domingo, 24 de novembro de 2013

A corrupção e outras drogas sedutoras: de "Blue Jasmine" (2013) à trambicagem nossa de cada dia

Um novo Woody Allen acabou de aportar por aqui. Junto, quase, do escândalo de dimensões faraônicas que sacudiu as estruturas – já não tão firmes – da prefeitura de São Paulo. A semelhança entre ambos os acontecimentos só é forçada aqui porque descobri, hoje, que a delatora da fraude do ISS é uma conterrânea minha. Il faut honrar a prata da casa... 
Allen voltou à boa forma. “Blue Valentine” é um filme bem feito, charmoso e volúvel como a corrupção de colarinho branco. Ao dizer que Cate Blanchett arrasa, choverei no molhado. De todo modo, cumpre reverberar a maestria, o domínio, a profundidade inequívoca com que ela dá vida à vulgaríssima esposa do ricaço de vida equívoca interpretado por Alec Baldwin - personagem não só verossímil como verdadeira, a contar pela valinhense que resolveu pôr a boca no trombone tão logo notou que sua fonte secaria. 
Incensa-se a semelhança entre "Blue Jasmine" e “Uma rua chamada pecado” ("A streetcar named desire", 1951), obra-prima de Kazan, Leigh e Brando. No entanto, a aproximação entre um filme e outro é tão gritante que a homenagem soa uma apropriação canhestra. Sally Hawkins (Ginger, irmã da protagonista) não é Kim Hunter; Andrew Dice Clay (o troglodita namorado de Ginger), embora muito bom, definitivamente não é Marlon Brando. Já Cate Blanchett é muito Vivien Leigh e, principalmente, muito Cate Blanchett. A atriz impregnou sua personagem de uma psicologia tão intensa quanto incabível para o papel da alpinista social cujo objetivo é sustentar a boa-vida de aparência que leva ao lado do marido. 
Blanchett tem estofo para vestir suas personagens como uma vida própria, mesmo que emprestada. No “Aviador”, ela desceu à essência de Kate Hepburn, embebendo-se da alma de sua biografada, mais do que de seus maneirismos superficiais. Em “Blue Jasmine” ela é uma perfeita descendente da Blanche Dubois de Vivien Leigh – mulher que ficcionalizava a existência para fazê-la mais palatável. A diferença entre ambas as atrizes está na densidade das personagens que representam. Leigh constrói em cima de uma personagem que já era profunda: mulher frágil levada à ruína física e moral por impossibilidade de suportar o esfarelar da família. O chão de nuvens sobre o qual a etérea Blanche passa a caminhar sustenta-lhe parcamente a sanidade. 
Jasmine não passa de uma arrivista a quem a cegueira é opção para a ascensão social. Sustenta seu casamento enquanto escolhe olhar para as joias que ganha do marido em detrimento das amantes e das falcatruas que ele comete, e caso clássico, resolve denunciá-lo quando se vê em vias de perder o prezado status. A história praticamente biografa o caso envolvendo minha conterrânea. 
Cate Blanchett dá foros de grandeza à mulher mesquinha. 
Espero não ter soado moralista, pois não é esse o caso. Woody Allen realiza neste filme uma leitura aguda da sociedade que obriga o forjamento de Jasmines para darem conta dos figurões a quem a mulher não passa de um brasão social. A história cruelmente se repete quando a mulher-atriz (afinal, a aristocrática Jasmine é na verdade Janette, flor nascida de solo muito mais reles) descobre-se, numa espécie de mercado de carnes da alta-sociedade, escolhida, conquistada e depois repudiada por certo diplomata/político – tipo bem acabado da política (inter)nacional. 
Jasmine caiu das nuvens douradas em que Blanche sonhava para chafurdar no esgoto da corrupção terrena. O microcosmo da sociedade criado por Allen tanto ganha em realismo quanto perde em poesia. Prezo o esforço do diretor, mas prefiro mil vezes os castelos que Blanche constrói no ar ao pouco charmoso pragmatismo de Jasmine – mesmo que ele esteja mergulhado no mais sedutor blues.

13 comentários:

Marcelo Castro Moraes disse...

É o melhor desempenho da carreira de Cate Blanchett.

Maira disse...

essa semana tentei assistir Blue Jasmine, mas não consegui. Como o filme é do Wood Allen, já penso que posso esperar de tudo rs Tem filme dele que detestei, e outros que já gostei.. Com certeza, verei. Essa semana assisti Capitão Philips, gravidade, até o "meu passado me condena" rsrs bjs

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Olá, Maira.

O Allen tem um projeto autoral que se repete ao longo das produções, o que não é de modo algum um problema. O problema é que ele andava se copiando para pior, o que não acontece neste filme, eficiente do ponto de vista cinematográfico, com crítica perspicaz e ao mesmo tempo bom humor. Vale a pena vê-lo, sobretudo pela protagonista, que dá um banho!

Bjss

Maira Albuquerque da Costa disse...

Danielle, eu vi o filme e até reli sua crítica após vê-lo. Realmente, a atriz dá um banho de Blue Jasmine rss E como tem casamentos assim, hein?! Imagino eu... Não sou muito ligada a nomes e atores estrangeiros, é engraçado como vejo filmes dos quais eles participam e depois esqueço Chega dá raiva. Você citou um filme do qual essa atriz participou Eu vi o filme e não lembro dela agora, é mole?! Voltando ao filme, li uma crítica do Caetano Veloso hj pela manhã.. ele diz, entre outras coisas, que achou algumas cenas do filme forçadas.. não sei se chegou a ler.. Enfim, mas gostei do filme, sem contar com a crítica que o autor quis mostrar a respeito de uma parte da nossa sociedade (creio eu). bjoss

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, Maira!

Cate está bem demais, né? Não entendi o que você escreveu sobre os casamentos (se refere aos da atriz? não tenho nem ideia da vida pessoal desses artistas de Hollywood!...). De todo modo, Cate é uma das grandes atrizes de seu tempo e sai-se bem em qualquer papel.
Não vi a crítica do Caetano. Realmente este filme não é nenhuma obra-prima, daí que dá para levantarmos alguns aquéns a ele. Preferi não me concentrar nisso, ao contrário do que fiz na minha crítica a Meia-noite em Paris, porque ao contrário daquele, achei que este funciona bem.

Bjo!

Maira disse...

rs a crítica que eu fiz não foi aos casamentos dos famosos, também nao conheço a vida de nenhum Tava me referendo à sociedade mesmo, pessoas que permanecem casadas por conveniência. Por exemplo, mulheres que permanecem com seus maridos mais porque eles proporcionam uma vida comoda a elas do que por amor.. bjoss

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Sim, essa história é bem comum, Maira ;D

Vitor Costa disse...

Não é o melhor filme de Allen, mas tão pouco é o pior.

O filme paira em um meio-termo que jamais deslancha ou afunda totalmente. Acompanhar os percalços e os delírios de grandeza de Jasmine se torna um deleite devido ao trabalho esplendoroso de Cate Blanchett, todavia esse fulgor não se estende quando o foco é o enredo. É essa dissonância que enfraquece o filme de Allen.

Gostei da análise!

http://omundoemcenas.blogspot.com.br/

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, Vitor.

Concordo contigo!
Eu insisto em ver os filmes do Allen, mas ultimamente está difícil encontrar um extremamente bom. Admiro a pertinácia com que ele trabalha, ao mesmo tempo em que não consigo engolir o desprendimento artístico que ele tem, ao, por exemplo, escolher rodar filmes nas capitais que o contratam para tal. "Vicky, Cristina, Barcelona" é bastante bom, mas não podemos deixar de lado o fato de ele ter escolhido, dentre a Espanha inteira, a cidadezinha que lhe dedicou uma estátua... A concessão ao marketing já irritante nas novelas, que são produtos perecíveis. No cinema eu acho execrável...
"Meia-noite em Paris", rodado (aparentemente pelo mesmo motivo) em Paris é bem mediano, embora tenha sido lembrado pela academia. Agora, este "Blue Jasmine" recoloca-o no lugar de diretor digno de nota. Cate está formidável, e embora o filme tome liberdade demais com a obra-prima protagonizada por Brando e Leigh, também não faz feio, ao propor uma leitura moderna das questões postas por ela...

Bjo e obrigada pela leitura e comentário!
Dani

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, Vitor.

Concordo contigo!
Eu insisto em ver os filmes do Allen, mas ultimamente está difícil encontrar um extremamente bom. Admiro a pertinácia com que ele trabalha, ao mesmo tempo em que não consigo engolir o desprendimento artístico que ele tem, ao, por exemplo, escolher rodar filmes nas capitais que o contratam para tal. "Vicky, Cristina, Barcelona" é bastante bom, mas não podemos deixar de lado o fato de ele ter escolhido, dentre a Espanha inteira, a cidadezinha que lhe dedicou uma estátua... A concessão ao marketing já irritante nas novelas, que são produtos perecíveis. No cinema eu acho execrável...
"Meia-noite em Paris", rodado (aparentemente pelo mesmo motivo) em Paris é bem mediano, embora tenha sido lembrado pela academia. Agora, este "Blue Jasmine" recoloca-o no lugar de diretor digno de nota. Cate está formidável, e embora o filme tome liberdade demais com a obra-prima protagonizada por Brando e Leigh, também não faz feio, ao propor uma leitura moderna das questões postas por ela...

Bjo e obrigada pela leitura e comentário!
Dani

Vitor Costa disse...

Oi Danielle,

então, confesso que não sabia dessa estratégia mercadológica dele ao filmar suas obras, mas, isso não me incomoda muito, o que me incomoda mais é a redundância narrativa dele em alguns filmes, parece que ele precisa se manter fiel ao estigma que o consagrou.

Mesmo assim, quando ele acerta, seus filmes proeminam sob a superfície oca da maioria da produção de Hollywood. Achei "Meia Noite em Paris" supervalorizado, o filme tem suas notáveis qualidades, mas não justifica todo o frenesi que causou e "Vicky, Cristina, Barcelona" não me agradou tanto, talvez por eu não me recordar tanto do filme ou talvez por ser simplesmente tíbio.

Dos filmes recentes dele, acho que "Blue Jasmine" é o mais qualificado mesmo.

P.S.: Eu estou aprendendo algumas palavras novas com sua escrita, tipo pertinácia haha adoro explorar sinônimos, acho que enriquece o texto. Já tinha ouvida falar de "tíbio"? kkk

Beijos

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, Vitor!

Quando descobri sobre o Allen, achei chocante alguém supostamente artístico se pautar tão deslavadamente pelo mercado. Vemos essa gente mais "autoral" fazendo isso ultimamente...

Achei engraçado o seu comentário sobre o vocabulário do texto :D Acontece que pesquiso jornais antigos; o linguajar deles se meteu no meio do meu sem que eu me desse conta...

Passei pelo seu blog e gostei muito de suas reflexões sobre (o maravilhoso) Segredo dos seus olhos, à luz de suas escolhas pessoais. Você é muito bom escritor. Lamentei não ter podido ler mais, mas logo estarei mais sossegada, e então volto para lá.

Até breve!
Danielle

Vitor Costa disse...

Hahaha sempre bom descobrir palavras novas.

Muito obrigado Danielle pelo elogio, significa bastante vindo de alguém que escreve tão bem quanto você :-)

Passe mais lá sim, eu adoraria.

Beijos e tenha um ótimo fim de semana.