quarta-feira, 11 de novembro de 2015

“Numa escola em Havana”: versão cubana de “Os incompreendidos”?


A blogueira volta hoje, depois de uma ausência de dois meses ocasionada por motivos profissionais. Segue de pé a promessa, feita no já longuínquo mês de agosto, de se comentar obras-primas do cinema europeu. 
O assunto do dia não primará pela atualidade. Proponho abaixo um paralelo entre “Os incompreendidos” (Les quatre-cents coups, 1959) e “Numa escola em Havana” (Conducta, 2014), filme que esteve em cartaz por aqui entre agosto e setembro, o qual porção da crítica considerou a versão cubana da obra de Truffaut. 
Escrita e dirigida por Ernesto Daranas, “Numa escola em Havana” efetivamente tem em comum com a obra do cineasta francês a qualidade do ator protagonista, o ótimo Armando Valdés Freire, em sua estreia no cinema. No mais, falamos de dois contextos políticos e sociais muito diferentes, e duas obras que, imersas nesses contextos, debruçam-se sobre diferentes questões – todas, no entanto, a girarem em torno do ambiente escolar. 
Carmela e Chala
A escola tematizada por Daranas é muito mais afável que aquela tomada pelas lentes (autobiográficas) de Truffaut. Destaca-se em primeiríssimo plano o caráter formador da escola cubana, representada por Carmela (Alina Rodriguez), “Professora Helena” matrona que se obriga ao hercúleo esforço de conduzir seus pupilos dentro e fora dos muros escolares. A personagem de Carmela carrega em si toda a ambivalência da trama: é adorável, ao mesmo tempo em que inverossimelmente plana, resvalando todo o tempo ao dramalhão novelesco. 
É curiosa, aliás, esta apreensão que mistura o olhar mais documental à realidade da ilha – as tomadas das moradias e populações paupérrimas que a habitam, recorrendo a expedientes ilegítimos para conseguirem se sustentar – a formas artísticas que vão na contracorrente do realismo, como a telenovela mexicana. 
Neste mesmo viés, o garoto protagonista do filme de Ernesto Daranas tem explicadas as
causas de seu desvirtuamento: é filho de mãe ausente, cedo consumida pelas drogas, e de pai desconhecido – o homem que lhe funciona à guisa de pai coloca-o a treinar cachorros para combates, esporte que, segundo a lógica instaurada na trama, transferirá o seu caráter violento ao menino cujo caráter se construía. A professora luta para burilar a personalidade do jovem, malgrado a doença que a acomete e o risco de aposentadoria compulsória que a ameaça quando ela passa ao largo das decisões da coordenação do colégio. Há closes vários de Carmela a exclamar “Na minha sala de aula, a autoridade sou eu.” e coisas do gênero, além dos comentários de tom professoral que perpassam a trama. 

A narrativa sustenta-se, no entanto, pelas tomadas da cidade a partir de seus meandros: dos telhados dos pardieiros onde o menino Chala empina pipas e cria pombos, das ruelas comidas por décadas de desamparo, a unirem a população de Havana à gente miserável que vem do interior ainda mais empobrecido e, na falta do amparo do Estado, estende-se ao largo da via férrea. Sustenta-se, sobretudo, pelo trabalho fino realizado com o elenco infantil, que aparece no filme vivendo, não atuando – nenhuma sombra da técnica tinge o desempenho do grupo, que é o ponto alto da trama. 
Sobre os pontos de convergência com o filme de Truffaut. A crítica não foi apenas gentil ao comparar os dois meninos: Armando Valdés Freire tem a verve e a ironia de Jean-Pierre Léaud. Com sua sombranceria, com sua recusa às lágrimas, impede vitoriosamente que o filme torne-se folhetim barato. Mas suas fugas do jugo da instituição escolar têm causas muito diferentes das fugas de Antoine Doinel. 
Antoine Doinel, "Os incompreendidos"
Uma vez conduzido por uma autoridade paterna que lhe tira da obrigação de ser o provedor do lar, o menino é colocado na linha. A escola – de que a professora Carmela é a mais bem acabada representante – é tomada como o espaço do burilamento moral e intelectual do indivíduo. A coordenadora intransigente é um ponto fora da curva no cordato ambiente. O filme elimina arestas, e reproduz o ambiente escolar como o espaço da condução segura, deixando de lado as tensões que o amoldamento dos caracteres implica. Tensões essas que pulsam preponderentes no filme de Truffaut, obra menos preocupada em tecer as causas e consequências da delinquência juvenil do que em fazer emergir a ontologia da juventude – complexa e contraditória demais para ser compreendida e corrigida no espaço de um filme.