Um novo Woody Allen acabou de aportar por aqui. Junto, quase, do escândalo de dimensões faraônicas que sacudiu as estruturas – já não tão firmes – da prefeitura de São Paulo. A semelhança entre ambos os acontecimentos só é forçada aqui porque descobri, hoje, que a delatora da fraude do ISS é uma conterrânea minha. Il faut honrar a prata da casa...
Allen voltou à boa forma. “Blue Valentine” é um filme bem feito, charmoso e volúvel como a corrupção de colarinho branco. Ao dizer que Cate Blanchett arrasa, choverei no molhado. De todo modo, cumpre reverberar a maestria, o domínio, a profundidade inequívoca com que ela dá vida à vulgaríssima esposa do ricaço de vida equívoca interpretado por Alec Baldwin - personagem não só verossímil como verdadeira, a contar pela valinhense que resolveu pôr a boca no trombone tão logo notou que sua fonte secaria.
Incensa-se a semelhança entre "Blue Jasmine" e “Uma rua chamada pecado” ("A streetcar named desire", 1951), obra-prima de Kazan, Leigh e Brando. No entanto, a aproximação entre um filme e outro é tão gritante que a homenagem soa uma apropriação canhestra. Sally Hawkins (Ginger, irmã da protagonista) não é Kim Hunter; Andrew Dice Clay (o troglodita namorado de Ginger), embora muito bom, definitivamente não é Marlon Brando. Já Cate Blanchett é muito Vivien Leigh e, principalmente, muito Cate Blanchett. A atriz impregnou sua personagem de uma psicologia tão intensa quanto incabível para o papel da alpinista social cujo objetivo é sustentar a boa-vida de aparência que leva ao lado do marido.
Blanchett tem estofo para vestir suas personagens como uma vida própria, mesmo que emprestada. No “Aviador”, ela desceu à essência de Kate Hepburn, embebendo-se da alma de sua biografada, mais do que de seus maneirismos superficiais. Em “Blue Jasmine” ela é uma perfeita descendente da Blanche Dubois de Vivien Leigh – mulher que ficcionalizava a existência para fazê-la mais palatável. A diferença entre ambas as atrizes está na densidade das personagens que representam. Leigh constrói em cima de uma personagem que já era profunda: mulher frágil levada à ruína física e moral por impossibilidade de suportar o esfarelar da família. O chão de nuvens sobre o qual a etérea Blanche passa a caminhar sustenta-lhe parcamente a sanidade.
Jasmine não passa de uma arrivista a quem a cegueira é opção para a ascensão social. Sustenta seu casamento enquanto escolhe olhar para as joias que ganha do marido em detrimento das amantes e das falcatruas que ele comete, e caso clássico, resolve denunciá-lo quando se vê em vias de perder o prezado status. A história praticamente biografa o caso envolvendo minha conterrânea.
Cate Blanchett dá foros de grandeza à mulher mesquinha.
Espero não ter soado moralista, pois não é esse o caso. Woody Allen realiza neste filme uma leitura aguda da sociedade que obriga o forjamento de Jasmines para darem conta dos figurões a quem a mulher não passa de um brasão social. A história cruelmente se repete quando a mulher-atriz (afinal, a aristocrática Jasmine é na verdade Janette, flor nascida de solo muito mais reles) descobre-se, numa espécie de mercado de carnes da alta-sociedade, escolhida, conquistada e depois repudiada por certo diplomata/político – tipo bem acabado da política (inter)nacional.
Jasmine caiu das nuvens douradas em que Blanche sonhava para chafurdar no esgoto da corrupção terrena. O microcosmo da sociedade criado por Allen tanto ganha em realismo quanto perde em poesia. Prezo o esforço do diretor, mas prefiro mil vezes os castelos que Blanche constrói no ar ao pouco charmoso pragmatismo de Jasmine – mesmo que ele esteja mergulhado no mais sedutor blues.
13 comentários:
É o melhor desempenho da carreira de Cate Blanchett.
essa semana tentei assistir Blue Jasmine, mas não consegui. Como o filme é do Wood Allen, já penso que posso esperar de tudo rs Tem filme dele que detestei, e outros que já gostei.. Com certeza, verei. Essa semana assisti Capitão Philips, gravidade, até o "meu passado me condena" rsrs bjs
Olá, Maira.
O Allen tem um projeto autoral que se repete ao longo das produções, o que não é de modo algum um problema. O problema é que ele andava se copiando para pior, o que não acontece neste filme, eficiente do ponto de vista cinematográfico, com crítica perspicaz e ao mesmo tempo bom humor. Vale a pena vê-lo, sobretudo pela protagonista, que dá um banho!
Bjss
Danielle, eu vi o filme e até reli sua crítica após vê-lo. Realmente, a atriz dá um banho de Blue Jasmine rss E como tem casamentos assim, hein?! Imagino eu... Não sou muito ligada a nomes e atores estrangeiros, é engraçado como vejo filmes dos quais eles participam e depois esqueço Chega dá raiva. Você citou um filme do qual essa atriz participou Eu vi o filme e não lembro dela agora, é mole?! Voltando ao filme, li uma crítica do Caetano Veloso hj pela manhã.. ele diz, entre outras coisas, que achou algumas cenas do filme forçadas.. não sei se chegou a ler.. Enfim, mas gostei do filme, sem contar com a crítica que o autor quis mostrar a respeito de uma parte da nossa sociedade (creio eu). bjoss
Oi, Maira!
Cate está bem demais, né? Não entendi o que você escreveu sobre os casamentos (se refere aos da atriz? não tenho nem ideia da vida pessoal desses artistas de Hollywood!...). De todo modo, Cate é uma das grandes atrizes de seu tempo e sai-se bem em qualquer papel.
Não vi a crítica do Caetano. Realmente este filme não é nenhuma obra-prima, daí que dá para levantarmos alguns aquéns a ele. Preferi não me concentrar nisso, ao contrário do que fiz na minha crítica a Meia-noite em Paris, porque ao contrário daquele, achei que este funciona bem.
Bjo!
rs a crítica que eu fiz não foi aos casamentos dos famosos, também nao conheço a vida de nenhum Tava me referendo à sociedade mesmo, pessoas que permanecem casadas por conveniência. Por exemplo, mulheres que permanecem com seus maridos mais porque eles proporcionam uma vida comoda a elas do que por amor.. bjoss
Sim, essa história é bem comum, Maira ;D
Não é o melhor filme de Allen, mas tão pouco é o pior.
O filme paira em um meio-termo que jamais deslancha ou afunda totalmente. Acompanhar os percalços e os delírios de grandeza de Jasmine se torna um deleite devido ao trabalho esplendoroso de Cate Blanchett, todavia esse fulgor não se estende quando o foco é o enredo. É essa dissonância que enfraquece o filme de Allen.
Gostei da análise!
http://omundoemcenas.blogspot.com.br/
Oi, Vitor.
Concordo contigo!
Eu insisto em ver os filmes do Allen, mas ultimamente está difícil encontrar um extremamente bom. Admiro a pertinácia com que ele trabalha, ao mesmo tempo em que não consigo engolir o desprendimento artístico que ele tem, ao, por exemplo, escolher rodar filmes nas capitais que o contratam para tal. "Vicky, Cristina, Barcelona" é bastante bom, mas não podemos deixar de lado o fato de ele ter escolhido, dentre a Espanha inteira, a cidadezinha que lhe dedicou uma estátua... A concessão ao marketing já irritante nas novelas, que são produtos perecíveis. No cinema eu acho execrável...
"Meia-noite em Paris", rodado (aparentemente pelo mesmo motivo) em Paris é bem mediano, embora tenha sido lembrado pela academia. Agora, este "Blue Jasmine" recoloca-o no lugar de diretor digno de nota. Cate está formidável, e embora o filme tome liberdade demais com a obra-prima protagonizada por Brando e Leigh, também não faz feio, ao propor uma leitura moderna das questões postas por ela...
Bjo e obrigada pela leitura e comentário!
Dani
Oi, Vitor.
Concordo contigo!
Eu insisto em ver os filmes do Allen, mas ultimamente está difícil encontrar um extremamente bom. Admiro a pertinácia com que ele trabalha, ao mesmo tempo em que não consigo engolir o desprendimento artístico que ele tem, ao, por exemplo, escolher rodar filmes nas capitais que o contratam para tal. "Vicky, Cristina, Barcelona" é bastante bom, mas não podemos deixar de lado o fato de ele ter escolhido, dentre a Espanha inteira, a cidadezinha que lhe dedicou uma estátua... A concessão ao marketing já irritante nas novelas, que são produtos perecíveis. No cinema eu acho execrável...
"Meia-noite em Paris", rodado (aparentemente pelo mesmo motivo) em Paris é bem mediano, embora tenha sido lembrado pela academia. Agora, este "Blue Jasmine" recoloca-o no lugar de diretor digno de nota. Cate está formidável, e embora o filme tome liberdade demais com a obra-prima protagonizada por Brando e Leigh, também não faz feio, ao propor uma leitura moderna das questões postas por ela...
Bjo e obrigada pela leitura e comentário!
Dani
Oi Danielle,
então, confesso que não sabia dessa estratégia mercadológica dele ao filmar suas obras, mas, isso não me incomoda muito, o que me incomoda mais é a redundância narrativa dele em alguns filmes, parece que ele precisa se manter fiel ao estigma que o consagrou.
Mesmo assim, quando ele acerta, seus filmes proeminam sob a superfície oca da maioria da produção de Hollywood. Achei "Meia Noite em Paris" supervalorizado, o filme tem suas notáveis qualidades, mas não justifica todo o frenesi que causou e "Vicky, Cristina, Barcelona" não me agradou tanto, talvez por eu não me recordar tanto do filme ou talvez por ser simplesmente tíbio.
Dos filmes recentes dele, acho que "Blue Jasmine" é o mais qualificado mesmo.
P.S.: Eu estou aprendendo algumas palavras novas com sua escrita, tipo pertinácia haha adoro explorar sinônimos, acho que enriquece o texto. Já tinha ouvida falar de "tíbio"? kkk
Beijos
Oi, Vitor!
Quando descobri sobre o Allen, achei chocante alguém supostamente artístico se pautar tão deslavadamente pelo mercado. Vemos essa gente mais "autoral" fazendo isso ultimamente...
Achei engraçado o seu comentário sobre o vocabulário do texto :D Acontece que pesquiso jornais antigos; o linguajar deles se meteu no meio do meu sem que eu me desse conta...
Passei pelo seu blog e gostei muito de suas reflexões sobre (o maravilhoso) Segredo dos seus olhos, à luz de suas escolhas pessoais. Você é muito bom escritor. Lamentei não ter podido ler mais, mas logo estarei mais sossegada, e então volto para lá.
Até breve!
Danielle
Hahaha sempre bom descobrir palavras novas.
Muito obrigado Danielle pelo elogio, significa bastante vindo de alguém que escreve tão bem quanto você :-)
Passe mais lá sim, eu adoraria.
Beijos e tenha um ótimo fim de semana.
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