sábado, 28 de janeiro de 2012

“Bola de Fogo” (Ball of Fire, 1941). E viva as loucuras adoráveis do cinema clássico!

Não paro de me surpreender com a produção cinematográfica da Hollywood clássica. Parece impossível que um cinema tão preso a convenções, preocupado fundamentalmente em vender a imagem de seus stars, tenha conseguido produzir tanta coisa notável – e aqui me prendo especificamente em “Ball of Fire”, screwball comedy roteirizada por Billy Wilder e Charles Brackett e dirigida por Howard Hawks no princípio dos anos 40.
Hawks provara ser mestre no gênero desde que dirigiu “Bringing up baby” (Levada da Breca, 1938) e “His girl Friday” (Jejum de Amor, 1940). Wilder, o grande Wilder, até então não havia se aventurado detrás das câmeras, mas roteirizava desde o início dos anos 30, antes em sua Alemanha natal e depois nos Estados Unidos, tendo sido responsável por engendrar, por exemplo, “Ninotchka”, a primeira comédia – e que comédia! – protagonizada por Greta Garbo. Hawks já havia dado à Sétima Arte um conjunto heterogêneo de produções: épicos como “Sergeant York” (1941), filmes noir como “Scarface” (1932). Wilder rapidamente estenderia seus domínios, como roteirista e diretor, para os campos da comédia, da tragicomédia, do romance, do drama, do noir, sempre com resultados de qualidade assombrosa: “The major and the minor” (1941), “A foreign affair” (A mundana, 1948), “Sabrina” (1954), “Sunset Boulevard” (Crepúsculo dos Deuses, 1950), “Double Idemnity” (Pacto de Sangue, 1944) – quase sempre com a parceria de Charles Brackett.


“Ball of Fire” é a prova cabal da versatilidade do grupo. A história se estrutura em torno dos elementos da comédia amalucada, que, no entanto, se enlaçam de um modo irresistível à violência dos gangsters dos noir e ao romance agridoce. Só a premissa já é de encher os olhos: Sugarpuss O’Shea (Barbara Stanwyck), cantora de cabaré, é obrigada pelas circunstâncias a se esconder na Fundação habitada por oito professores de meia idade e celibatários que escrevem uma Enciclopédia cuidados por uma velha governanta; o único jovem do grupo é Bertram Potts (Gary Cooper), que cruza com a moça enquanto procura fontes para sua pesquisa sobre slang (a língua informal, usada sobretudo na fala e por um grupo particular de pessoas – a nossa gíria), um dos verbetes da Enciclopédia. O choque entre essas duas personalidades opostas, elemento fundamental da screwball, é aqui potencializado porque um efetivamente troca de lugar com o outro: as buscas do prof. Potts levam-no à boate onde a moça apresenta um número “repleto de palavras tão estranhas que o deixam com a boca cheia d’água”; a fuga de Sugarpuss – “Rostinho Doce”, segundo a melhor slang – leva-a a aceitar o convite do homem e compor o grupo que estudaria o assunto na Fundação onde ele habita.
Mas, para além dos quiproquós envolvendo os senhores castos e a moçoila espevitada e tudo, menos casta – chacoalhada explícita na fábula da “Branca de Neve e os Sete Anões” – o que me encanta na história é o tratamento que ela dá à língua e aos saberes institucionalizados. Não sei se o assunto parecerá abstrato demais àqueles que desconhecem os debates dos Linguistas sobre as variedades da Língua e as noções de “erro” e “acerto”; dos embates homéricos travados entre Linguistas – defensores da língua viva, com todas as suas variantes populares e eruditas, de pronúncia e de escrita – e Gramáticos Normativos, que classificam como “erro” tudo o que foge à “norma culta”. O embate gerou filhos obtusos como, recentemente, o debate sobre o livro de português que supostamente ensinava errado apenas porque admitia a possibilidade de se dizer “os livro”. Mas encurtemos o assunto. O que “Ball of Fire” faz, e esse é um dos motivos pelos quais ele me é tão querido, é balançar o coreto da Gramática Normativa – e em 1941!
E com que graça ele o faz!... Nesta história, o saber institucionalizado - compreendido pela Enciclopédia e os velhos acadêmicos que a redigem – é primeiro caricaturado para depois ser revisto até finalmente dar os braços ao saber popular. Gíria – lembra o professor Potts – como diz o poeta Carl Sandburg, é a língua que tira o casaco, cospe nas mãos e pega no batente. É o aspecto mais dinâmico da linguagem, e ele, para aprendê-la, deixará o conforto dos livros antigos de referência e encetará um encontro com a sociedade viva que a fala. É aí que encontrará Sugarpuss.
Os professores, embora eruditos, pouco sabem para além de sua área de conhecimento. Sugarpuss carece de ensino formal mas esbanja conhecimento prático da vida. Logo ela vai iluminar, com seu brilho de entertainer, a vida pálida dos homens que a circundam. E tudo isso acontecerá dentro da estrutura narrativa mais enxuta e coerente que se pode esperar, o que só faz cooperar na construção dos tipos e situações criadas:
Nas mesas redondas onde o professor Potts tentará aprender a slang americana com “um grupo de pessoas dos mais variados grupos sociais” (ideia moderníssima ainda hoje) nasce a discussão sobre o que é corny (sentimentaloide), a qual ajudará a definir os caracteres dele e da jovem Sugarpuss. E é uma slang – como não – que juntará o rapaz e a moça, numa das cenas românticas mais deliciosas de todos os tempos, que culmina com ela lhe ensinando o que é Yum Yum (vejam a cena abaixo, um dicionário visual do vocábulo), não sem antes fazer chover na cabeça do rapaz construções linguísticas que até hoje botariam o prof. Pasquale e sua trupe de cabelos em pé (construções que são questionadas pelo prof. Potts bem no meio da cena romântica, o que só lhe faz aumentar o charme: Miss O'Shea, the construction "on account of because" outrages every grammatical law!).

O prof. Potts, a Bola de Fogo e os profs. Oddly e Magebrunch

Em volta da dupla de protagonistas brilha um dos melhores conjuntos de coadjuvantes da época. Nomes como S.Z. Sakall, gordo e de rosto afável, responsável por uma infinidade de tios, primos e amigos bonachões no cinema dos anos 40, 50 (foi o barman de “Casablanca”). Sakall é um personagem tipo, como os demais professores, mas aqui os tipos casam-se perfeitamente com o roteiro. Ele é no filme o prof. Magebrunch, especialista em fisiologia, chamado sempre para resolver os problemas de saúde do grupo. Assim como o botânico prof. Oddly, o qual, apesar da “esquisitisse” que lhe atribui o próprio nome, é tão suave quanto as flores que ele tão bem conhece. Pertence ao prof. Oddly um dos momentos mais belos do filme, quando ele conta ao grupo sobre a esposa há tanto tempo falecida, sua sweet Genevieve, como diz a canção folclórica que ele e o grupo cantam depois de ele teorizar sobre o sexo feminino: sexo tão frágil quando a anemone nemorosa, florzinha que esperava o calor do sol para abrir as pétalas “sensíveis e delicadas”. Em momentos como esses, em que as loucuras da screwball dão lugar à atmosfera agridoce de nostalgia, sempre me pego com lágrimas nos olhos – sim, sou tão corny quando o professor Potts...

Oh Genevieve, I'd give the world
To live again the lovely past!
The rose of youth was dew-impearled
But now it withers in the blast.

(...)
Oh Genevieve, sweet Genevieve,
The days may come, the days may go
But still the hands of mem'ry weave
The blissful dreams of long ago

E por fim, os protagonistas. Gary Cooper e Barbara Stanwyck já haviam sido juntados no mesmo ano no também ótimo “Meet John Doe” (Adorável Vagabundo), uma das obras primas de Frank Capra. Aqui repetem o brilhante par romântico – brilhante especialmente por causa de Barbara, que faz o elemento ativo da relação. Aliás, essa mulher, estrela subestimada em sua época, precisa ser olhada com muito cuidado. Agora estou vendo-a meio compulsivamente e a admirando cada dia mais. Só ela, dentre todas as estrelas da época, para ainda parecer irresistível mesmo esbordoando uma velha que estava coberta de razão. Barbara soube lidar bem com a pecha de “mulher decaída” que o star system lhe impingiu. Aqui ela cria uma admirável, cheia de pimenta e de um caráter tão dúbio que apenas a conheceremos verdadeiramente no final. Nós e o Freud da Enciclopédia dos velhinhos...


Além do roteiro excelente, da direção cuidadosa e das ótimas performances, “Ball of Fire” é, como nenhum outro filme da época, um sensacional compêndio da slang americana dos anos de 1940 - mais surpreendente ainda porque Billy Wilder, um de seus criadores, ainda estava aprendendo o inglês. Recomendo-o fervorosamente, ainda mais porque, embora seja uma das melhores screwball comedies da época, não recebeu a mesma atenção que tiveram suas congêneres: “Aconteceu naquela noite” (It happened one night, 1934), “Núpcias de Escândalo” (The Philadelphia Story, 1940) ou “Cupido é moleque teimoso” (An Awful Truth, 937), por exemplo. Só que os leitores precisam baixá-la, porque o Brasil ainda não a comercializa e ela é vendida nos States a peso de ouro. Legendas em português são encontradas na Opensubtitles.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Reflexões de fim de ano sobre uma arte-indústria um tanto insatisfatória

A partir de hoje este blog passará a publicar textos de crítica cinematográfica do escritor - meu amigo - Chico Lopes, coisa que muito me honra, já que sou fã assumida desse olhar crítico que ele volta aos objetos que analisa. Seja bem-vindo, Chico!


por Chico Lopes


Neste fim de ano, amigos me mandam listas de seus filmes favoritos de 2011. Reinam aqueles títulos que os leitores já sabem quais, “A árvore da vida”, “Melancolia”, “A pele que habito”, “Cópia fiel”, “Cisne negro” etc. Não faço desse tipo de lista e me sinto meio marginalizado por não ser dado à prática, porque parece que todo mundo tem as suas. Vi muitos filmes, profissionalmente e às vezes com expectativas apaixonadas, como sempre, neste 2011. Mas nada me cutucou tão profundamente quanto fui cutucado nos anos 80 por coisas como “Blade Runner” e “Veludo azul” e nos 90 por outras tantas. Minha impressão é a de que o último grande filme que vi é mesmo de 2001, “Cidade dos sonhos”, de Lynch.
Mesmo Almodóvar me parece uma coisa já meio esgotada, em “A pele que habito”, filme de interesse (porque nada do que ele faz é desinteressante), mas com o raso (nunca me convenceu como ator, é mais um galã que outra coisa) Antonio Banderas como protagonista. Helena Anaya e Marisa Paredes, as mulheres do filme, são muito mais interessantes como atrizes e seus papéis mais sugestivos. A história é envolvente, mas termina com um furo de roteiro besta. É apenas razoável, o filme, e não merecia tantas loas como vem merecendo. Achei “A árvore da vida” uma transposição da banalidade dos filmes de família americanos, aqueles dramas que às vezes são bons e às vezes nos parecem demasiado insossos e sentimentaloides, para uma escala cósmica. Banalidade cósmica, portanto - e Malick é um sujeito presunçoso, um sub-Kubrick. “Cópia fiel” me fez ficar cansado dos filmes muito “falados” típicos do cinema rodado na França. Não suportei ver Juliette Binoche, sempre linda, e seu marido (ou não) estudioso de arte, falando sem parar. Estou cansado das afetações empoladas e áridas do “cinema de arte”, pensei. Não é bem assim, na verdade. “Melancolia”, por exemplo, pegou-me com força.
Mas a mediania chata domina. Estou com 59 anos e só mesmo quando atacado de auto-complacência extrema, me permito curtir fantasias adolescentes. Filmes cheios de “magia” e efeitos digitais, com ação frenética, me deixam menos empolgado que sonolento. A explicação: tédio. Enredos bizarros, personagens bonzinhos de um lado e malvados de outro, lutas intermináveis, cenários pasmosos, dragões, resgates espetaculares etc parecem bailar no vazio. É preciso perder todo e qualquer senso crítico para achar isso realmente mágico e envolvente. Magia calculada demais deixa de ser magia. E há algo no cinema da era digital que, paradoxalmente, sugere mais irrealidade escapista que poesia, caindo na monotonia do exagero. E como os atores andam ruins! Se os filmes são adolescentes, então, pega-se gente que talvez um dia aprenda a representar, mas, por enquanto, pura lástima...
Estarei ficando velho e blasé demais?, me pergunto. Isso me remete ao passado do cinema.


A PERDA DA INGENUIDADE

Converso com regularidade com um amigo que, quando se trata de filmes de passado, ao começar a descobrir tudo que andava saindo em DVD, ficou, tal como eu, empolgado. “Vamos ver agora cinema de verdade”, dissemos meio que em uníssono, acreditando piamente que nada foi melhor do que o cinema dos anos 30, 40 e 50 em Hollywood, com uma pequena concessão para os anos 60 e 70. Bem, tivemos sustos e mais sustos com produções horríveis ou dignas de esquecimento que nossas memórias indulgentes envolviam naquela aura de coisa maravilhosa e intocável, quase mística (também, eram apenas a mais vaga lembrança), e fomos vendo que certas estrelas e astros não sabiam representar e certos diretores eram uma empulhação e certos roteiros eram risíveis. Claro que certas coisas eram mesmo muito boas, e tanto melhor, mas já eram exceções também, pois a Nostalgia engana muito: o “filme antigo” parece vir sempre carimbado por um prestígio automático e não é assim. Basta vê-lo com os olhos de presente, que já não são mais ingênuos (mudamos muito, ora, e como não mudar?), e tudo fica relativo ou meio patético.
Todo saudosista de cinema é assim, de certo modo – quer que a qualidade de certas lembranças se perpetue menos pela qualidade indiscutível dos filmes que lhes deram origem do que por alguma razão pessoal, de fortes raízes emotivas. Saudosismo e complacência andam de mãos dadas: pelo fato de nos trazerem belas lembranças ou nos despertarem suspiros por um mundo que nunca foi daquele jeito e nem poderia ser, perdoamos filmes maus ou medíocres, ainda mais quando revivem o rosto de uma atriz amada ou uma trilha-sonora particularmente venerada. Mas, basta um pouco de lucidez e a embriaguez se desfaz. A operação de cálculo comercial, com sua chantagem emocional, seu melodrama caça-níquel, logo transparece. Ninguém que se puser a rever “Amores clandestinos”, por exemplo, poderá deixar de ver, depois de anos e anos de cinema, que Sandra Dee era bonitinha e má atriz, Troy Donahue era um ator ridículo, e que aquilo era um dramalhão comercial de Delmer Daves embalado pela música – extremamente popular naquele fim de anos 50 no Brasil – do compositor Max Steiner, autor de tantas trilhas famosas para Hollywood. Pior ainda, no filme, era o casal dos pais dos jovens lindinhos, Richard Egan e Dorothy McGuire. As bancas andam cheias de DVDs desse tipo, afora musicais esquecidos e outros itens embolorados.
Thomas Mann dizia, em “Morte em Veneza”, que “o anseio é produto de um conhecimento falho”. Verdade: basta que se as conheça precisamente, e as coisas perdem facilmente seu ar fantástico e encantador. No caso da Nostalgia no cinema, o anseio é derivado de visões parciais, fragmentadas, de deslumbramentos não claramente compreendidos quando aconteceram, e os filmes são mesmo assim – as emoções que produzem não podem ser dissociadas de estados de espírito datados, coisas que sentimos em certas épocas e que são irrecuperáveis. A ingenuidade morre, e de modo irreversível.
Com os olhos abertos e a carga infalível da experiência, fazemos a viagem retrospectiva ao adquirir o DVD este ou aquele, e não é mais aquilo de modo algum. Outro dia, encontrei numa banca um senhor de seus 60 e tantos anos que me jurava que havia determinada cena num faroeste de James Stewart, dos dirigidos por Anthony Mann, que ele venerava e que ele o comprara por isso. Daí viu que o filme não tinha tal cena, e ficou irritado, mas era possível que houvesse se confundido, que o filme fosse outro, e títulos na cabeça de espectadores comuns, bem como atores (nem se fale de diretores) se perdem e confundem. Tais confusões são comuns, e ainda mais porque a Nostalgia é um apelo especialmente para pessoas que já começam a fenecer e ver os dados da memória se embaralharem. No caso dele, não queria, teimoso, renunciar ao seu ponto de vista. O filme tinha que ter aquela cena, ponto final, e ela devia ter sido cortada na edição do DVD – não era ele que estava errado de modo algum. Também reclamou que o filme não era tão bom como lembrava, mas, quando lhe perguntei quando o tinha visto, disse que lá com uns vagos 15 anos. “O senhor mudou muito desde então, não é mesmo?”, disse, brincando. Pareceu perplexo. Não havia pensado nisso – que entre sua visão de adolescente e sua visão atual, de sexagenário, haveria no mínimo um abismo a levar em conta. Nada permanece intacto, nós mudamos, mas como é difícil para certas pessoas admitir essa coisa tão óbvia, no terreno das emoções! Imaginamos sempre que certos tesouros têm o dom da eternidade, não os percebemos condicionados ao tempo como são. Deliramos, mas ai de quem duvidar da validade do nosso delírio...
Fiz duas dessas viagens, recentemente, a dois mitos de cinema que aprendi a amar muito depois dos tempos em que já eram artigos fanados: Marlene Dietrich e Vivien Leigh. Nasci em 1952 e comecei a ver filmes ainda garoto, no início dos anos 60, e, na época, Marlene Dietrich e Vivien Leigh eram nomes célebres de gerações bem passadas. Faziam ainda cinema, mas como autênticas grandes damas envelhecidas e respeitáveis em produções esparsas, e de Leigh ainda vi, sem entender nada, o filme em que ela era uma senhora madura e decadente convivendo com Warren Beatty bem jovem em “Em Roma, na primavera”. Quando vi Marlene pela primeira vez, foi em alguma reprise do “Testemunha de acusação”, filme em que já estava madura, não era mais a estrela ímpar dos anos 30 (mas, dirigida por Billy Wilder, tinha uma boa interpretação).
Dei azar: peguei para ver “Marrocos”, o mítico “Marrocos” de 1930 com que Marlene pisou em Hollywood, dirigida por Joseph Von Sternberg, que já a tinha lançado no sucesso internacional de “O anjo azul”. Se não houvesse ficado tão irritado com a tremenda afetação e o ritmo morto da produção, talvez houvesse dado grandes risadas, tal o ridículo da história e das interpretações. O filme é de um tempo em que o cinema falado era ainda uma novidade e os diálogos têm entre si intervalos em que os atores ficam olhando uns para os outros por tempo longo demais, não há ritmo ágil e as réplicas não surgem com a enxutez com que nos acostumamos, são preenchidos com um langor abestalhado, porque vazio de significado. Bons atores talvez houvessem superado isso, mas Marlene não se preocupava em ser uma atriz, era uma estrela, uma escrava de “atitudes” e figurinos, e Von Sternberg abusou dessa sua condição de manequim peixe-morto e insolente por muito tempo.
Ela faz uma cantora, Amy Jolly, que chega a Marrocos com um passado obscuro, sobre o qual se pode especular, e se apaixona por um soldado da Legião Estrangeira que a aplaude num show de um cabaré decadente. Tudo é mero pretexto para Von Sternberg exercitar sua paixão pela fotografia (de Lee Garmes) e é de uma frivolidade estúpida, com Gary Cooper jovem, bonito e boçal parecendo mais objeto sexual do que Marlene, visto que é adorado por todas as mulheres que circulam pelo filme. Marlene, o que faz? Andrógina, vestida de paletó e gravata, dá um beijo numa mulher do público, tira uma rosa que estava com esta e a joga para o legionário Cooper. Por isso, o filme é considerado o máximo em ousadia, e acho que ninguém nem prestou atenção ao resto. Que, por exemplo, a paixão que ela tem pelo legionário é um primor de masoquismo e submissão, e no final ela até tira seus sapatos de salto para segui-lo, junto com mulheres árabes que seguem seus bravos guerreiros machões, pelo deserto. Se ele vai prestar atenção ou não a ela, parece pouco importar: é o supremo sedutor cafajeste, o homem, o dono da jogada, e a ela cabe se submeter com total cegueira e idolatria, é “apenas uma mulher”, ora. Tudo isso é assistido por um pintor milionário (Adolphe Menjou) que não tem aparentemente o que fazer e passeia pelo mundo e está em Marrocos não se sabe por que, e se apaixonou tanto por ela (ou teria sido por Cooper?) que incentiva todas essas atitudes, com a generosidade absurda do corno mais manso e inverossímil que já existiu na tela. O filme é lixo glamouroso, como a maior parte do que Marlene fez com Von Sternberg, e, a meu ver, há uma condescendência grande demais com esse tipo de produto até hoje. Marlene, com aquela beleza, claro que era objeto de culto, mas parecia encarar sua carreira de atriz como um apêndice de sua condição de estrela e nada mais.


Vivien Leigh, que era essa coisa rara – uma estrela lindíssima e uma atriz de alto talento – é outra história. Há algo de verdadeiramente trágico na vida dessa mulher, cuja beleza nos arrepia mesmo quando os filmes são melodramas absurdamente rançosos como “A ponte de Waterloo”, em que faz uma bailarina que, por passar fome na guerra, acreditando que o seu homem (Robert Taylor) morreu em combate (segundo o que lê num jornal que dá as baixas militares), vira prostituta, e um dia, quando ele volta, acha-se tão indigna dele que se joga sob caminhões bélicos. Era um desperdício colocá-la em filmes assim, mas Vivien era mesmo de um talento miraculoso e sobrevivia até a esse lixo sentimental todo. Teve uma carreira cinematográfica confusa devido à sua obsessão pelo teatro e por Laurence Olivier e fez filmes duvidosos em que só ela acabava valendo. É o caso de sua “Ana Karenina”, dirigido por Julien Duvivier em 1948, que só vi agora, depois de conhecer a mitológica feita por Greta Garbo em 1935 e uma mais recente (1997) feita pela atriz Sophie Marceau. A heroína de Tolstoi é perfeita para Vivien, mas o filme é muito morto e adapta o escritor de modo convencional, reverente e apagado. A versão existente no mercado, ao menos a que me chegou às mãos, está péssima em som e imagem, uma mutilação da fotografia de Henri Alekan. É, aliás, outro dos riscos desse mercado de DVDs clássicos que se instalou nas bancas: desconfiar da qualidade é preciso, porque todos vêm lacrados e não raro guardam defeitos revoltantes.


RECICLAGENS E RAPINAS

Acredito que, com os VHS e DVDs, tendo acesso a todo o passado cinematográfico, fomos aprendendo todos, cinéfilos ou críticos, a amar um cinema que não foi em absoluto o da nossa geração, nosso tempo, que nos chegou embalado no prestígio de eras recobertas por boa quantidade de “nobreza de antiquário” ou bolor. Os brilharecos do passado nos ofuscaram. Aumentaram a nossa cultura cinematográfica, mas também nos tornaram mais indulgentes e acomodados e às vezes até mesmo cegos. Os anos 60 foram violentamente desmistificadores, e os 70 fizeram também de suas misérias com os mitos românticos e os heroísmos e as hipocrisias do passado hollywoodiano, mas, quase como numa reação compensadora, meio que ressentida e vingativa, os 80 foram muito reverentes na reciclagem das velhas formas de fazer cinema, e aí a Nostalgia se instalou comodamente – foram revividos os policiais noir (“Corpos ardentes”, “Chinatown”), as aventuras de seriado (“Indiana Jones”) e toda a limitação dos filmes de gênero com o artificialismo das poses e estereótipos clássicos – o que pareceu atingir o ápice com o “néon-realismo” de Francis Ford Coppola em “Do fundo do coração”. De repente, referindo-se ao Cinema, exibindo-se repletos de citações e preciosismos saudosistas, os filmes ficavam como que eximidos de crítica, e o que houve foi, sob muitos aspectos, um passo para trás. Os 90, mais violentos, paródicos e cínicos, foram apenas reforçando defeitos de uma indústria cada vez mais predadora e cada vez menos preocupada com disfarçar sua cupidez e falta de qualidade, e aí já nem mais importava a reciclagem dos mitos e velhas formas. Desde então, os buracos terríveis da indústria só fizeram aumentar e o vale-tudo, contanto que dando lucro, começou a ficar insano.
Pauline Kael, a maior crítica de cinema que os EUA já tiveram, deixou de fazer crítica nos anos 80, não aguentava mais. Não sei o que pensaria, se viva estivesse, e ainda ativa. Como teria reagido a coisas como Adam Sandler, Mike Myers, Steven Seagal, Vin Diesel etc etc etc? O que é que estaria achando bom, hoje em dia?
Em todo caso, é dela o livro que recomendo para os que quiserem entender os mecanismos da indústria e como o cinema, mesmo o melhor cinema nostálgico, foi parar no cemitério da televisão ou se degenerou na mão de produtores cujo máximo interesse é o lucro óbvio e que fazem tudo para que o público fique à sua mercê. Com todo o aparato publicitário que está à sua disposição, esmagador, a verdade é que vencem a batalha, porque a publicidade é a grande sedutora de nossa época e quem acha que o público em geral está disposto a ser crítico se engana redondamente. Uma coisa empurrada à força, formulaica, pobre, estúpida, como a maioria dos filmes no momento é, pode ser um grande sucesso ou será um sucesso médio, mas ignorada não será. A estupidez dita as regras, o comércio descarado encontra receptividade no público e vai prosseguindo, que ninguém se iluda. Kael viu isso no fundamental “Criando Kane”, que saiu no Brasil pela Record. Todos nós precisamos ler e reler este livro.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Núpcias de Escândalo (The Philadelphia Story, 1940)

“Núpcias de Escândalo” é conhecido como o filme que salvou a carreira de Katharine Hepburn. Kate, que no início dos anos 30 fora considerada uma das maiores promessas de Hollywood (recebeu o Oscar de Melhor Atriz por uma de suas primeiras incursões na tela grande, quando interpretou a também atriz iniciante em “Morning Glory”, de 1933) teve, no fim da década, colada à sua imagem o rótulo de box office poison, o qual a obrigou ao exílio das telas e à dedicação ao teatro – retornando ao meio do qual ela se afastara no início da década, depois de uma série de produções mal-sucedidas.

Quis o acaso, no entanto, que a atriz subisse à cena guiada pelo texto primoroso de Philip Barry e secundada por dois sólidos atores, que o grande público conheceria bem nos anos subsequentes: Joseph Cotten (que pouco tempo depois seria apresentado por Orson Welles no “Cidadão Kane”) e Van Heflin (ao lado de quem Kate já havia atuado em “A woman rebels”, 1936). Acima de tudo, a atriz tinha nas mãos um papel que era um desdobramento de si, como ela faz questão de sublinhar no ótimo “Katharine Hepburn: um auto retrato” (que integra a versão dupla do DVD) – em que ela nostalgicamente guia o público pelos seus 60 anos de carreira. “Eu a entendia”, diz a atriz referindo-se à aristocrata mimada e intransigente Tracy Lord. Acompanhe o leitor as fugas de Miss Hepburn de repórteres bisbilhoteiros e seu desprezo pela maquinaria de Hollywood para perceber o quanto a atriz se aproximava da personagem.
O sucesso da peça na Broadway (foram 417 performances entre março de 1939 e março de 1940) fez com que a atriz arguta convencesse o bilionário Howard Hughes (essa fase da vida conjunta dos dois é narrada em “O Aviador”, 2004) a lhe comprar os direitos da peça; direitos que ela depois vende à Louis B. Mayer, obtendo em troca a garantia de que repetiria nas telas o papel que a consagrara no palco.
Dito e feito. Meses depois Kate dava vida novamente à Tracy Lord, desta vez secundada por Cary Grant e James Stewart e em frente às lentes de seu querido diretor George Cukor.
O resultado é antológico. A peça de Barry, adaptada à cena por Donald Ogden Stewart (vencedor do Oscar de melhor roteirista pelo trabalho), é brilhante. Mas é ainda um tanto quanto teatral, portanto, o sucesso da empreitada coube igualmente a George Cukor, cuja batuta competente fez com que o elenco baixasse o tom nalguns diálogos pomposos, o que só fez o filme ganhar em realismo e em poesia.
Kate, Cary e Jimmy usam bem o texto eloquente, com laivos de romantismo rasgado, mas isso também porque as palavras altissonantes recheiam ideias densas. Tracy reencontra o ex-marido e ex-bebedor convicto C.K. Dexter Haven (Cary Grant), um nome que derrama aristocracia, um dia antes de seu casamento com um novo-rico. Na superfície, o homem parece querer ir à forra: “Quando eu descobri que meu papel não seria de um marido amoroso, mas sim o de um alto sacerdote para uma deusa virgem, aí minhas bebedeiras começaram a ficar mais profundas e frequentes.” - eis o nivel da prosa.
Miss Lord (aristocrata também no nome), a "deusa pálida e fria" que, segundo o ex-marido, certa noite se embebedara e subira nua no telhado – “com os braços apontados para a lua, uivando”: “aquilo foi muito importante e revelador. A lua também é uma deusa... Casta e virginal.”, ele completa – surpreendentemente será degelada por um tipo pouco convencional: o cronista mundano e escritor sério nas horas vagas Macaulay Connor (James Stewart).
Connor vitupera seu ganha-pão. No entanto, movido pelas circunstâncias a cobrir o casamento da aristocrata, não demorará muito a descobrir que a armadura de frigidez empunhada pela moça encobre uma alma muito parecida com a dele. Tanto que, tocados pelo álcool, ambos protagonizam uma das cenas românticas mais sensacionais do cinema, com direito aos ditos mais grandiloquentes, que se tornariam uma patacoada se não estivessem envoltos num contexto tão arrebatador. Nos braços de Mike, Tracy se torna uma “mulher de ouro”, “de carne e osso”, “iluminada por dentro por labaredas e holocaustos”. A deusa de gelo finalmente é derretida – o fogo restante do incêndio será apagado pelos dois num banho de piscina...
Mas o filme é antes de tudo uma comédia – e talvez seja por isso que a censura não lhe tenha retalhado cenas como a acima. É um dos últimos exemplares das screwball comedies – filmes que conjugavam com maestria a agilidade dos diálogos, das ações e dos movimentos de câmera, sem deixar de lado a nobreza dos caracteres. Mesmo as sequências mais românticas são acenadas com piscadelas cômicas. E não só quando há o choque entre os caracteres e ways of life distintos: Mike e sua amiga fotógrafa bisbilhotando a casa da ricaça pela primeira vez (“Você não sabia que é preciso ser podre de rico pra morar numa bagunça dessas?”, diz a moça vendo os bibelôs da casa); Tracy fazendo pose de boa moça para impressionar o jornalista e a fotógrafa que ela é obrigada a receber; C.K. Dexter Haven fingindo-se de marido ofendido ao ver a ex-mulher nos braços do jornalista; Mike entoando canhestramente “Over the rainbow” para uma Tracy ébria e de roupão, sob os olhos do ex e do futuro marido da moça. Isso sem contar a inesquecível sequência inicial, flagrante jocoso dos momentos que antecedem o divórcio do casal, quando ambos resolvem sua diferença no braço e um taco de golfe leva a pior...
E enquanto romance e comédia se enlaçam do jeito mais delicioso possível, não é só Tracy que deixa a torre de marfim para encetar um corpo-a-corpo com o mundo errático: Mike reaprende a enxergar os endinheirados, tomando para si a lição do personagem de um dos contos que escrevera: “Sempre tenha paciência com os ricos e poderosos”. O único a passar incólume pelo dia de exceção é C.K. Dexter Haven, munido desde o princípio daquela sabedoria que só o sofrimento consegue construir. No final das contas, ele é quem melhor entende a jovem Tracy Lord, desde o princípio. Porém, ela precisará fazer logo sua escolha entre o novo-rico, o intelectualizado jornalista e o ex-marido. Os convidados já estão esperando.


segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O ano cinematográfico de 2011 em revista

Em 2011, continuei a lista de filmes vistos no cinema que criei a partir de 2010. Revejo-a agora para preparar mais um daqueles famigerados (e abundantes) balanços cinematográficos do ano que passou. Não há aqui nenhum diferencial dos demais levantamentos de melhores e piores: será igualmente subjetivo e baseado nas coisas que a pesquisadora atarantada aqui teve tempo e possibilidade de ver; e também será vago, fruto da tentativa de inserir muita coisa no espaço de um post. Para facilitar o trabalho, à medida que eu revisava a lista, ia dividindo os filmes em categorias paridas às pressas. Serão elas que determinarão o correr das linhas daqui em diante:

Os norte-americanos

O cinema norte-americano atual é tão óbvio que tira toda a graça do crítico. Divide-se quase que globalmente em: filmes para concorrer ao Oscar/ filmes para fazer dinheiro. A segunda categoria domina o mercado gerando coisas abaixo da crítica, portanto, deixemo-las descansarem em paz. A primeira dá um pouco mais de pano pra manga:

Os oscarizados (e os indicados)

Reencontrando a Felicidade

Não é preciso teorizar muito sobre o valor simbólico da premiação e da automática chancela de qualidade que carimba seus escolhidos. Às vezes a escolha é justíssima. Na maioria delas, no entanto, são premiados filmes bem-feitos, porém, convencionais. Se em alguns momentos o prêmio tem o aplaudível poder de fazer circular globalmente um filme estrangeiro que, caso contrário, bem possivelmente estaria restrito a nível local, ele serve sobretudo para a indústria de cinema norte-americano chamar atenção sobre si, elevar-se como produtora de obras de valor, quando na verdade não passa de um mercado de banalidades com raros sopros criativos.
Neste ano não foi diferente. Dois filmes convencionais ganharam os prêmios principais da Academia: “O Discurso do Rei” ("The King's Speech", Hooper, 2010) e “Em um mundo melhor”. O primeiro é um filme simpático: a história de superação do Rei George VI, da Inglaterra, é contata por um Colin Firth correto, porém, bem distante de seu desempenho brilhante em “Direito de Amar” (2009). Mas o ano produziu obras mais substanciais. Compuseram a lista dos indicados “Reencontrando a felicidade” (“Rabbit Hole”, Mitchell, 2010), “127 horas” (“127 hours”, Boyle, 2010), “A Rede Social” (“The Social Network”, Fincher, 2010), “Inverno da alma” (“Winter’s Bone”, Granik, 2010), todos filmes provocadores: a mãe (uma Nicole Kidman impecável) que perde o filho pequeno e está sempre às voltas com seu assassino involuntário, ambos ruminando culpas e acusações e tentando se reencontrar depois da tragédia; o homem que precisa se mutilar para escapar da cilada impingida pelo seu espírito aventureiro; os gênios da era digital, gente muito nova que tem o mundo de hoje nas mãos; a jovem sulista que toma a família nos ombros e altivamente sai em busca do pai, traficante desaparecido que vendera a casa da família. Sem contar “Bravura indômita” ("True Grit", Cohen, Cohen, 2010), diversão pura e da melhor qualidade, imprimindo na tela grande um western das antigas, luminosa homenagem dos irmãos Cohen ao que de melhor nos deu Jonh Wayne. À homenagem à sétima arte, à profundidade dos dramas humanos, à reflexão sobre os caminhos da tecnologia a Academia preferiu uma patriotada – uma patriotada bem-feita, mas que só será lembrada (por mim, pelo menos) como o abre-alas para a novela do casamento real de William e Kate, a maçada do ano.
No que toca aos estrangeiros, infelizmente só vi “Biutiful” e “Incêndios”, mas qualquer um dos dois ganha do premiado, o dinamarquês/sueco “Em um mundo melhor”, que tem o poder de entremear duas narrativas igualmente medíocres, dialogando entre si de forma artificial, e não deixam qualquer chavão passar batido: o menino que sofre de bullying, revoltado pela mãe que morreu de câncer, e o do médico bonzinho que lida com sanguinários (ultracaricatos) líderes africanos. Enfim, as desgraças da mídia são enfileiradas na película, pasteurizadas para alimentarem o paladar pouco treinado do público comum.


Os pretensiosos

Outro subgênero importante do cinema dos EUA é composto por filmes que se querem grandes, porém, apenas conseguem serem-no no que toca à duração, aos gastos, enfim, à pretensão. Minha lista de pretensiosos do ano é composta pelo sensaborão “Um lugar qualquer” (Somewhere, 2011, Sofia Coppola), filme que rompe com a narrativa estereotipada de Hollywood, mas não consegue ganho nenhum com isso: arrasta-se como se estivesse solto ao sabor do vento, perdido entre imagens banalíssimas de refeições sendo preparadas, dançarinas bailando números musicais inteiros, inúmeras viagens de carro - elementos que somados nos levam a nowhere, com o perdão pelo trocadilho... Segue a banda o “Cisne Negro” ("Black Swan", Aronofsky, 2010) e “Meia-noite em Paris” ("Midnight in Paris", Allen, 2010), ambos louvados pela crítica oficial mas desancados – com argumentos, bem entendido – por essa que vos fala, pobre resenhista que chegou até a ser agredida verbalmente porque, ooohhh!, cometeu a heresia de dizer que Woody Allen fazia, em seu filme, uma cópia piorada de si mesmo. O quarto filme a receber tratamento análogo aqui será “A árvore da vida” (“The tree of live”, Mallick, 2011), que merece o pódio da categoria.

Este merece uma leitura um pouco mais detida – mas nem tanto, pois espero ansiosamente pela resenha de meu amigo Chico Lopes, que consegue como ninguém ser num só tempo inteligente, irônico e divertido. Especialmente porque o filme já arrebanhou a Palma de Ouro em Cannes, prêmio respeitável.
Se “A árvore da vida” é competente numa coisa, é no marketing. Um diretor recluso e bissexto é coisa tão surpreendente nessa nossa era de ultraexposição na mídia que só isso já vale um prêmio. Junte artistas famosos (o confiável Sean Pen e o galã-quarentão-ainda-com-estofo-pra-fazer-bilheteria Brad Pitt), tecnologia de ponta e um texto cifrado, pseudo-intelectualizante. Uma amiga minha definiu lindamente o filme: duas horas e meia de apresentação da proteção de tela do Windows. Isso quase que encerra a questão. Basta apenas dizer que esse desfile de imagens bonitas empacota a história pouco convicente de uma família do sul dos Estados Unidos do início dos anos 50. Mas a pretensão é imensa: nestes 5 indivíduos (a estória tem laivos autobiográficos, como não podia deixar de ser) o diretor/escritor pretende fazer emergir a história do cosmos: do caos ao big bang, as águas vivas e os dinossauros, e um marido machão que agride a esposa e tolhe os filhos. Diga-se de passagem, é muito egocentrismo do Sr. Mallick pretender que seu mundinho familiar (circunscrito a um grupo branco, de classe média, dos Estados Unidos do pós-guerra) tenha estofo para gerar tal reflexão metafísica. Se ele estivesse me ouvindo eu lhe indicaria sessões de análise para que, livrando-se do pai castrador, ele nos livrasse de projetos como esse. Mas como ele não está, mudemos de assunto.


Os bons, longe dos Estados Unidos

Porque vi poucos filmes americanos, meu ano cinematográfico foi muito bom. Da Argentina nos chegou “Abutres” (“Carancho”, Trapero, 2010), “Um conto chinês” (“Um cuento chino”, Borensztein, 2011), ambos com o excelente Ricardo Darín, que para nossa sorte trabalha com bastante regularidade. Ambos valem a pena: o primeiro porque trata com agudez do funcionamento da indústria argentina de pagamentos de seguros de trânsito, com toda a corrupção que a envolve; e especialmente o segundo, uma comédia extremamente bem encenada, de ditos espirituosos e situações cômicas bem fundadas, mas que não deixa de lado o aprofundamento dos caracteres e o choque de ideias – choque gerado pela aproximação de duas culturas bem diferentes, unidas definitivamente por uma insólita vaca que despenca do céu (o tal “conto chinês” do título). Outro altamente recomendável é “O homem ao lado” (El hombre de al lado, Cohn, Duprat, 2009), tragicomédia que tematiza com louvável seriedade a relação entre visinhos – e, mais amplamente, a relação com o outro.
Da Coreia do Sul chegou aqui no interior “Poesia” (“Shi, Chang-dong-Lee, 2010) bela história da velhinha que, já corroída pelo Alzheimer, começa a enxergar a vida com olhos de poeta – resultado das aulas de poesia que começa a tomar. Do Peru, “Contracorrente” (“Contracorriente”, 2009, Fuentes-León), delicada leitura do homossexualismo numa aldeia de pescadores peruana. Dos que ainda podem ser pegos na tela grande, valem a pena os dois franceses “A chave de Sarah(“Elle s’appelait Sarah”, Paquet-Brenner, 2010) e “O garoto da bicicleta” (“Le gamin au velo”, Dardene, Dardene, 2011), premiado em Cannes com o Grand Prize. O primeiro não consegue um efeito cinematográfico tão eficiente ao entremear a odisseia de Sarah – judia enviada com os pais a um campo de concentração alemão, pelas mãos do próprio exército francês, e que dele foge para tentar salvar o irmão que ficou para trás – e a de Julia, jornalista que, ao escrever sobre o Holocausto, descobre que a família do marido esteve ligada intimamente à tragédia da menina judia; e precisa lidar com todos os problemas familiares decorrentes da descoberta. Porém, ele vale sobretudo pela ótima Kristin Scott Thomas, na pele de Julia. O segundo já atinge com maestria a unidade entre forma e tema: conta sem rebuços a história de um garoto revoltado, interno de um orfanato, e seu périplo para resgatar a manter a bicicleta – e a integridade moral e física – numa cidade hostil. A câmera toma o mundo pelos olhos do protagonista, provocando a identificação rápida do leitor com o menino meio vadio e meio perdido, porém, acima de tudo uma criança que ainda tem muito a conhecer da vida. Mesmo aproveitando-se da subjetiva direta, a narrativa não deixa de ampliar o escopo, pintando, além do menino, o mundo que o rodeia – mundo cujas ambiguidades ele ajuda a construir.
E do Brasil, em meio ao lixo industrial brotaram os bons “Capitães da areia” (Amado, Gonçalves, 2011), dirigido com alguma irregularidade mas bonita reverência pela obra de Jorge Amado – e a diretora, neta do autor, consegue numas cenas da obra resultados mais interessantes que os alcançados no livro; “Amanhã nunca mais” (Jungle, 2011), em que sensacionais Lázaro Ramos e Maria Luisa Mendonça ousam num filme divertido e denso, diferente das coisas que se produzem no país; e “O Palhaço” (Selton Mello, 2011), com espantoso sucesso de público, considerando-se às meias tintas da produção, homenagem singela ao mundo do circo.


Os melhores

De minha lista de melhores fazem parte os norte-americanos “Além da vida” (“Hereafter”, Eastwood, 2010) e “Melancolia” (Melancholia, Von Trier, 2011). O primeiro surpreendente pelo modo como amarra as histórias de duas vidas marcadas pela tragédia à história do homem que tem poderes espirituais. Além da direção acima de qualquer suspeita de Clint Eastwood, que me atrai por atingir a dimensão poética das coisas que tematiza, o filme vale por Matt Damon (cada vez melhor), no papel do vidente, e de Cécile de France, como a moça que escapa com vida da histórica tsunami da Tailândia.

"Melancolia" eu achei maravilhoso do princípio ao fim e nos mínimos detalhes: na escolha da linguagem cinematográfica usada: o uso competente da câmera para detalhar os estados de espírito da protagonista e de sua irmã; o modo como a apaixonada e torturada partitura de “Tristão e Isolda” molda-se ao tema, pintando com grandiosidade a entrega passional à inação, inerente à melancolia; nas atuações irrepreensíveis de Charlotte Gainsbourg e Kristen Dunst – esta última está perfeita e merece com louvor o prêmio de melhor atriz que Cannes lhe deu (e eu que a imaginava talhada apenas para representar a noivinha boboca do Homem Aranha...).Adicionar imagemDa Itália saiu a comédia “O primeiro que disse” (“Mine Vaganti”, Ozpetek, 2010): linda (e não falo apenas dos lindíssimos protagonistas), tocante, divertida, bem italiana. Da Espanha, o impressionante “A pele que habito” (“La piel que habito”, Almodóvar, 2011), as pazes de Almodóvar com o grande cinema e de Antonio Bandeiras, com os grandes protagonistas. Flertando com o cinema de horror e com os avanços no campo da medicina – campos que parecem cada vez mais aproximados – o diretor levantou e desdobrou, com sangue frio, questões pungentes: quais são os limites da medicina? onde se concentra a identidade do sujeito?
Da Rússia/França, “O Concerto” (Le Concert, Mihaileanu, 2009), história do maestro que, metido num imbróglio político no passado, apenas reassume sua função depois de se juntar aos músicos seus amigos – um bando de russos bem russos, gritões, beberrões e intensos (e eu ressalto os estereótipos com todo o respeito, porque eles são usados nesses filmes com uma sinceridade comovente). O filme traz uma visão arrebatadamente romântica da arte, ainda mais cabível considerando-se o tour de force do grupo na execução de Tchaikovsky, o grande compositor romântico russo.

Da França ainda saiu o instigante “Cópia Fiel” (“Copie conforme”, Kiarostami, 2010), exercício filosófico e cinematográfico de respeito; “Homens e Deuses” (“Des hommes et des dieux”, Beauvois, 2010), brilhante lição de como o respeito entre os homens e o amor ao próximo extrapola os limites das religiões; “Gainsbourg, o homem que amava as mulheres” (“Gainsbourg, vie héroique”, Sfar, 2010), comovente (e original) documentário sobre o músico francês; “Potiche: a esposa troféu”, com a minha agora querida Catherine Deneuve, que me levou à Paris e me fez lá reencontrá-la no gracioso drama musical “Les biens aimés” – filme em que ela novamente canta, desta vez com a filha.
E do Brasil saiu o ótimo “Não se preocupe, nada vai dar certo” (“Carvana”, 2011), em que Tarcísio Meira dá um show na pele do artista canastrão e trambiqueiro, numa trama que acompanha-lhe o ritmo: também ela exagerada, colorida e irresistivelmente absurda.

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O ano de 2011 nos reserva surpresas. De minha parte, espero ansiosamente pela montagem cinematográfica de “Deus da carnificina”, protagonizado pelas grandes Kate Winslet e Jodie Foster; e por “O Artista” (Hazanavicius, 2011), filme francês em branco e preto e silencioso cujo trailer prova cabalmente que, nesses tempos em que a tecnologia engole o produto, nada melhor do que se voltar às origens para se salvar à arte.