento pictórico e a ironia que envolve a personagem, por exemplo, quando já conhecemos o final da história – ou seja, depois que já sabemos que a misteriosa Madeleine não passava de uma simplória vendedora, e que a imagem de mistério dela foi construída para nós, como um pintor bom corrige as imperfeições de uma pessoa ao desenhá-la. Ao vermos o filme pela primeira vez, somos enganados tanto quanto Johnny. Depois de o vermos algumas vezes, conseguimos organizar seus símbolos em direção a uma interpretação. Sobre a manipulação do cinema, lembro os debates fomentados por Béla Balázs e Edgar Morin sobre o modo como a montagem direciona o olhar do espectador. No cinema, somos levados a enxergar com os olhos das personagens: quando uma personagem olha para determinado objeto, nós também o olhamos. Isso acontece pela alternância entre as objetivas indiretas (o olhar da câmera aos objetos) e as subjetivas diretas (o olhar do personagem aos objetos) – por exemplo, a câmera focaliza o personagem e, em seguida, focaliza o que ele vê. Esse movimento contínuo faz com que tenhamos a sensação de estarmos do filme, daí nossa identificação – ou seja, daí a sermos manipulados pelo diretor, já que é ele o responsável por organizar os olhares aos personagens, às coisas e os olhares dos personagens às coisas.
Hitchcock e Ingrid Bergman