Liv Ullmann, uma das principais musas de Ingmar Bergman, envereda para a direção após pouco mais de uma década (da última vez que comandou a batuta, em “Infiel”, de 2000, Bergman proveu-lhe a história). A obra escolhida é uma adaptação, de seu próprio punho, de “Senhorita Júlia” (1888), obras-prima do teatro moderno, de autoria do sueco August Strindberg.
O resultado final é deslumbrante.
Ullmann realizou um conjunto de escolhas precisas, prova da intimidade que tem com a peça que roteirizou. Em primeiro lugar, conteve-se diante da tentação – comum nos realizadores contemporâneos – de modernizar a obra: Juliette Binoche tentou-o recentemente, aferindo com a empreitada, pelo que eu li a respeito, resultados dúbios (no Brasil, Alessandra Negrini trilhou o mesmo caminho, recebendo da crítica uma resposta igualmente pouco animadora).
Jessica Chastain (Mis Julie) e Colin Farrell (John) |
A única alteração importante que fez a atriz-cineasta diz respeito à localização geográfica da história: a Irlanda do Norte rural, ao invés da Suécia. A mesma noite de solstício de verão, a mesma quantidade exígua de caracteres (que dão ao filme um sopro teatral, sustentado pelos diálogos, ainda que o cenário escolhido seja apropriado com perspicácia). A inconteste força dramática da história, sua patente atualidade – malgrado ela se passar no crepúsculo do século XIX –, demonstra quão desnecessária é a sua atualização ao contexto contemporâneo.
Strindberg é, ainda hoje, moderno. Aliás, hoje, como nunca, pode ser compreendido em sua plenitude.
Sua senhorita Júlia é uma melancólica. Precisou de todo século XX para que a sua alma pudesse ser perscrutada. Em 1888, data de seu nascimento, ela era uma anomalia, como tantas outras mulheres de fecho de século criadas por homens como Strindberg e Ibsen – homens do norte, tão diferentes de nós, tropicais, como a imprensa brasileira insistia em lembrar, cada vez que uma daquelas estranhas heroínas subia à nossa cena. Ullmann percebeu bem isso e, como é mulher – isso, especialmente, é fundamental –, conseguiu compreender bem a personagem, e apreender em extensão o histórico conflito existente entre os gêneros.
Sua senhorita Júlia é uma melancólica. Precisou de todo século XX para que a sua alma pudesse ser perscrutada. Em 1888, data de seu nascimento, ela era uma anomalia, como tantas outras mulheres de fecho de século criadas por homens como Strindberg e Ibsen – homens do norte, tão diferentes de nós, tropicais, como a imprensa brasileira insistia em lembrar, cada vez que uma daquelas estranhas heroínas subia à nossa cena. Ullmann percebeu bem isso e, como é mulher – isso, especialmente, é fundamental –, conseguiu compreender bem a personagem, e apreender em extensão o histórico conflito existente entre os gêneros.
Julia vive de vagar pelos campos, em nostalgia constante. O ambiente rural, importante para a psicologia da personagem, ocupa um primeiro plano na “Miss Julie” de Liv Ullmann, em sua magnificência opressora. O conflito entre drama romântico e drama moderno exacerba-se com força no filme, naquele quadro pitoresco de uma Irlanda rural palmilhada por uma mocinha povoada pelos romances históricos de Walter Scott e Alexandre Dumas. Julia vivia numa Era pós-Madame Bovary, senhora a quem a literatura romanesca se mostrara tão malsã.
Samantha Morton/Kathleen |
O desenvolvimento galopante da ciência e da técnica expulsaram as heroínas românticas do paraíso, arrastando à lama aquelas que insistiam em viver de sonhos. Julia é uma dessas desgraçadas. Órfã de mãe desde menina, encontra companhia entre os heróis da ficção. Embebida daquela literatura que rompia com as hierarquias sociais, vislumbra a possibilidade de um romance com um serviçal. Strindberg é preciso no burilamento desta personagem que vive o limiar do século XX presa aos liames do passado.
Aquela época de perda da inocência ganha corpo, em cena, à medida que se desenvolvem os caracteres de Julia e John. A poética aliteração que forma seus nomes, a prosa comovente que sai da boca de John, confundem tanto a mocinha quanto o espectador. O rapaz garboso que fala como um lord se revelará, ao termo da obra, um biltre – destruição simbólica de um século de verborragia sentimental. Para escapar à sua realidade vazia, Julia passa a noite de solstício criando para si um amor de ficção. A contraparte no jogo é John, que logo percebe a carência da jovem e se embui do papel de herói.
Ao longo dos três atos da peça, Strindberg empreende um movimento de questionamento e destruição das hierarquias sociais – destruindo, de roldão, as tópicas buriladas pelo Romantismo.
Atinge, no desfecho, não a clarividência, mas a desesperança. Em sua obra, a sociedade é pintada como espaço de conflito. Nalgum momento depois de Julia obrigar John a beijar-lhe os pés – lembrando-lhe do lugar subalterno que ele ocupava na sociedade –, nós, espectadores, vislumbramos uma possibilidade de salvação para ambos: quando o rapaz miserável abre seu coração à jovem aristocrática, antevemos um meio termo, entre a base e o topo da pirâmide social, onde ambos poderiam se abrigar.
No entanto, logo caem as máscaras. Depois de se entregar a John, Julia é obrigada a encarar as inexpugnáveis convenções sociais, que punham uma nódoa no futuro da jovem deflorada. O discurso do rapaz transpira o indissolúvel conflito de gêneros – patente mesmo hoje, o que se dirá, então, em fins do século XIX? Julia, como a Nora de Ibsen (da "Casa de Bonecas") exacerbam os séculos de tolhimento a que haviam sido submetidas as mulheres.
Jessica Chastain |
Liv Ullmann criou um filme de comovente densidade, ao qual eu convido fervorosamente o público a visitar. Em tempos bicudos como os que estamos atravessando – não apenas no que se refere à produção cinematográfica, mas ao ultraconservadorismo que avassala nos campos sexual, político e religioso –, precisamos de obras que iluminem as nossas fissuras, e que nos apontem a luz.
Ophelia (John Everett Millais, 1851-1852) |