quarta-feira, 5 de julho de 2023

O talento de Isabel Leonard passou por São Paulo


O cancelamento da letã Elīna Garanča, programada como o primeiro espetáculo vocal da temporada do Mozarteum deste ano, nos ofereceu a oportunidade de conhecer o trabalho da mezzo-soprano norte-americana Isabel Leonard, que em março deste ano apresentou-se pela primeira vez no Brasil em Curitiba, num espetáculo em comemoração ao aniversário da cidade. 

Menos conhecida das plateias brasileiras que a colega, Leonard tem uma carreira respeitável nos palcos da América do Norte e da Europa, nos quais ela interpretou papéis notórios do repertório de mezzo-soprano sobretudo leggero, que tão bem se encaixam à sua voz e ao seu físico lépido, a exemplo da Rosina, de “Il Barbieri di Siviglia” (de Gioachino Rossini), e de Cherubino, de “Le Nozze di Figaro” (de Wolfgang Amadeus Mozart). Trata-se, no entanto, de uma artista versátil, já que coube a ela dar corpo, no MET, à perturbada Marnie, na estreia mundial da ópera homônima com música de Nico Muhly e libreto de Nicholas Wright, baseada no romance de Winston Graham (o mesmo que originou o clássico de Hitchcock, de 1964) – e ela o fez otimamente bem, tanto do ponto de vista vocal quanto cênico. Trata-se, portanto, de uma artista que merecia ser conhecida pelo público paulistano. 

Para o concerto programado na Sala São Paulo em 27 de junho, Isabel Leonard escolheu um repertório que passeou pela sua carreira: de Rossini e Mozart a Bizet (“Carmen”) e Massenet (a Charlotte de “Werther”). Passou também pelo espanhol Manuel de Falla (“Sete canções populares espanholas”) e pelo mexicano (“Granada”). 

Acompanhando-a estava a Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileira, conduzida com um misto de energia e finesse pelo maestro norte-americano Constantine Orbelian. A orquestra teve a sua melhor performance dos últimos anos, julgo eu – sublinhamos, trata-se de uma orquestra acadêmica, composta por uma parcela de estudantes, além dos cachezistas profissionais, daí a ser destacável que ela tenha conseguido verdadeiramente protagonizar nalguns momentos puramente orquestrais, como o “Bacchanale” de Camille Saint-Saëns e “La Boda de Luis Alonso”, de Gerónimo Giménez. 

Os temas orquestrais foram escolhidos considerando-se o repertório que seria apresentado por Garanča, daí o descompasso existente nalguns momentos entre ele e os números cantados. O próprio “Bacchanale”, por exemplo, introduziria as árias de “Sansom et Dalila” que seriam cantadas pela mezzo letã. Mantido neste concerto, provavelmente devido às dificuldades da orquestra de ensaiar outro tema, serviram de introdução estranha da dramática “Air des lettres”, tour de force da ópera “Werther” cantado deslumbrantemente bem por Leonard, num dos pontos altos da noite. ´

O espetáculo ocorreu em curva ascendente. Leonard começou a se adonar do público da Sala São Paulo ao longo das árias de Mozart, dominando-o ao abordar, com penetração, graça e dicção perfeita (o que foi, aliás, uma constante nos números em espanhol, francês e italiano que cantou), as “Sete canções populares espanholas” de Falla. 

A segunda parte do programa foi especialmente interessante. Além da já mencionada ária de Charlotte, desta obra-prima de Massenet que é “Werther”, a mezzo abordou dois temas de “Carmen”, repertório par excellence de mezzo-sopranos: a “Habanera” e a “Seguidilla”. 

Como “Sansão e Dalila”, “Carmen” é uma ópera complicada: escritas ambas num período em que o tipo da femme fatale estava consolidado, apresentam duas mulheres astutas, que manipulam os homens que as amam – culpa da moral machista da época. “Carmen”, além de tudo, é sexualmente livre, o que era motivo de terror por parte dos homens pregressos – ainda hoje o é. Embora o texto dessas óperas flerte com o contexto histórico em que nasceram, a sua música maravilhosa o transcende. Portanto, como interpretar esses papéis hoje? Isabel Leonard escolheu uma forma comedida, procurando escoimar a interpretação vocal e cênica dos lastros vampirescos – e, portanto, dos laivos machistas – que deram origem ao papel. Fez um trabalho bastante bonito, sobretudo com a “Seguidilla”, ária que traz um tanto da lepidez que já é própria da cantora. 

O concerto foi fechado por dois bises, “Somewhere”, de “West Side Story” (de Leonard Bernstein) e “Tu n’est pas beau”, a ária da bêbada da ópera bufa de Jacques Offenbach “La Perichole”, que ela fez com uma graça ímpar. Foi um belo concerto. Que venham outros, para que possamos conhecer melhor esta artista tão talentosa.