“Potiche”, ao qual recentemente me referi aqui quando falei sobre o Festival Varilux do Cinema Francês, me obrigou a uma visitação na filmografia de Catherine Deneuve. Retorno do passeio extremamente impressionada – besta, para dizer a verdade – com a variedade e a qualidade dos trabalhos por ela realizados e as nuances que ela soube dar às personagens criadas sob as batutas de diretores muito diferentes: o português Manoel de Oliveira, o inglês Roman Polanski, os franceses Luis Buñuel, Jacques Demy, François Truffaut, para citar só alguns poucos. Duas das obras de sua filmografia que mais me impressionaram foram dirigidas por esse último: “Le dernier métro” e “La sirène du Mississippi”. Embora diferentes entre si, ambas conservam um bom humor, delicadeza e frescor análogos, o que as torna tão atraentes.
Falar sobre elas é uma missão algo difícil para esta cinéfila que carece de conhecimento da produção de Truffaut ou do cinema posterior a 1960, e que até dois meses atrás não havia visto de Deneuve mais que os dois clássicos lançados pela Folha em meados de 1990, “A bela da tarde” e “Indochina”. Por esse motivo, o post terá, como o leitor vai perceber, um agudo quê impressionista. Se ele não se salvará enquanto leitura da produção autoral de Truffaut, espero que se salve como propaganda. Ele e Deneuve alimentaram mais que uma ardente histoire de l’amour, como nos comprovam essas duas pérolas.
A primeira é um surpreendente thriller romântico-farsesco com pinceladas certeiras de Hitchcock. Não posso deixar de lê-lo em diálogo com a extensa e maravilhosa (tantas vezes já recomendada aqui) entrevista que o diretor francês fez com um Hitch já maduro, um bate-bola memorável em que ambos discorrem sobre o cinema com clareza e profundidade.
A produção cinematográfica do diretor inglês deixou recordação indelével no francês desde jovem – como o entrevistador deixa claro ao entrevistado inúmeras vezes. Truffaut entrevista Hitchcock em 1962; "Hitchcock/Truffaut: entrevistas" sai pela primeira vez em 67. A emulação bem humorada de Hitchcock feita por Truffaut na “Sereia do Mississippi” parece desdobramento natural daquela admiração. Emulação que ganha contornos próprio, distintos da obra do mestre, bem entendido. Mais que entrevistador, o diretor francês fora um dos críticos responsáveis por elevar a obra de Hitchcock do lugar de “entretenimento banal” que ela ocupava para “obra autoral” de primeira grandeza.
“A Sereia do Mississippi” (La sirène du Mississippi, 1969) deixa patente seu lastro com a fantasia e o mito logo no título, no predicativo que atribui à personagem de Catherine Deneuve: como o ser fantástico (um pássaro ou um peixe, dependendo da origem da mitologia), sua Julie/Marion é uma mulher ambivalente – o que se apercebe a partir de seus nomes, um de conotação maviosa e outro, severa. Ela começa a história como a esposa por encomenda de um plantador de fumo de uma ilha do Oceano Índico; mulher loura, linda e misteriosa que, vestida com tecidos de estampas suavemente florais, surpreende o noivo à espera de uma mulher morena e comum. O charme da jovem enreda o noivo e, por tabela, o público. Depois de crer com facilidade na história pouco verossímil contada pela mulher, o jovem (Jean-Paul Belmondo) se casa com ela e se coloca aos seus pés: Vous êtes adorable, Julie – o mantra que ele repete durante a primeira parte da história sugere a perda de razão gerada pelo fascínio que a literatura ocidental tanto atribuiu às sereias.
A graça da película está na quebra de expectativas que o diretor vai inserindo na história. O idílio amoroso vivido pelo casal em lua de mel é brevemente quebrado por uma saída misteriosa da mocinha. O marido não percebe. Truffaut, a partir daí, começa a brincar de ser Hitchcock. Assim como faz o mestre inglês faz em “Um corpo que cai” (1958), o francês constrói o suspense depois de tornar o público ciente de algo que o protagonista não sabe: no filme americano, o espectador fica sabendo muito antes de Jimmy Stewart que a simplória Judy e a misteriosa Madeleine são a mesma pessoa; na “Sereia do Mississippi”, a escapada da jovem obriga o público a subverter o olhar de encantamento que desde o princípio voltara à Julie. A semelhança dos nomes Marion/Madeleine – Julie/Judy também não parece coincidência, bem como a sua conotação. O “Mad” (louca) de “Madeleine” pode ser lido como alusão à suposta insânia da personagem de Hitchcock. A inversão que Truffaut promove na atribuição de nomes à sua personagem aponta para o caráter de emulação/subversão que o diretor francês imporá à obra o inglês. Caráter que atinge o paroxismo na segunda parte do filme, na multiplicação das referências às obras de Hitchcock: os primeiros planos dos trilhos do trem que levam o jovem apaixonado em busca da amada lembram “Pacto Sinistro” (1951) e “Quando fala o coração” (1945); sua internação num manicômio para se curar do transtorno emocional que sofrera com o abandono da mulher lembram o destino de Johnny em “O corpo que cai”; a corrida louca do casal pelos quatro cantos de Paris, tendo insolitamente no encalço o detetive que o próprio protagonista contratara para achar a mulher, lembra “Intriga Internacional” (1959); a deliciosamente absurda cena do envenenamento do mocinho lembra “Interlúdio” (1946): tanto pelo móvel do crime quanto pela personagem que o intenta.
Truffaut só lembra dos grandes Hitchcocks, daqueles que, durante a entrevista, ele próprio dissera ao diretor inglês que eram seus preferidos. E o uso que faz dos filmes só faz reforçar o tom de homenagem bem humorada: as constantes quebras de expectativas surpreendem e deleitam o público tanto quanto o faz Hitchcock usando expedientes diferentes. Hitch constrói suas personagens ancorado na realidade. Truffaut manda o mundo real às favas e cria uma fábula divertidíssima, como que uma brincadeira de criança. Até a loura elegante e aparentemente frígida ele traz do mestre (tenho pra mim que Deneuve daria uma grande musa de Hitchcock, se ambos tivessem se encontrado a tempo), atribuindo-lhe uma original dose de baratinamento sexual, moral e afetivo. Também a conclusão é subvertida: livre da necessidade de um Happy End – ao qual Hitchcock tantas vezes fora obrigado – Truffaut leva para o ritmo do filme a dinâmica de sua personagem principal, deixando a conclusão em aberto. A mulher-sereia não poderia dar uma existência de constante felicidade ao seu eleito. Mas de modo algum isso o afastava dela. O sentimento ambíguo de medo e paixão que ele nutre pela esposa fazem-no concluir: Vous êtes si belle, Julie, que te regarder c’est une joie et une souffrance. (Você é tão bela, Julie, que te olhar é uma alegria e um sofrimento).
O sensacional é que esta frase volta, quase que ipsis litteris, noutra parceria inspirada de Truffaut & Deneuve, “O último metrô” (Le dernier métro, 1980). Um parênteses necessário é o de que a beleza da musa francesa lhe rendeu, com o passar dos anos, uma legião de fãs/jornalistas/diretores extasiados. Em nenhuma de suas entrevistas ela deixa de ser atingida com perguntas que concernem a sua aparência física. Perguntada recentemente no Brasil sobre se “É um peso ser bela”, ela respondeu de modo inspirado: “Peso maior é ser feia”. Além de não ter pelo na língua (Bravo, Catherine!), a atriz demonstra que esta é, para si, uma questão menor. Tenho para mim, portanto, que ela e seu diretor decidiram de comum acordo transformar o assunto em tema de chiste. Quem pronuncia a sentença no filme de 1980 é a personagem desempenhada pela personagem de Gérard Depardieu na peça de teatro “decadentista” que um grupo francês encena numa Paris invadida pelos alemães durante a 2ª G.M. A frase, pronunciada com agudeza pelo ator, combina com o tom ultra-meloso e escapista da peça que o grupo põe em cena. Pensando-a no diálogo com o contexto, ela me parece uma gozação com o modo romantizado pelo qual público e imprensa veem a atriz – que, não raras vezes, afirma esperar no futuro “ser lembrada pela competência como intérprete e não pela beleza”.
Parênteses devidamente fechado, vamos agora a esse que é, sem dúvida, um dos melhores filmes de todos os tempos. E isso por tantos motivos... Pela profundidade com que trata das relações sociais estabelecidas em tempos de guerra, pela sutileza com que as personagens são construídas, pela solidíssima construção cinematográfica que torna o filme num só tempo inteligente, comovente, dinâmico, enfim, uma delícia de se ver e rever. Nele, Deneuve é uma ex-atriz de cinema que passa a tocar um teatro junto do marido diretor. Quando estoura a guerra, o homem de ascendência judia é obrigado a se esconder sob o palco do teatro, tornando-se, literalmente, a base sobre a qual se sustenta o edifício da peça ensaiada. Truffaut conduz uma câmera fluida para unir, de modo simbólico, o diretor apaixonado e o elenco alheio à sua presença: nas mais sofisticadas tomadas, a câmera desliza das cadeiras do teatro para o palco, dele para os atores e, em seguida, para a tubulação que levará as palavras ao diretor que, no subsolo, as repete com prazer. Emergem dessas cenas a dedicação pela arte, a luta pela liberdade e a possibilidade de o indivíduo espoliado retomar seu lugar na sociedade utilizando-se para isso da argúcia – expedientes que antes transformaram “Ser ou não ser” (1942), seu irmão de temática, noutro grande filme.
Em paralelo ao drama do diretor corre o drama de cada uma das personagens, as quais, apesar de livres, paradoxalmente sofrem mais revezes que o diretor. Longe dos olhos, mas não dos ouvidos do marido, a personagem de Deneuve protagoniza com a de Depardieu uma das histórias de amor mais surpreendentes da história do cinema. A economia dos gestos da atriz e a delicada robustez do ator presenteiam o público com um par romântico belo e verossímil. Um dos pontos altos do filme é a interferência do marido da jovem para esse desenlace. Tal inferferência mostra que Bernard Shaw estava certo ao dizer - tanto tempo atrás - que preferia a sutileza do Dr. Wangel (de “A dama no Mar”, drama de Ibsen) ao dispensar sua esposa do compromisso de ambos, do que a machadinha que certa personagem de Sardou usava para dar cabo da mulher que o traíra...
Com o filme, Truffaut prova cabalmente que o conceito de “autoria” não é sinônimo de emprego e reemprego incansável da mesma série de procedimentos tendo em vista chegar a um fim já conhecido. No "Último Metrô" está todo o charme de “A Sereia do Mississippi”, porém, numa ancoragem muito mais incisiva na realidade; num tratamento muito mais humano àquelas mulheres e homens que tinham de lidar com duros conflitos – não só externos como também internos.