A blogueira volta hoje, depois de uma ausência de dois meses ocasionada por motivos profissionais. Segue de pé a promessa, feita no já longuínquo mês de agosto, de se comentar obras-primas do cinema europeu.
O assunto do dia não primará pela atualidade. Proponho abaixo um paralelo entre “Os incompreendidos” (Les quatre-cents coups, 1959) e “Numa escola em Havana” (Conducta, 2014), filme que esteve em cartaz por aqui entre agosto e setembro, o qual porção da crítica considerou a versão cubana da obra de Truffaut.
Escrita e dirigida por Ernesto Daranas, “Numa escola em Havana” efetivamente tem em comum com a obra do cineasta francês a qualidade do ator protagonista, o ótimo Armando Valdés Freire, em sua estreia no cinema. No mais, falamos de dois contextos políticos e sociais muito diferentes, e duas obras que, imersas nesses contextos, debruçam-se sobre diferentes questões – todas, no entanto, a girarem em torno do ambiente escolar.
Carmela e Chala |
A escola tematizada por Daranas é muito mais afável que aquela tomada pelas lentes (autobiográficas) de Truffaut. Destaca-se em primeiríssimo plano o caráter formador da escola cubana, representada por Carmela (Alina Rodriguez), “Professora Helena” matrona que se obriga ao hercúleo esforço de conduzir seus pupilos dentro e fora dos muros escolares. A personagem de Carmela carrega em si toda a ambivalência da trama: é adorável, ao mesmo tempo em que inverossimelmente plana, resvalando todo o tempo ao dramalhão novelesco.
É curiosa, aliás, esta apreensão que mistura o olhar mais documental à realidade da ilha – as tomadas das moradias e populações paupérrimas que a habitam, recorrendo a expedientes ilegítimos para conseguirem se sustentar – a formas artísticas que vão na contracorrente do realismo, como a telenovela mexicana.
Neste mesmo viés, o garoto protagonista do filme de Ernesto Daranas tem explicadas as
causas de seu desvirtuamento: é filho de mãe ausente, cedo consumida pelas drogas, e de pai desconhecido – o homem que lhe funciona à guisa de pai coloca-o a treinar cachorros para combates, esporte que, segundo a lógica instaurada na trama, transferirá o seu caráter violento ao menino cujo caráter se construía. A professora luta para burilar a personalidade do jovem, malgrado a doença que a acomete e o risco de aposentadoria compulsória que a ameaça quando ela passa ao largo das decisões da coordenação do colégio. Há closes vários de Carmela a exclamar “Na minha sala de aula, a autoridade sou eu.” e coisas do gênero, além dos comentários de tom professoral que perpassam a trama.
A narrativa sustenta-se, no entanto, pelas tomadas da cidade a partir de seus meandros: dos telhados dos pardieiros onde o menino Chala empina pipas e cria pombos, das ruelas comidas por décadas de desamparo, a unirem a população de Havana à gente miserável que vem do interior ainda mais empobrecido e, na falta do amparo do Estado, estende-se ao largo da via férrea. Sustenta-se, sobretudo, pelo trabalho fino realizado com o elenco infantil, que aparece no filme vivendo, não atuando – nenhuma sombra da técnica tinge o desempenho do grupo, que é o ponto alto da trama.
Sobre os pontos de convergência com o filme de Truffaut. A crítica não foi apenas gentil ao comparar os dois meninos: Armando Valdés Freire tem a verve e a ironia de Jean-Pierre Léaud. Com sua sombranceria, com sua recusa às lágrimas, impede vitoriosamente que o filme torne-se folhetim barato. Mas suas fugas do jugo da instituição escolar têm causas muito diferentes das fugas de Antoine Doinel.
Antoine Doinel, "Os incompreendidos" |
Uma vez conduzido por uma autoridade paterna que lhe tira da obrigação de ser o provedor do lar, o menino é colocado na linha. A escola – de que a professora Carmela é a mais bem acabada representante – é tomada como o espaço do burilamento moral e intelectual do indivíduo. A coordenadora intransigente é um ponto fora da curva no cordato ambiente. O filme elimina arestas, e reproduz o ambiente escolar como o espaço da condução segura, deixando de lado as tensões que o amoldamento dos caracteres implica. Tensões essas que pulsam preponderentes no filme de Truffaut, obra menos preocupada em tecer as causas e consequências da delinquência juvenil do que em fazer emergir a ontologia da juventude – complexa e contraditória demais para ser compreendida e corrigida no espaço de um filme.