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O momento político torna possível a crítica direta, e aí não é mais preciso criar – como em Roque Santeiro – uma metáfora de cidade corrompida para se referir ao Brasil. Assim, o país mostra na tela a sua cara: toda ela, no que há em si de mais hediondo e de mais humano; de mais trágico e de mais engraçado. Como bem lembra Sílvio de Abreu em entrevista dada recentemente à revista Filme-Cultura, aquela era uma “época muito divertida dramaturgicamente”. A conturbada situação permitiu que se introduzisse nesta telenovela um elemento caro à arte desde muito tempo: a crítica social. Ainda mais se considerando o lugar peculiar que cabe ao seu gênero – obra aberta, que pelo seu imediatismo pode dialogar diretamente com o momento histórico no qual é criada, participando em sua modificação.
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Os espectadores do século XXI não deixarão de tomar um choque de realidade ao serem confrontados, logo no primeiro capítulo da trama, com a datilógrafa que afana rolos de papel higiênico e sabonetes do banheiro da empresa onde trabalha para que, assim, possa ter esses produtos de primeira necessidade até o fim do mês. Antes do esgoto-Brasil de “Deus nos Acuda” (1992-3) tragar os ricaços, a merda em que viviam os brasileiros era ironicamente pintada em “Vale Tudo” pela ação da jovem que não tinha nem mesmo condição de comprar produtos para fazer sua higiene íntima. E isso enquanto, noutro canto do Brasil, a humilde agente de turismo deixava a casa que a filha lhe roubara, vendo ter sido vã a tentativa de ensinar à menina que, em tempos de crise, a honestidade ainda era o melhor caminho.
“Vale Tudo” está a anos-luz dos idílios-românticos-em-terras-estrangeiras que usualmente aparecem nas novelas das 8, os quais, de tanto que foram repetidos, já perderam todo o charme. Ao invés das gastas exóticas paisagens japonesas ou lugares turísticos notórios, tomados como cenário de não menos gastas histórias de amor fadadas à desgraça até que no último capítulo todos vivam felizes para sempre, “Vale Tudo” abre no escuro de um quarto e no final de um relacionamento onde sobram recriminações e tapas. A cena é dura como a realidade, porém, é escrita e encenada com tanto primor – o que, aliás, é uma constante na novela – que se torna bela.
O paradoxal é que essa maestria foi em parte fruto da necessidade, já que a Globo daquele tempo estava distante do domínio técnico que tem hoje. Daí os planos de conjunto e/ou stills da gente humilde carioca repetidos ad nauseam ao longo dos capítulos; daí as imagens escuras; as vacilações do elenco impressas em película; os constantes primeiros planos, que optam por flagrar os dramas internos das personagens em detrimento da cidade majestosa (mas repletas de contrastes tantas vezes deixados de lado pelas telenovelas atuais) na qual a história se passa.
Até mesmo a dificuldade prática da Globo de mandar para fora do país seu elenco converteu-se em um ganho dramático, já que os países estrangeiros considerados então símbolos da civilização (os Estados Unidos, a França, a Itália) não passam de miragens para o público, o que mimetiza a distância que separava o Brasil das potências do Norte – distância marcada não só em léguas mas nos cruzados que diariamente se desvalorizavam, afastando-se do dólar.
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“Vale Tudo” é um microcosmo da sociedade que bota em cena. Supera a divisão estanque da comédia de costumes quando decide não se restringir aos tipos, criando caracteres bem delineados, complexos como os homens, o que só faz aumentar seu potencial de crítica inteligente. Daniel Filho, que estapeia a personagem de Regina Duarte na cena que abre a produção, é também o pianista sonhador seduzido pela miragem do Primeiro Mundo. Numa de suas mais belas intervenções, descreve em detalhes ao amigo rico uma Nova Iorque que ele apenas conhecia na imaginação. Quando está em cena, enche a tela com sua presença agridoce, pontuada pelas canções de uma Broadway que ele nunca viria a conhecer pessoalmente e por sua tentativa de ganhar a vida com sua arte – algo praticamente impossível naquele momento.
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Esses exemplos apontam o magistral tratamento dado ao texto da telenovela, cuja graça, poesia ou acidez estão a serviço de idéias que tinham uma flagrante relevância naquele final de anos 80. Aí está uma das diferenças mais perceptíveis entre ela e o grosso da teledramaturgia de hoje. A situação capenga do Brasil sobressai-se em “Vale Tudo”, servindo como dínamo das ações de boa parte das personagens. A situação dramática do país coopera para a construção de episódios intensos e verossímeis. Conhecendo o contexto da época –recriado tão bem – não é difícil nos flagrarmos dando razão à filha desnaturada quando ela afirma que ninguém poderia progredir naquela situação valendo-se da honestidade. Também não é difícil nos surpreendermos sendo coniventes com o mocinho quando ele decide recomeçar a vida no estrangeiro com os 800 mil dólares roubados que por acaso caíram em suas mãos.
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Ao tratar de modo tão complexo os homens e as relações que estabelecem entre si, “Vale Tudo” demonstra extremo respeito pelo espectador. A novela é miniatura da cidade onde se esbarram ricos e pobres, cultos e incultos e um turbilhão de pessoas de interesses dessemelhantes – e então, tem coragem de fazer esses vários discursos emergirem ao longo da narrativa. Quanta distância entre ela e os produtos pasteurizados da nossa teledramaturgia atual, repletas de vilães caricatos e de mocinhas casadoiras choramingas que nos dão, a cada estreia, a desagradável sensação de já termos “visto este filme antes”. Ao contrário das produções de hoje, “Vale Tudo” pressupõe um espectador adulto, aberto à reflexão. Sua reexibição, 22 anos após sua estréia, está deslocando o espectador de sua zona de conforto.
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Mas, a contar pelos últimos acontecimentos, parece que nem tudo está perdido. O burburinho que “Vale Tudo” fomentou chamou a atenção para um grupo de excelentes artistas que a tempos não davam o ar da graça na TV. Nathália Timberg ganhou um espaço na novela das 8, Regina Duarte estreará em breve na macrossérie “O Astro”, Beatris Segall participou do (divertido) especial de Susana Vieira. Hoje mesmo, na Folha “Ilustrada”, Lauro César Muniz afirma que a teledramaturgia precisa ser modificada para não perecer. Assuntos palpitantes dos quais ela pode se apropriar é o que não falta. O problema é que agora a situação periga inverter-se. Acostumado à “produção em série”, é possível que o público rechace produções que se descolem dos lugares-comuns. A mesma Folha que publica a entrevista de Muniz constata que, quando “Roque Santeiro foi reprisada no Vale à Pena Ver de Novo (2000), chegou a perder em audiência para o Chaves. Esperemos para ver, sempre na torcida para que vença a qualidade.