Está em cartaz gratuitamente no Espaço Itaú de cinema, em São Paulo, esta obra-prima de documentário, dirigido e roteirizado por Carlos Nader. “A Paixão de JL” mergulha na arte de José Leonilson, artista plástico cearense radicado em São Paulo que perdemos em 1993 para a AIDS. Esta perda, o diretor faz-nos sentir com contundência, ao entremear a obra de Leonilson à sua vida, e à História do Brasil e do mundo na década de 90.
A banda sonora traz a voz do próprio artista, que a partir de 1990 decidiu registrar num gravador os seus sonhos, temores e espantos frente a si próprio e ao mundo. O cunho confessional – malgrado ser o diário um gênero narrativo que visa um público, mesmo implícito – potencializa-se ainda mais pela natureza do registro: a voz firme de Leonilson, que vez por outra se embebe de emoção ou rareia, deixando-nos antever seu inescapável destino.
O documentário é um alumbramento e eu escrevo ainda muito mexida – não esperem, portanto, uma leitura tecnicista do gênero ou da obra.
Nader é extremamente feliz ao trabalhar com a ambivalência presença-ausência. Morto em 1993, Leonilson aparece vivo por meio de sua obra, presença perene, embora seu corpo empírico há tempos tenha desaparecido. Sua voz ajuda a construir a presença incontornável de sua obra altamente confessional, que Nader conhece como poucos.
A voz e a arte fazem emergir uma individualidade que o mal do século transformara em estatística. Homossexual, Leonilson convive de perto com o temor de ser contaminado. A busca do amor, que ele exacerba em depoimentos de grande lirismo, irá logo conviver com a descoberta da doença e a luta inglória por se agarrar à vida que se extinguia. Retornando de uma noite no hospital, onde ouvira que a medicina não poderia fazer nada por si, o artista afirma: agora só me resta a arte. A arte, aquela coisa delicada, sublime, que bate de frente com a rispidez do mundo - ele constata noutro momento, enquanto se acercam episódios hediondos como o bombardeamento de Bagdad.
À voz e às obras, Nader costura o noticiário jornalístico da época: a queda do muro de Berlim; Collor a pedir a derrubada dos marajás; a tomada das ruas pelos caras-pintadas; a destruição de Bagdad. Este perpassar de roldão da História, por meio desta voz tão presente, reinsere Leonilson e sua arte no mundo de hoje – porque ela tem esta característica da arte maior, que é a universalidade. Num tecido alvo bordado com suavidade, lê-se:
no bombs
no castles on sand
no drums
it's on me
Não às bombas, aos castelos de areia, aos tambores. Depende de mim.