Não paro de me surpreender com a produção cinematográfica da Hollywood clássica. Parece impossível que um cinema tão preso a convenções, preocupado fundamentalmente em vender a imagem de seus stars, tenha conseguido produzir tanta coisa notável – e aqui me prendo especificamente em “Ball of Fire”, screwball comedy roteirizada por Billy Wilder e Charles Brackett e dirigida por Howard Hawks no princípio dos anos 40.
Hawks provara ser mestre no gênero desde que dirigiu “Bringing up baby” (Levada da Breca, 1938) e “His girl Friday” (Jejum de Amor, 1940). Wilder, o grande Wilder, até então não havia se aventurado detrás das câmeras, mas roteirizava desde o início dos anos 30, antes em sua Alemanha natal e depois nos Estados Unidos, tendo sido responsável por engendrar, por exemplo, “Ninotchka”, a primeira comédia – e que comédia! – protagonizada por Greta Garbo. Hawks já havia dado à Sétima Arte um conjunto heterogêneo de produções: épicos como “Sergeant York” (1941), filmes noir como “Scarface” (1932). Wilder rapidamente estenderia seus domínios, como roteirista e diretor, para os campos da comédia, da tragicomédia, do romance, do drama, do noir, sempre com resultados de qualidade assombrosa: “The major and the minor” (1941), “A foreign affair” (A mundana, 1948), “Sabrina” (1954), “Sunset Boulevard” (Crepúsculo dos Deuses, 1950), “Double Idemnity” (Pacto de Sangue, 1944) – quase sempre com a parceria de Charles Brackett.
“Ball of Fire” é a prova cabal da versatilidade do grupo. A história se estrutura em torno dos elementos da comédia amalucada, que, no entanto, se enlaçam de um modo irresistível à violência dos gangsters dos noir e ao romance agridoce. Só a premissa já é de encher os olhos: Sugarpuss O’Shea (Barbara Stanwyck), cantora de cabaré, é obrigada pelas circunstâncias a se esconder na Fundação habitada por oito professores de meia idade e celibatários que escrevem uma Enciclopédia cuidados por uma velha governanta; o único jovem do grupo é Bertram Potts (Gary Cooper), que cruza com a moça enquanto procura fontes para sua pesquisa sobre slang (a língua informal, usada sobretudo na fala e por um grupo particular de pessoas – a nossa gíria), um dos verbetes da Enciclopédia. O choque entre essas duas personalidades opostas, elemento fundamental da screwball, é aqui potencializado porque um efetivamente troca de lugar com o outro: as buscas do prof. Potts levam-no à boate onde a moça apresenta um número “repleto de palavras tão estranhas que o deixam com a boca cheia d’água”; a fuga de Sugarpuss – “Rostinho Doce”, segundo a melhor slang – leva-a a aceitar o convite do homem e compor o grupo que estudaria o assunto na Fundação onde ele habita.
Mas, para além dos quiproquós envolvendo os senhores castos e a moçoila espevitada e tudo, menos casta – chacoalhada explícita na fábula da “Branca de Neve e os Sete Anões” – o que me encanta na história é o tratamento que ela dá à língua e aos saberes institucionalizados. Não sei se o assunto parecerá abstrato demais àqueles que desconhecem os debates dos Linguistas sobre as variedades da Língua e as noções de “erro” e “acerto”; dos embates homéricos travados entre Linguistas – defensores da língua viva, com todas as suas variantes populares e eruditas, de pronúncia e de escrita – e Gramáticos Normativos, que classificam como “erro” tudo o que foge à “norma culta”. O embate gerou filhos obtusos como, recentemente, o debate sobre o livro de português que supostamente ensinava errado apenas porque admitia a possibilidade de se dizer “os livro”. Mas encurtemos o assunto. O que “Ball of Fire” faz, e esse é um dos motivos pelos quais ele me é tão querido, é balançar o coreto da Gramática Normativa – e em 1941!
E com que graça ele o faz!... Nesta história, o saber institucionalizado - compreendido pela Enciclopédia e os velhos acadêmicos que a redigem – é primeiro caricaturado para depois ser revisto até finalmente dar os braços ao saber popular. Gíria – lembra o professor Potts – como diz o poeta Carl Sandburg, é a língua que tira o casaco, cospe nas mãos e pega no batente. É o aspecto mais dinâmico da linguagem, e ele, para aprendê-la, deixará o conforto dos livros antigos de referência e encetará um encontro com a sociedade viva que a fala. É aí que encontrará Sugarpuss.
Os professores, embora eruditos, pouco sabem para além de sua área de conhecimento. Sugarpuss carece de ensino formal mas esbanja conhecimento prático da vida. Logo ela vai iluminar, com seu brilho de entertainer, a vida pálida dos homens que a circundam. E tudo isso acontecerá dentro da estrutura narrativa mais enxuta e coerente que se pode esperar, o que só faz cooperar na construção dos tipos e situações criadas:
Nas mesas redondas onde o professor Potts tentará aprender a slang americana com “um grupo de pessoas dos mais variados grupos sociais” (ideia moderníssima ainda hoje) nasce a discussão sobre o que é corny (sentimentaloide), a qual ajudará a definir os caracteres dele e da jovem Sugarpuss. E é uma slang – como não – que juntará o rapaz e a moça, numa das cenas românticas mais deliciosas de todos os tempos, que culmina com ela lhe ensinando o que é Yum Yum (vejam a cena abaixo, um dicionário visual do vocábulo), não sem antes fazer chover na cabeça do rapaz construções linguísticas que até hoje botariam o prof. Pasquale e sua trupe de cabelos em pé (construções que são questionadas pelo prof. Potts bem no meio da cena romântica, o que só lhe faz aumentar o charme: Miss O'Shea, the construction "on account of because" outrages every grammatical law!).
O prof. Potts, a Bola de Fogo e os profs. Oddly e Magebrunch
Em volta da dupla de protagonistas brilha um dos melhores conjuntos de coadjuvantes da época. Nomes como S.Z. Sakall, gordo e de rosto afável, responsável por uma infinidade de tios, primos e amigos bonachões no cinema dos anos 40, 50 (foi o barman de “Casablanca”). Sakall é um personagem tipo, como os demais professores, mas aqui os tipos casam-se perfeitamente com o roteiro. Ele é no filme o prof. Magebrunch, especialista em fisiologia, chamado sempre para resolver os problemas de saúde do grupo. Assim como o botânico prof. Oddly, o qual, apesar da “esquisitisse” que lhe atribui o próprio nome, é tão suave quanto as flores que ele tão bem conhece. Pertence ao prof. Oddly um dos momentos mais belos do filme, quando ele conta ao grupo sobre a esposa há tanto tempo falecida, sua sweet Genevieve, como diz a canção folclórica que ele e o grupo cantam depois de ele teorizar sobre o sexo feminino: sexo tão frágil quando a anemone nemorosa, florzinha que esperava o calor do sol para abrir as pétalas “sensíveis e delicadas”. Em momentos como esses, em que as loucuras da screwball dão lugar à atmosfera agridoce de nostalgia, sempre me pego com lágrimas nos olhos – sim, sou tão corny quando o professor Potts...
Oh Genevieve, I'd give the world
To live again the lovely past!
The rose of youth was dew-impearled
But now it withers in the blast.
(...)
Oh Genevieve, sweet Genevieve,
The days may come, the days may go
But still the hands of mem'ry weave
The blissful dreams of long ago
E por fim, os protagonistas. Gary Cooper e Barbara Stanwyck já haviam sido juntados no mesmo ano no também ótimo “Meet John Doe” (Adorável Vagabundo), uma das obras primas de Frank Capra. Aqui repetem o brilhante par romântico – brilhante especialmente por causa de Barbara, que faz o elemento ativo da relação. Aliás, essa mulher, estrela subestimada em sua época, precisa ser olhada com muito cuidado. Agora estou vendo-a meio compulsivamente e a admirando cada dia mais. Só ela, dentre todas as estrelas da época, para ainda parecer irresistível mesmo esbordoando uma velha que estava coberta de razão. Barbara soube lidar bem com a pecha de “mulher decaída” que o star system lhe impingiu. Aqui ela cria uma admirável, cheia de pimenta e de um caráter tão dúbio que apenas a conheceremos verdadeiramente no final. Nós e o Freud da Enciclopédia dos velhinhos...
Além do roteiro excelente, da direção cuidadosa e das ótimas performances, “Ball of Fire” é, como nenhum outro filme da época, um sensacional compêndio da slang americana dos anos de 1940 - mais surpreendente ainda porque Billy Wilder, um de seus criadores, ainda estava aprendendo o inglês. Recomendo-o fervorosamente, ainda mais porque, embora seja uma das melhores screwball comedies da época, não recebeu a mesma atenção que tiveram suas congêneres: “Aconteceu naquela noite” (It happened one night, 1934), “Núpcias de Escândalo” (The Philadelphia Story, 1940) ou “Cupido é moleque teimoso” (An Awful Truth, 937), por exemplo. Só que os leitores precisam baixá-la, porque o Brasil ainda não a comercializa e ela é vendida nos States a peso de ouro. Legendas em português são encontradas na Opensubtitles.